quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

Movimento político das pessoas com deficiência: reflexões sobre a conquista de direitos




Artigo de Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior*

RESUMO 
O artigo contextualiza a conquista de direitos e autonomia pelas pessoas com deficiência no Brasil ante os fatos históricos e mudanças conceituais da deficiência. São apresentados os principais marcos internacionais adotados pela ONU que influenciaram o surgimento do movimento político dos brasileiros com deficiência até a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, com equivalência constitucional em 2009. Conceituam-se os modelos biomédico e social da deficiência, correspondentes à integração e à inclusão, os quais se diferenciam pela mudança de foco dos impedimentos individuais para a discriminação e a falta de acessibilidade impostas pela sociedade. 

Avalia-se a atuação direta das pessoas com deficiência na inserção de seus direitos na Constituição de 1988, referencial para a elaboração das leis, a implementação das políticas afirmativas, da educação inclusiva e dos recursos de acessibilidade e tecnologia assistiva. Avaliam-se autonomia, vida independente e apoios como princípios para a equiparação de oportunidades. Discutem-se as estratégias para implementar e fiscalizar o cumprimento da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, surgida com o propósito de adequar a legislação e as políticas públicas às obrigações contidas na Convenção da ONU. Conclui-se que novos avanços da luta por direitos dependem do fortalecimento das associações de pessoas com deficiência, promoção de lideranças, maior participação e autonomia para mulheres com deficiência, pessoas com deficiência intelectual, múltipla e transtorno do espectro autista, ainda sub-representadas nos espaços sociais.
ARTIGO
As pessoas com deficiência representam 15% da população mundial, cerca de um bilhão de habitantes, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), no Relatório Mundial sobre a Deficiência, publicado em 2011. Trata-se da maior minoria do planeta que sobrevive em extrema desigualdade social, como analfabetismo, desemprego e baixa renda (SÃO PAULO, 2012). Essa realidade impacta os indicadores de desenvolvimento sustentável de forma negativa, razão suficiente para que o segmento social das pessoas com deficiência tenha seus direitos e necessidades específicas levadas na agenda política de todos os países.
No Brasil, o Censo IBGE 2010 aferiu que 23,9% da população, aproximadamente 45 milhões de pessoas, mencionaram apresentar alguma dificuldade funcional. Nesse total estão considerados todos os tipos e graus de deficiência de acordo com o desempenho nas atividades e domínios pesquisados: alguma dificuldade, grande dificuldade ou não ser capaz de caminhar e subir escadas, enxergar, ouvir ou apresentar deficiência mental/intelectual (IBGE, 2012).
De acordo com Carvalho, é importante notar que, ao contrário de outros grupos sociais visivelmente homogêneos e com necessidades compartilhadas, as pessoas com deficiência têm na própria diversidade uma de suas mais evidentes características (CARVALHO, 2012).
A presença de diferenças entre os seres humanos tem sido, por séculos, motivo de eliminação, exclusão e formas diversas de segregação das pessoas com deficiência, tomadas como risco à sociedade, como doentes e como incapazes. Em todas essas situações manifesta-se a opressão daqueles que detêm o poder sobre os indivíduos em situação de vulnerabilidade. Da invisibilidade à convivência social, houve longa trajetória representada pelas medidas caritativas e assistencialistas, que mantiveram as pessoas com deficiência isoladas nos espaços da família ou em instituições de confinamento (MAIOR, 2016).
A conquista de direitos pelas pessoas com deficiência é recente e pode ser dividida em duas fases distintas. Inicia-se pelo envolvimento e condução do processo pelas famílias e por profissionais dedicados ao atendimento e, posteriormente, pela participação direta das próprias pessoas com deficiência, apoiadas por familiares. Em ambos os momentos predomina a atuação das associações da sociedade civil que lutam por espaço para as pessoas com deficiência na agenda política. Da tutela à autonomia, o movimento social procura vencer a discriminação, a desvalorização e a falta de atenção por parte dos governos (MAIOR, 2015).
A história das pessoas com deficiência no Brasil do século XIX caracteriza-se pela educação especial de cegos e de surdos em internatos, repetindo o cenário europeu. Nessa época foi introduzido o sistema Braille de escrita para os cegos e, entre 1880 e 1960, os surdos foram proibidos de usar a língua de sinais para não comprometer o aprendizado compulsório da linguagem oral (LANNA JÚNIOR, 2010). Esse fato representa no Brasil a mais emblemática dominação da cultura hegemônica dos ouvintes sobre os surdos, impedidos de se desenvolverem em sua cultura natural.
No início do século XX estabeleceram-se as escolas especiais para crianças com deficiência mental (atualmente reconhecida como deficiência intelectual) em redes paralelas ao ensino público, devido à omissão do Estado. A educação especial representou um avanço para a época e foi introduzida principalmente por iniciativa das associações Pestalozzi (nome do criador do método) e, posteriormente, pelas Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae). Os termos excepcionais portadores de necessidades especiais eram usados e, embora anacrônicos e incorretos, persistem na sociedade, particularmente por serem repetidos pela mídia.
As pessoas com deficiência física (antes chamadas de deficientes físicos) eram atendidas na área da saúde, em centros de reabilitação mantidos por iniciativa não governamental.
Esses centros surgiram a partir da epidemia de poliomielite nos anos 1950 e 1960, quando foram adotadas formas de terapia desenvolvidas a partir da II Guerra Mundial. No âmbito governamental, mantiveram-se iniciativas assistencialistas divorciadas das políticas públicas existentes para a população em geral, sob o comando da Legião Brasileira de Assistência (LBA), até meados da década de 1990.
Esse tipo de atendimento corresponde ao modelo biomédico da deficiência, o qual interpreta a deficiência como consequência de uma doença ou acidente, que gera alguma incapacidade a ser superada mediante tratamento de reabilitação. O modelo está vinculado à integração social e aos esforços de normalização das pessoas com deficiência para atenderem aos padrões de desempenho e estética exigidos pela sociedade. O modelo tem como foco a limitação funcional que se encontra na pessoa, desconsiderando as barreiras presentes no contexto social.
O modelo (bio) médico da deficiência demonstra a resistência da sociedade em aceitar as mudanças em suas estruturas e atitudes (SASSAKI, 2003). As políticas públicas integracionistas destinadas às pessoas com deficiência são específicas, isoladas e habitualmente restritas à saúde, assistência social e educação especial em escolas segregadas. Na integração, as pessoas com deficiência são representadas pelos profissionais e familiares, sem voz e sem atuação direta nos assuntos referentes aos seus interesses.
A partir da consolidação dos estudos sobre a deficiência, na década de 1960 (DINIZ, 2009) cresceu o movimento de reivindicação de direitos e a luta das pessoas com deficiência para serem reconhecidas como protagonistas em suas vidas. Surgiu assim o modelo social da deficiência em contraposição ao modelo meramente biológico. O modelo social baseia-se nas condições de interação entre a sociedade e as pessoas com limitações funcionais. Acima de tudo, as pessoas com deficiência são sujeitos de direitos, com autonomia e independência para fazer suas escolhas, contando com os suportes sociais que se fizeram necessários (MAIOR, 2016).
O modelo social visa à transformação das condições existentes mediante políticas públicas inclusivas. Segundo Sassaki, no modelo social da deficiência cabe à sociedade eliminar todas as barreiras físicas, programáticas e atitudinais para que as pessoas possam ter acesso aos serviços, lugares, informações e bens necessários ao seu desenvolvimento pessoal, social, educacional e profissional (SASSAKI, 2003). Nesse modelo, as políticas universais contemplam as especificidades do segmento das pessoas com deficiência (BERMAN-BIELER, 2005).
Ao final dos anos 1970, no Brasil cresceu a consciência que resultaria no movimento político das pessoas com deficiência. Evidenciou-se o contraste entre instituições tradicionais para atendimento e associações de pessoas com deficiência (LANNA JÚNIOR, 2010), elevadas ao protagonismo e à emancipação. Entretanto, o cenário da integração-inclusão ainda persiste nos dias atuais.
fase heróica do movimento das pessoas com deficiência coincide com a abertura política, quando reunidas em Brasília em 1980, as associações construíram a pauta comum de reivindicações de seus direitos. O 1° Encontro Nacional fez nascer o sentimento de pertencimento a um grupo com problemas coletivos e, portanto, as batalhas e as conquistas deveriam visar ao espaço público (SÃO PAULO, 2011). Segundo Figueira, “se até aqui a pessoa com deficiência caminhou em silêncio, excluída ou segregada em entidades, a partir de 1981, Ano Internacional da Pessoa Deficiente, promulgado pela ONU, passou a se organizar politicamente” (FIGUEIRA, 2008). Em depoimento, Sassaki conta que “pela primeira vez surgiu a palavra pessoa para conferir dignidade e identidade ao conjunto das pessoas deficientes” (LANNA JÚNIOR, 2010).
Na década de 1980, as conquistas mais importantes correspondem à atuação no processo constituinte, quando não se permitiu uma cidadania separada para as pessoas com deficiência e sim a inserção dos seus direitos nos diversos capítulos da Constituição de 1988, conforme desejo dos ativistas do movimento.
Cerca de 15 anos depois, o movimento culmina com a ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência pelo Brasil. A participação direta e efetiva dos indivíduos não foi fruto do acaso, mas decorre do paulatino fortalecimento deste grupo populacional, que passou a exigir direitos civis, políticos, sociais e econômicos (GARCIA, 2011).
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (BRASIL, 2009) propôs o conceito de deficiência que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impedimentos. O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno determinante para a identificação da desigualdade pela deficiência (DINIZ, 2009).
É importante ressaltar que a convenção adotada pela ONU em 2006 é resultado da mobilização internacional das pessoas com deficiências. No Brasil, o tratado foi incorporado à legislação com marco constitucional, segundo o Decreto 6.949/2009 e, como tal, seus comandados determinam a mudança conceitual da deficiência e da terminologia para pessoas com deficiência (BRASIL, 2009).
A deficiência é um conceito em evolução, de caráter multidimensional, e o envolvimento da pessoa com deficiência na vida comunitária depende de a sociedade assumir sua responsabilidade no processo de inclusão, visto que a deficiência é uma construção social. Esse novo conceito não se limita ao atributo biológico, pois se refere à interação entre a pessoa e as barreiras ou os elementos facilitadores existentes nas atitudes e na provisão de acessibilidade e de tecnologia assistiva como resultado das políticas públicas (MAIOR, 2016). Em outras palavras, o conceito de pessoa com deficiência presente na convenção supera as leis tradicionais que normalmente baseiam-se no aspecto clínico da deficiência. As limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais são consideradas atributos das pessoas, que podem ou não gerar restrições para o exercício dos direitos, dependendo das barreiras sociais e culturais que impeçam a participação dos cidadãos com tais limitações (FONSECA, 2007).
A mesma pessoa com limitação funcional encontrará condições para realizar atividades e participar na comunidade na proporção direta dos apoios sociais existentes. Isso significa dizer que o meio é responsável pela deficiência imposta às pessoas. Entende-se, portanto, que deficiência é uma questão coletiva e da esfera pública, sendo obrigação dos países proverem todas as questões que efetivamente garantam o exercício dos direitos humanos. Por exemplo, na concepção de novos espaços, políticas, programas, produtos e serviços, o desenho deve ser sempre universal e inclusivo, para que não mais se construam obstáculos que impeçam a participação das pessoas com deficiência (LOPES, 2014).
No âmbito federal, foi criada em 1986 a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde), responsável pela Política Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência e, em 1999, surgiu o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Conade). A partir de 2006 foram realizadas as Conferências dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que reúnem ativistas, técnicos e familiares envolvidos com inclusão social.
A noção de diversidade humana, igualdade de direitos e respeito às diferenças caracterizam o paradigma dos direitos humanos, modelo que assegura, às pessoas com deficiência, dignidade, autonomia e direito de fazer suas escolhas. A nova percepção motivou a mudança da Corde para a Secretaria dos Direitos Humanos em 1995. Em 2009 a coordenadoria deu lugar à Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, mantida na estrutura do Ministério dos Direitos Humanos em 2017. Cabe à secretaria propor e avaliar as leis e decretos, articular as políticas setoriais, implementar a agenda de inclusão e dar apoio aos entes federados e organizações não governamentais.
O conjunto das leis brasileiras destinadas aos direitos das pessoas com deficiência é reconhecido como um dos mais abrangentes do mundo. Antes da Constituição Federal de 1988 não havia normas sobre as pessoas com deficiência, à exceção de regulamentos da Educação Especial e da Legião Brasileira de Assistência (LBA).
Os direitos gerais e específicos do segmento encontram-se distribuídos em vários artigos constitucionais. A política de inclusão, a acessibilidade, as garantias para surdos, cegos e pessoas com baixa visão têm leis próprias. Outra parte importante dos direitos está inserida, de forma transversal, na legislação geral da saúde, educação, trabalho, proteção social, cultura, esporte, etc. As leis mais recentes apresentam o recorte referente à pessoa com deficiência, como, por exemplo, nos programas habitacionais públicos e na política de mobilidade urbana com acessibilidade (MAIOR, 2015).
A primeira lei federal abrangente sobre as pessoas com deficiência é a Lei 7.853/1989 (regulamentada pelo Decreto 3.298/1999). A lei dispõe sobre o apoio às pessoas portadoras de deficiência, sua integração social, sobre a Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência (Corde) e institui a tutela jurisdicional de interesses coletivos ou difusos dessas pessoas, disciplina a atuação do Ministério Público e define crimes.
A acessibilidade é tratada nas Leis 10.048 e 10.098/2000 e no Decreto 5296/2004, que regulamentam a prioridade de atendimento às pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida (idosos, gestantes) e estabelece normas para a promoção da acessibilidade. Esse decreto é o mais conhecido entre as pessoas com deficiência porque disciplina as condições que impactam sua vida cotidiana. O decreto trata da acessibilidade amplamente: acesso aos espaços públicos e edificações, moradias, bens culturais imóveis, todos os modais de transportes coletivos e terminais de embarque e desembarque.
Da mesma forma, a legislação assegura a acessibilidade na comunicação e informação, telefonia fixa e móvel, legendas, janela com intérprete de Libras, audiodescrição de imagens para cegos na televisão, no cinema, no teatro, em campanhas publicitárias e políticas; sites acessíveis e tecnologia assistiva (equipamentos que conferem autonomia, desde talher adaptado à embreagem manual de carro ou o programa computacional de leitura da tela para cegos.
A Lei 10.436/2002 é específica para a pessoa surda e tornou oficial a Língua Brasileira de Sinais (Libras), mantido o português escrito como segunda língua. É obrigatória a capacitação dos agentes públicos em Libras. O Decreto 5626/2005 define a educação bilíngue, a formação de tradutores e guias-intérpretes de Libras, cuja profissão foi regulamentada pela Lei 12.319/2010, permitindo concursos públicos e contratação desses profissionais. As pessoas cegas ou com baixa visão, após a Lei 11.126/2005 e o Decreto 5904/2006, podem ingressar e permanecer com o cão-guia em ambientes e transportes coletivos, em lugar preferencial demarcado.
A política afirmativa mais importante para as pessoas com deficiência é o acesso ao mercado de trabalho. A Lei 8.112/1990 determinou a reserva de cargos nos concursos públicos e a Lei 8.213/1991 estabeleceu a reserva de 2 a 5% dos cargos nas empresas com 100 ou mais empregados, para beneficiários reabilitados e pessoas com deficiência capacitadas profissionalmente. Apesar da fiscalização, de ações de esclarecimento e a aplicação de multas, ainda há grande resistência dos empresários em contratar trabalhadores com deficiência, por discriminação e por se recusarem a tornar os ambientes de trabalho acessíveis. Algumas sentenças judiciais aceitam as justificativas dos empresários e perpetuam a injusta exclusão das pessoas com deficiência.
O direito à educação especial está assegurado na Lei 9.394/1996, referente às bases da educação nacional, e prevê o atendimento educacional especializado, com recursos pedagógicos específicos para cada aluno com deficiência. Em 2007, o MEC editou a Política de educação especial na perspectiva da educação inclusiva, obedecendo à Convenção da ONU: sistema de ensino inclusivo, com aula na classe comum e atendimento educacional especializado em turno oposto, para garantir a inclusão com qualidade. São exigidas: sala de recursos multifuncionais, instalações, mobiliário e transporte escolar acessíveis, formação de professores para o atendimento de alunos surdos na educação bilíngue e para o ensino do sistema Braille aos alunos cegos ou com baixa visão, além de material didático acessível (MAIOR, 2015).
Apesar do avanço de escolarização das pessoas com deficiência nas escolas regulares inclusivas, persiste a defesa das escolas especiais principalmente para alunos com deficiência intelectual e múltipla, pois parte da sociedade ainda considera o antigo modelo de atendimento mais adequado e usa sua força política para persistir segregada.
A partir da recente Lei 13.409/2016, tornou-se obrigatória a reserva de vagas para o ingresso de alunos com deficiência nas escolas técnicas e nas instituições de ensino superior federais. Espera-se que essa medida reverta a insuficiente participação de estudantes com deficiência e promova a cultura inclusiva nos nichos de formação profissional e acadêmica.
A Lei 8.742/1993 estabeleceu o atendimento da pessoa com deficiência em diversos tipos de serviços da assistência social, tais como residências inclusivas, modelo de moradia com apoios para a autonomia e a vida independente na comunidade.
A lei também define a concessão do benefício de prestação continuada (BPC), no valor de um salário mínimo mensal, destinado ao enfretamento da situação de extrema pobreza de vida de muitas pessoas com deficiência.
Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, homologada em 2006 pela Organização das Nações Unidas (ONU), é o mais recente tratado internacional de direitos humanos e foi o primeiro a contar com a voz dos movimentos sociais na fase de elaboração (PAULA, 2008). Sob o lema Nada sobre nós, sem nós, o documento apresenta o conjunto de medidas a serem cumpridas pela sociedade e pelos governos, com igual responsabilidade, visando à justiça social advinda da equiparação de oportunidades.
No Brasil, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência foi ratificada com base no § 3º do artigo 5º da Constituição, incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004, passando a marco constitucional. O Decreto Legislativo 186/2008 (BRASIL, 2008) ratificou-a e o Decreto 6.949/2009 promulgou a Convenção para efeitos internos (BRASIL, 2009).
É a única convenção com status constitucional. São princípios da convenção: a autonomia, a liberdade de fazer as próprias escolhas, a não-discriminação, a participação e inclusão, o respeito pelas diferenças e a pessoa com deficiência como parte da diversidade humana, a igualdade de oportunidades, a acessibilidade, a igualdade de gênero e o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência.
A convenção estabelece a acessibilidade como princípio e como direito básico para a garantia de todo e qualquer direito humano (BEZERRA, 2014). O descumprimento da acessibilidade equivale à discriminação com base na deficiência. Não existe liberdade de expressão sem as tecnologias de informação e comunicação acessíveis, tal como não se realiza o acesso ao trabalho sem respeito pela diferença, transporte e acomodações acessíveis.
Devido à força constitucional, a convenção condiciona todas as leis, decretos e outras normas atinentes às pessoas com deficiência, assim como aumentaram as obrigações do Estado, em todas as esferas de governo, do segundo e terceiro setores, com ativa participação da pessoa com deficiência e das famílias (MAIOR e MEIRELLES, 2010).
Tão importante quanto a convenção é o seu Protocolo Facultativo, pois se não forem suficientes as instâncias nacionais, o Comitê da Convenção atuará no monitoramento e na apuração de denúncias de violações dos direitos humanos, individuais e coletivos, oriundos dos países signatários do documento opcional (PAULA e MAIOR, 2008).
Destaca-se o artigo 1 da convenção, o qual reflete a adoção do modelo social da deficiência:
Pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
Em 2015 foi sancionada a Lei 13.146, Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, com a proposta de alterar e complementar a legislação aos comandos da Convenção da ONU.
A ênfase no direito à acessibilidade, a garantia da educação inclusiva, a concessão de tecnologia assistiva no âmbito da reabilitação e da educação, a avaliação biopsicossocial da deficiência, o cadastro-inclusão e o auxílio inclusão para estimular a entrada no mercado de trabalho pelos beneficiários do BPC são os passos a serem conquistados. Também a aplicação do reconhecimento igual perante a lei representa um avanço legal ao determinar a alteração das medidas de interdição existentes no Código Civil e a introduzir a tomada de decisão apoiada para preservar a autonomia das pessoas com deficiência intelectual e mental, principalmente.
Sabendo que a sociedade brasileira ainda não reconhece a violência praticada contra as pessoas com deficiência, para corrigir esse quadro, a Lei 13.146/2015 dá ênfase ao enfretamento da discriminação de gênero e de outras maneiras da praticar exploração, violência e abuso contra as pessoas com deficiência. O quadro requer medidas que apurem, impeçam, resgatem e apóiem as vítimas e os agressores, especialmente quando são membros da família ou cuidadores sem preparo emocional para a responsabilidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
O movimento político das pessoas com deficiência no Brasil investe no processo de mudança cultural há cerca de quatro décadas e alcançou resultados expressivos de cidadania, partindo-se da tutela para o alcance da autonomia, ao lado da elaboração de arranjos sociais que lhes permitam exercer seus direitos em um contexto cada vez mais próximo à vida independente.
Esse caminho foi pavimentado com demandas das organizações da sociedade civil capazes de fomentar a criação de leis, das políticas e de órgãos governamentais incumbidos da promoção e defesa dos direitos humanos desse segmento.
Com a adoção dos conselhos e das conferências de direitos das pessoas com deficiência, a fiscalização das políticas públicas de inclusão passou a outro patamar, todavia não pode prescindir da força intrínseca das associações de luta com capacidade de expor suas ideias e discordar de medidas governamentais prejudiciais aos seus direitos. A liberdade de expressão do movimento da sociedade civil é indispensável para a manutenção das conquistas alcançadas. Percebe-se que a mobilização permanente das pessoas com deficiência serve de base para existirem medidas de equiparação de oportunidades implementadas pelos governos e pela própria sociedade. Embora as pessoas com deficiência cada vez mais ocupem espaços públicos, como a escola, a fábrica, os palcos, as instituições culturais, os pódios paralímpicos e estejam em cargos privados e governamentais, há uma sub-representação das mulheres com deficiência e das pessoas com deficiência intelectual, múltipla e transtorno do espectro autista entre aquelas que estão incluídas. Essa situação acontece por discriminação, falta de oportunidades e de apoios requeridos para sua autonomia e liberdade de fazer as próprias escolhas. Os novos rumos do movimento das pessoas com deficiência precisarão considerar as diferenças existentes internamente e investir na capacitação de lideranças alinhadas com o paradigma dos direitos humanos iguais para todos.
REFERÊNCIAS 
BERMAN-BIELER, R. Desenvolvimento Inclusivo: uma abordagem universal da deficiência, equipe deficiência e desenvolvimento inclusivo da região da América Latina e Caribe do Banco Mundial, 2005. Disponível em: . Acesso em: 26 jan. 2015.
BEZERRA, R. M. N. Artigo 9. Acessibilidade. In: DIAS, JOELSON et al. (Orgs.). Novos comentários à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Secretaria de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2014.
BRASIL. Decreto Nº 6.949, de 25 de agosto de 2009. Disponível em: . Acesso em: 22 jan. 2015.
BRASIL. Lei 13.146 de 6 de julho , de 2017. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2017.
CARVALHO, L.; ALMEIDA, P. Direitos humanos e pessoas com deficiência: da exclusão à inclusão, da proteção à promoção. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n.12, fev. 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 jul. 2017.
DINIZ, D.; BARBOSA, L.; SANTOS, W. R. Deficiência, direitos humanos e justiça. Sur, Rev. int. direitos human, São Paulo, v. 6, n. 11, dec. 2009.
FIGUEIRA, E. Caminhando em silêncio: uma introdução à trajetória da pessoa com deficiência na história do Brasil. São Paulo: Giz Editorial, 2008.
FONSECA, R. T. M. A ONU e o seu conceito revolucionário da pessoa com deficiência, 2007. Disponível em: . Acesso em: 15 out. 2014.
GARCIA, V. G. As pessoas com deficiência na história do Brasil. 2011. Disponível em: . Acesso em: 22 Jun. 2017.
IBGE. Censo Demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012.
LANNA JUNIOR, M. C. M. (Comp.). História do movimento político das pessoas com deficiência no Brasil. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos, Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2010.
LOPES, L. F. Artigo 1: propósito. In: DIAS, J (Org.). Novos comentários à convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência. Brasília: Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, Secretaria de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2014.
MAIOR, I. Deficiência e diferenças. São Paulo: Café Filosófico, Instituto CPFL. Exibido em 19 jun. 2016. Disponível em: . Acesso em: 12 ago. 2017. Produzido por TV Cultura. Série O valor das diferenças em um mundo compartilhado, de Benilton Bezerra Jr.
_______ . História, conceito e tipos de deficiência. São Paulo: Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2015. Disponível em:. Acesso em: 12 jun. 2017.
_______. Breve trajetória histórica do movimento das pessoas com deficiência. São Paulo: Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, 2015. Disponível em: http://violenciaedeficiencia.sedpcd.sp.gov.br/pdf/ textosApoio/Texto2.pdf. Acesso em: 12 jun. 2017.
MAIOR, I. L.; MEIRELLES, F. A Inclusão das Pessoas com deficiência é uma obrigação do estado brasileiro. In: LICHT, F. B.
SILVEIRA, N. (Orgs.). Celebrando a diversidade: o direito à inclusão. São Paulo: Planeta Educação, 2010. Disponível em: . Acesso em: 18 jul. 2017.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Relatório Mundial sobre a deficiência, 2011. São Paulo: SEDPcD, 2012.
PAULA, A. R.; MAIOR, I. M. M. L. Um mundo de todos para todos: universalização de direitos e direito à diferença. Revista Direitos Humanos. n.1, dez. 2008.
SÃO PAULO (Estado). Secretaria dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Memorial da Inclusão. 30 anos do AIPD: ano internacional das pessoas deficientes 1981-2011. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2011.
SASSAKI, R. K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA Ed., 2003.
*Izabel Maria Madeira de Loureiro Maior 
Mestre em Medicina Física e Reabilitação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora aposentada da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do Fórum UFRJ Acessível e Inclusiva – Rio de Janeiro, RJ – Brasil. Conselheira municipal e estadual dos direitos da pessoa com deficiência no Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, RJ – Brasil.
http://lattes.cnpq.br/7691713950451253
E-mail: izabelmaior@hotmail.com
Submetido em: 30/07/2017. Aprovado em: 10/09/2017. Publicado em: 03/12/2017.
Fonte: http://revista.ibict.br/inclusao/article/view/4029

FONTE deste artigo:  http://www.inclusive.org.br/arquivos/30808

sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

CARTAS LANÇADAS A UM OCEANO FORA DO TEMPO


                                     Carolina Maria de Jesus

Texto de Regina Dalcastagnè
Para Maria Clara Machado, que foi ponte.
A escrita também pode ser lugar de espera, carta lançada ao mar que talvez nunca chegue ao seu destino, daí encontros que só acontecem assim, aninhados no papel (ou na tela do computador) e na vontade de um terceiro, que escreve. 
É quando o discurso deixa de ser ferramenta de convencimento do outro e passa a ser guarida, superfície que acolhe e se entrega como possibilidade. Que este seja, então, espaço para um encontro que nunca houve: entre as escritoras Carolina Maria de Jesus (1914-1977) e Françoise Ega (1920-1976), uma martiniquense que emigrou para a França durante a Segunda Guerra Mundial. 
                                            Françoise Ega 

Não tenho intenção de fazer um trabalho comparativo entre duas autoras negras, pobres e exploradas que lutaram bravamente por seu lugar no mundo – e no campo literário. Pretendo apenas juntar duas vozes que, acredito, teriam se alegrado ao se tocar, e convidar outras pessoas a participar desse diálogo.
Quando publicou seu Quarto de despejo, em 1960, Carolina Maria de Jesus certamente não tinha ideia de quantas vidas iria atingir, não só no Brasil, mas em diferentes países, com sua narrativa. Gente que, como ela, não entrou no mundo pela sala de visitas, mas pelo quintal. 

Conceição Evaristo conta, em entrevista, do desejo de escrita que surge em sua mãe, também empregada doméstica, a partir do contato com o texto da autora: “Nas páginas da outra favelada nós nos encontrávamos. Conhecíamos, como Carolina, a aflição da fome. E daí ela percebeu que podia escrever como a outra, porque ela era também a Outra... São lindos os originais de minha mãe, caderninhos velhos, folhas faltando, exteriorizando a pobreza em que vivíamos. Ali, para além de suas carências, ela se valeu da magia da escrita e tentou, como Carolina, manipular as armas próprias do sujeito alfabetizado”.
Escrever, especialmente para aqueles que adquiriram recentemente essa capacidade, parece ser uma maneira de reafirmar sua presença no mundo. Colocar-se em palavras seria, nesse caso, uma forma de participar de uma coletividade marcada pela escrita e, ao mesmo tempo, ser reconhecido como indivíduo, portanto, único. 
Como bem mostra a repercussão da obra de Carolina Maria de Jesus, é também um modo de alcançar o outro e compartilhar experiências que costumam ser invisibilizadas nos mais diferentes discursos e espaços sociais. A potência revolucionária da escrita reside no seu convite implícito para que leitores se transformem em novos produtores, como defendia Walter Benjamin.
Françoise Ega já não era uma jovenzinha quando leu um resumo de Quarto de despejo na revista Paris Match – seu único luxo de empregada doméstica em Marselha –, enquanto ia de ônibus para o trabalho. Era uma mulher experiente de 40 anos, tinha atuação política em sua comunidade, cinco filhos pequenos para criar e nenhum tempo livre. 
Tocada pelo que sentiu ser uma experiência comum entre os seus, resolveu escrever um livro como uma carta a uma mulher que nunca veria e que, sabia bem, jamais a leria. Lettres a une noire (Cartas a uma negra), que começou a ser produzido em 1962 e só foi publicado em 1978, após a sua morte (e a de Carolina Maria de Jesus), é um impressionante apelo à compreensão de sua própria existência e do desespero de outras imigrantes em condições ainda piores do que as dela.
Assim como Dona Joana, a mãe de Conceição Evaristo, Françoise Ega se reconhece na escrita de Carolina, lembrando que “as misérias dos pobres do mundo inteiro se parecem como irmãs”. Por isso decide começar esse livro, para evitar que essas histórias de vida fossem apagadas, como tantas outras. Mas segue fazendo-o por uma necessidade própria, como se usasse o “diálogo” estabelecido para refletir sobre sua escrita e, de algum modo, aplacar sua angústia. Seus filhos riem de seu esforço, seu marido debocha de sua presunção. Ela mesma chega a duvidar do que está fazendo, mas prossegue:
Faz um mês que parei de escrever, de falar com você, Carolina, porque meu primogênito riu, ele me disse com sua lógica infantil que era ridículo escrever a uma pessoa que jamais me lerá. Eu sei, eu repito isso para mim em um sussurro, mas ele me disse em alto e bom som, tanto que seus irmãos repetiram em coro: “Tá! Por que você diz coisas a Carolina? Ela não fala francês”. Nós não falamos a mesma língua, é verdade, mas o idioma do nosso coração é o mesmo e é bom se encontrar em algum lugar, onde nossas almas se juntem. Hoje, eu retomei minha serenidade e converso com você, eu me sinto tranquila.
Do outro lado do oceano, Carolina Maria de Jesus poderia responder: “Hoje eu estou com frio. Frio interno e externo. Eu estava sentada ao sol escrevendo e supliquei, oh meu Deus!, preciso de voz”.
O livro é concebido como um conjunto de cartas, todas datadas, sendo que a primeira é de maio de 1962 e a última de 23 de junho de 1964. (Lembro que Quarto de despejo, que tem a estrutura de um diário, começa em 15 de julho de 1955 e termina em 1º de janeiro de 1960.) As cartas, que algumas vezes são tão curtas quanto bilhetes, vão adquirindo outros matizes ao longo do livro: poderiam ser páginas de um diário, ou breves crônicas, mas alcançam, de qualquer modo, unidade narrativa. 
E ganham força ao incluir outras personagens – faxineiras e empregadas domésticas, mas especialmente patroas e seus filhos mimados. Afinal, é na relação entre patrões e empregadas que vemos aflorar as tensões e o preconceito. Como quando, no auge do verão em Marselha, em seu apartamento fechado e sufocante, uma francesa estranha o fato de sua faxineira antilhana reclamar do calor ali dentro: “Apoiada em minha vassoura, eu falei da imensa sombra proporcionada pelas mangueiras, do frescor trazido pelos ventos alísios e das janelas abertas para acolhê-lo, de persianas aspirando o ar, de rios, de banhos de mar”.
A resposta saudosa de Ega, que não esconde uma ponta de indignação – completada com o relato a Carolina sobre o mau cheiro dos quartos fechados e do quão exóticas as patroas podem ser –, toma novas formas ao longo da narrativa, mas, muitas vezes, não passa de silêncio amargo, que reverbera depois, no texto. É o que acontece, por exemplo, quando ela conta da patroa que decide chamá-la de Renée, o nome da empregada afastada que ela está substituindo, porque prefere não mudar seus hábitos. 
O livro, assim, não deixa de ser também um retrato da elite francesa: pessoas mesquinhas, exploradoras, com hábitos retrógrados e um tanto estúpidas. Afinal, não é a França vislumbrada por intelectuais e turistas na Rive Gauche, mas aquela vista a partir da entrada de serviço, por sobre o cabo da vassoura e do esfregão. Como em toda a obra de Carolina Maria de Jesus, mas, especialmente, em Diário de Bitita, em que ela mostra a cara – deformada pelos séculos de escravidão – da elite brasileira:
Se o filho do patrão espancasse o filho da cozinheira, ela não podia reclamar para não perder o emprego. Mas se a cozinheira tinha filha, pobre negrinha! O filho da patroa a utilizaria para o seu noviciado sexual. Meninas que ainda estavam pensando nas bonecas, nas cirandas e cirandinhas eram brutalizadas pelos filhos do senhor Pereira, Moreira, Oliveira e outros porqueiras que vieram do além-mar.
Ao contrário de Carolina Maria de Jesus, que abandonou o trabalho doméstico – preferindo a precariedade maior da coleta e venda de material reciclável, nos termos de hoje – para poder ter tempo para a escrita, Françoise Ega (que era casada e possuía uma situação financeira muito mais estável) começou a trabalhar como faxineira para entender melhor as dificuldades de jovens imigrantes que ela auxiliava em sua comunidade. 
Não se tratava, é claro, de algum tipo de experiência antropológica, nem de uma imersão com objetivos literários. Sua escrita e seu trabalho, ao que parece, andavam juntos. Ela, com o primário completo e um curso de datilografia, podia tentar emprego em algum escritório, como seu marido insistia de vez em quando, mas o relato feito a Carolina diz outra coisa: “Eu tinha lido em um jornal que precisavam de uma datilógrafa para uma substituição. Eu me apresentei, mas a diretora do escritório me disse que o lugar já não estava vago. Ela me olhou com espanto, percebi que minha pele a surpreendeu”. Por fim, a mulher lhe oferece trabalho como faxineira.

Ao mesmo tempo em que escrevia suas cartas, Françoise Ega preparava um outro livro, Le temps des madras (O tempo de madras), com as memórias de sua infância e adolescência na Martinica (obra que certamente mereceria uma comparação com as memórias de Carolina Maria de Jesus em Diário de Bitita). 

Em Lettres a une noire, Ega fala com carinho da própria escrita. Conta do volume de folhas que cresce devagar – e de como o deboche do marido, um ex-militar que trabalha em um hospital, diminui em proporção inversa, até que ele passa a chamá-la carinhosamente de “minha escritora” –, do susto com a perda e posterior recuperação dos manuscritos, do dia em que ela entra em uma livraria para perguntar ao vendedor o que devia fazer para publicar seu livro, da preocupação com as mãos estragadas ao levar os originais para uma editora em Paris. Le temps des madras foi publicado pela L’Harmattan em 1966, mesma editora que publicou Lettres a une noire e, também postumamente, o romance inacabado L’alizé ne soufflait plus (Os alísios não sopram mais), em 2000.
Françoise Ega tenta por várias vezes estabelecer contato com Carolina Maria de Jesus. Chega a enviar o marido em busca do jornalista da Paris Match que escreveu sobre Quarto de despejo, mas, pelo jeito, nunca obteve resultado. Não consegui localizar, até agora, nenhum estudo, sequer algum comentário sobre seu livro no Brasil. Em notas, artigos e teses em inglês, francês e espanhol, o foco se concentra em Ega, sem muito cuidado em relação à destinatária de suas cartas. 
Há os que dizem que escrevia a uma amiga, outros parecem pensar que é uma personagem, têm aqueles que se referem a Carolina como “uma brasileira das favelas do Rio de Janeiro” e os que a incluem apenas em uma nota de rodapé. Pouquíssimos buscam pensar a relação estabelecida na narrativa. São textos sobre militância feminina, diáspora negra, trabalho de imigrantes e algumas raras análises literárias, em sua maioria voltadas para uma reflexão mais ampla sobre a literatura antilhana produzida por mulheres. Há, até, um tom mais condescendente, como costuma acontecer com a própria Carolina Maria de Jesus. Mas a recepção dessas obras, vasto território a ser desbravado, é assunto para uma outra discussão.
Importa, neste primeiro momento, observar a reverberação de vozes que muitos, mesmo dentro do campo literário, gostariam de ver silenciadas. Ao incluir Carolina Maria de Jesus em sua escrita, não como inspiração, ou como citação, mas como presença viva, Françoise Ega dá solidez ao seu texto e ao de sua “irmã” brasileira. Vincula-se a uma outra tradição literária, que lhe permite, enfim, ser protagonista de sua própria história. Não tenho dúvidas de que Carolina se sentiria honrada por estar ali, entre mulheres, negras e trabalhadoras, entre aquelas que pensam o mundo e, ao reconstruí-lo poeticamente, o ampliam diante de nossos olhos.
Fonte: 
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/2008-cartas-lan%C3%A7adas-a-um-oceano-fora-do-tempo.htm