sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Crítica de arte

Bienal ou Canibal?

Abapuru - Obra de Tacila do Amaral - 1928 - óleo/tela 85 X 73cm.
Por Leandra Migotto Certeza.

“Nenhuma fórmula para a contemporânea do mundo. Ver com olhos livres” (trecho do Manifesto da poesia pau-brasil de Oswald de Andrade de 1924.). Será que os críticos esqueceram desse 'detalhe', ao julgar a desapropriação de certos artistas ao tema da mostra? Bienal é aquela exposição de arte que todos esperam dois anos para ver ou um reduto de intelectuais?. E arte é para ver, ou “Aquilo que você vê não é aquilo que você vê”?.

A percepção vai além da visão e a arte vai além da história. É um estado de primeira-idade, contemplação do primeiro instante tanto de um estudante como o de um artista. “Nossa época anuncia a volta ao sentido puro” (trecho do Manifesto da poesia pau-brasil). Sentido esse, que as crianças têm ao intrigar-se com as formas 'diferentes' de René Magritte, alegrar-se com as cores de Tarsila e Van Gogh; libertar-se com o “fantasma” de Antonio Manoel; ou se aterrorizar com a obra de Edgar de Souza. A experiência de ir a um lugar inusitado, o qual não se tem repertório algum pode ser um passo a caminho da busca do conhecimento, desde que não se caia na 'banalização' comercial dos tempos modernos.

A arte está sendo feita para dialogar com o universo e não para ficar preza aos museus ou galerias. Levar o que se diz 'cultura' ao povo é resgatar sua própria identidade. Cultura é tudo o que se vive, seja em uma selva ou dentro de um apartamento. “Temos a base dupla e presente - a floresta e a escola...” (trecho do manifesto poesia pau-brasil). Conhecimento se adquire através do empirismo, com uma 'pitada' de filosofia e teoria. O equilíbrio é a chave que abrirá todas as portas do mundo. “A alegria é a prova dos nove” (manifesto antropofágico).

“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.” (manifesto antropofágico). 'Entender' a Bienal em seu contexto histórico e artístico é fundamental para todos os cidadãos, matéria-prima dos artistas e do próprio homem, mas 'curtir' as cores, as formas, e os sentimentos refletidos pelas obras é uma das experiências mais ricas que alguém possa ter.

Não cabe exclusivamente a uma exposição de arte 'tapar o buraco' da desinformação e falta de repertório da maioria das pessoas. Todo processo de erudição, deve ser construído através da educação básica em uma sociedade mais estruturada. Mas não é maravilhoso ver a surpresa estampada no rosto dos velhinhos, o sorriso nas crianças, o amor apaixonante no casal de namorados, a dúvida no semblante do crítico de arte, a descoberta de um novo mundo nos olhos da dona-de-casa? Isso é uma mágica que se renova a cada dois anos... Unir os pedaços da vida é um ato mais do que antropofágico. É um ato humano.

“Preocupado no que as obras têm a lhe dizer individual e pessoalmente, o público não busca um discurso totalizante da exposição e não deve ser criticado por isso. Essa tampouco é uma obsessão dos artistas, e não devia ser. É obsessão de curadores, críticos, historiadores, diretores.”, afirma o crítico Teixeira Coelho. “No passado, a Bienal teve a função de ser um museu temporário. Hoje não é mais. Os museus cumprem a função de trazer grandes exposições. Para trabalhar com material histórico, a Bienal deve entender que história da arte e crítica da arte andam juntas e fariam muito sentido se trabalhassem dentro da contextualização presente.”, esclarece o curador da mostra Paulo Herkenhoff.

O curador pretende evitar noções como fronteiras entre as salas e estimular diálogos entre os selecionados e sua participação com o público. Para ele a Bienal não tem um tema exclusivo, mas trabalha com o conceito de antropofagia, que consiste na incorporação de valores culturais alheios para a criação de sua própria identidade.

É uma mostra de 'curadores vale-tudo', da antropofagia à 'angústia canibal de ser anulado pelo fascínio do objeto', passando pelo trans-humano e a fotografia como 'roubo da alma'. “Buscamos noções de transparência, que permitissem diálogos e que enriquecessem e ampliassem as possibilidades de percurso. Era preciso entender que, ao mesmo se as obras tem existências individuais, essa transparência permitiria um fluxo do olhar entre elas. Os grandes segmentos da Bienal devem estabelecer conexões entre si”, disse Herkenhoff.

Numa sociedade canibal, o sistema de signos não admite variantes. Então, por que não fazer uma Bienal de um artista só? Simples: porque os artistas resistem a essa redução, mesmo quando se apropriam da obra dos outros para construir a sua. “A história como fenômeno geral nunca teve a racionalidade que nela querem encontrar os sistemas de idéias variados. Menos ainda a tem a história da arte. Na 'história' da arte haverá espelhamentos, influências, reverberações. Mas não uma linha, menos ainda silogismos.” (Teixeira Coelho).

Nossos ancestrais guaranis, por exemplo, achavam que a pessoa se dividia em duas partes quando morria: uma ligada ao corpo físico e outra à alma e ao verbo. Assim, os devorados consideravam seus canibais como veículos de transcendência, porque seus corpos não apodreciam na terra e nem virariam espectros maliginos. Cabe lembrar que autoria é uma questão moderna, burguesa. O artista antigo tinha a consciência de que não vinha do zero, de que tinha uma história. Canabalizava conscientemente a obra alheia.

Ao assumir que 'só a antropofagia nos une', a Bienal não está declarando seu credo no que os católicos romanos chamavam de transubstanciação, ou seja, a devoração do corpo de Cristo no momento da comunhão. Está sim, assumindo que a padronização cultural na era da Internet acabou com a possibilidade da autoria. Não existe, assim, espaço para a obra original, não contaminada. A matriz responsável pela geração dos artistas transformou todos eles em seres intercambiáveis, o que é mais monstruoso que o canibalismo original.

A antopofagia surge dentro dessa perspectiva de se trabalhar a questão da cultura brasileira, que perpassa por várias artes: está na pintura, na literatura, no cinema, na fotografia, no teatro, na música. Depois atravessa o tempo. Ela toma uma forma em 1928 com a pintura de Tarsila do Amaral, mas já era possível falar de modos antropofágicos na pintura brasileira há séculos, desde o barroco, por exemplo. Ao mesmo tempo, a antropofagia atravessa o tempo, na direção presente na medida em que artistas como Glauber Rocha, Caetano Veloso, Hélio Oiticica, Lygia Clark foram capazes de reencontrar possibilidades de antropofagia para o momento específico em que viveram.

Qual a vitalidade de uma cultura que gira ou que se faz girar tanto tempo ao redor de um único eixo? Mário reinou sozinho durante quase meio século, mesmo depois de Oswald publicar seus manifestos, e continua sendo envocado. De outro lado, Oswald e a antropofagia só foram aceitos no final dos anos 60. Não há outros nomes e idéias com base nos quais poderia aventurar a cultura brasileira? “A Bienal tem a função de apresentar um panorama, um recorte da arte. A Antropofagia foi desde o começo uma escolha que estivesse vinculada à cultura do Brasil. Não queríamos ter a Europa como ponto de referência, e sim nossa própria cultura como ponto de partida”, esclarece Herkenhoff. ” Nunca fomos catequizados. Fizemos foi carnaval. O índio vestido de senador do Império. Fingindo de Pitt. Ou figurando nas óperas de Alencar cheio de bons sentimentos portugueses.” (manifesto Antropofágico).

“Conta todos os importadores de consciência enlatada. A existência palpável da vida.” (manifesto Antropofágico). “Antropofagia não é um padrão. Toda vez que alguém enlata a antropofagia, ela deixa de ser antropofagia.” (Paulo Herkenhoff). É hora de cumprirmos o quarto 'mandamento' do Manifesto Antropofágico, que pede para sermos 'contra todas as catequeses', e passar à devoração final da própria antropofagia e de seu pai e profeta.

“Quanto a mim vou à Bienal ver as obras uma a uma. O prazer visual que o ficcionista Herkenhoff me der será sempre mais decisivo que a lenda imposta às obras. E vou pensando que, se há um manifesto a afirmar hoje, é aquele em favor da libertação dos curadores, e das obras de arte. A arte, assim como as exposições, não precisa de tese a cosê-las, conclui Teixeira Coelho.

Exercício da disciplina História de Arte do curso de Comunicação Social, escrito na Universidade Anhembi Morumbi em ?/?/1998.
Legenda da imagem: reprodução da obra Ubapuru de Tarcila do Amaral. Figura de um ser humano com braços e pernas bem maiores do que a cabeça, retratadas de lado em cor de pele. Ao fundo do ser humano um céu azul celeste, um cactus gigante bem verde e um sol bem redondo, laranja forte e amarelo vivo. As cores e as formas são bem marcadas e marcentes na obra de Tarcila.

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