quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Para refletir

Natal
Por Roberto Mangabeira Unger

O cristianismo não é, como supôs Nietzsche, a religião dos ressentidos. Mais razão teve Unamuno ao defini-lo como a religião dos derrotados. Vitoriosos, compreendeu ele, são os que se adaptam ao mundo, aceitando como horizonte a circunstância que encontram. Derrotados, de início, são aqueles que exigem que o mundo se adapte a eles. Desses derrotados, derrotados porque inconformados, depende o avanço da humanidade.

Se há sinal de que a vida não é o que parece ser é a carreira do cristianismo. Não há mensagem que contradiga mais o bom senso mundano do que a mensagem cristã. Ela surge de acontecimentos enigmáticos e paradoxais.

Um jovem judeu de periferia começa a ensinar um caminho de salvação. Intransigente e mal cercado, preocupa as autoridades políticas e religiosas, que se acertam para matá-lo. As expectativas que acalentou se frustram. Seus seguidores o renegam. Depois, sua existência e suas palavras são entendidas como prenúncios de vida maior para todos. Acabam virando diretriz de uma civilização que inventa mil maneiras de descarecterizá-las para poder domá-las.

O cristianismo recolheu do judaísmo a idéia da transcendência radical de Deus sobre o mundo e da supremacia da personalidade humana, feita à imagem e semelhança de Deus, sobre o bem impessoal. Há mais em nós -- mais em cada indíviduo e mais na raça humana -- do que há em todas as sociedades e culturas. Elas são o finito. Nós, em comparação com elas, somos o infinito preso no finito. Temos de quebrar os ídolos -- inclusive as instituições estabelecidas e as idéias reinantes -- para poder respeitar as pessoas, o espírito inexaurível enjaulado dentro de cada um de nós. Temos de construir idéias e instituições mais compatíveis com a condição do espírito.

A reafirmação da transcendência convive no cristianismo, entretanto, com a idéia que está associada ao Natal. O espírito se encarnou no mundo porque o espírito é amor. Embora transcendentes sobre o mundo, somos carentes das outras pessoas.

O mundo, porém, não está preparado para a primazia do amor porque no mundo cada um de nós está crucificado, em separado, na cruz das limitações que nosso destino social e genético nos impôs. Temos, por isso, de mudar o mundo, começando por transformar nosso relação com ele. Para isso, precisamos romper a múmia de rotinas e rendições que se vai formando em torno de cada um de nós. Desproteger-nos para poder imaginar o possível e aceitar os outros é a essência da sabedoria e o rumo da divinização.

No ambiente de semi-crença e confusão em que habitualmente vivemos, as fórmulas e os rituais da religião connvencional não exprimem adesão a esse ideário. Servem apenas como encantamento para espantar o medo da morte e para compensar a incontrolabilidade da vida.

Melhor faríamos se rejeitássemos essa falsa religião, camada da múmia que nos sufoca, e passassémos, apóstatas intranquilos, a ver o ensinamento de Cristo como a doutrina deestablizadora que ele é. Melhor se, desprovidos do encantamento, tivéssemos de enfrentar o contaste, que o cristianismo nos revelou, entre o espírito ilimitado e a situação constrangedora. A hora da nossa apostasia seria o momento da nossa conversão. Isso sim seria Natal.