segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Clube da Escrita

A magia da cadeira imaginária

Por Leandra Migotto Certeza

Quando a semente foi fecundada e o embrião surgiu a magia começa. Com a forma de uma lua crescente em curva, surgimos sentados. E assim somos carregados dentro do ventre que habitamos, sentindo a vida mergulhados. Acreditam que ficamos a maior parte do tempo de frente, mas podemos virar de cabeça para baixo. Sempre formando uma letra L. Como uma cadeira. Mesmo que demore um pouco para conseguimos sustentar nossas cabeças, ficamos sentados. Acredito que seja para conseguirmos ver o mundo por um ângulo melhor. Passear no carinho é bem mais interessante do que ficarmos deitados no berço. O mundo pode ser explorado e está ao alcance dos nossos olhos e mãos, sem o esforço de nos sustentarmos em pé.

A minha cadeira foi apresentada aos 14 anos. Época em que uma menina, preferiria se aventurar no mundo com os próprios pés, correndo na beira da praia, sentindo o frescor da matas e o calor do asfalto, brincando de deixar de ser criança. Mas não tive escolha. Minhas pernas enfraqueceram, meu corpo ficou bem pesado, os colos não conseguiram me carregar mais por aí como cadeiras falantes. A única alternativa foi me sentar nela e sentir sua magia. Mesmo com muito receio, me adaptei as suas duas rodas grandes e duas menores, e aos olhares de todos que agora pareciam ser sempre maiores e mais altos do que eu. Só fui entender a liberdade que esta cadeira me proporcionou, depois que ela começou a fazer parte do meu corpo, e eu a confundir com minhas pernas e pés.

Hoje só não a levo comigo quando vou deitar na cama, cochilar no sofá ou me reconfortar em uma poltrona bem macia. Por que na maioria do tempo, sem ela, não sou ninguém! É com ela que assumo minha personalidade. Mesmo quando o taxista pergunta, se ela também vai comigo no carro, porque sem ela não consigo chegar ou sair dos lugares. É com ela que participo de cursos, escrevo, trabalho, vou até à natação, viajo, conheço novos lugares, converso com pessoas, faço palestras, danço, rodopio, carrego mochilas mais pesadas do que meu corpo, enfrento arreias macias e difíceis de passar até encontrar as ondas dos mares ou o frescor dos jardins e a beleza dos museus. Quando chego aos teatros ou salas de cinema, não preciso me preocupar em escolher a melhor cadeira, porque sempre estou com a minha. E mesmo desviando de buracos, subindo em guias íngremes, passando por poças de água, descendo rampas desniveladas, saltitando sobre os pedregulhos, nunca deixo de levar ela comigo porque sem ela não teria acesso ao desfrutar da vida.


Só espero que em breve, minha cadeira de rodas ganhe um motor bem forte que acelere sua capacidade de deslisar em lugares ainda inexplorados com muito mais conforto, segurança e bem menos esforço físico. Por que não temo mais a prisão que ela supostamente me colocaria quando a imaginava parada, sozinha em um cantinho da sala assistindo TV.    





Texto que será publicado no livro editado pelo SESC Pinheiros como fechamento da terceira temporada do Clube da Escrita.