segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

70 anos de desenvolvimento em 70 segundos: Empoderando as pessoas com de...

Direitos humanos e pessoas com deficiência: da exclusão à inclusão, da proteção à promoção











Descrição da imagem: Uma ciranda composta por ilustrações de figuras humanas multicoloridas, nas quais duas delas são cadeirantes.






“Pessoas com deficiência têm o direito …

ao respeito pela sua dignidade humana …
aos mesmos direitos fundamentais que os concidadãos …
a direitos civis e políticos iguais aos de outros seres humanos …
a medidas destinadas a permitir-lhes a ser o mais autossuficientes possível …
a tratamento médico, psicológico e funcional [e]
a desenvolver suas capacidades e habilidades ao máximo [e]
apressar o processo de sua integração ou reintegração social …
à segurança econômica e social e a um nível de vida decente …
de acordo com suas capacidades, a obter e manter o emprego ou se engajar em uma ocupação útil, produtiva e remunerada e se filiar a sindicatos [e] a ter suas necessidades especiais levadas em consideração em todas as etapas do planejamento econômico e social …
a viver com suas famílias ou com pais adotivos e a participar de todas as atividades criativas, recreativas e sociais [e não] serem submetidas, em relação à sua residência, a tratamento diferencial, além daquele exigido pela sua condição …
[a] serem protegidas contra toda exploração, todos os regulamentos e todo tratamento abusivo, degradante ou de natureza discriminatória …
[e] a beneficiarem-se de assistência legal qualificada quando tal assistência for indispensável para a própria proteção ou de seus bens … “
da Declaração sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, proclamada pela Assembleia Geral da ONU em 9 de dezembro de 1975




Texto de Lucio Carvalho e Patricia Almeida
Artigo originalmente publicado na Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 12, p. 77-86, fev. 2012.
Fonte original: http://www.inclusive.org.br/arquivos/30688
Sumário
1. A sociedade é um bom lugar para todas as pessoas. 2. Direitos por efetivar. 3. Comunicação, acesso à informação e o direito a uma nova narrativa. 4. Uma nova experiência de cidadania para a pessoa com deficiência.
  1. A sociedade é um bom lugar para todas as pessoas
Para além de seu significado histórico e do aporte de sua relevância jurídica, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CPCD), instituída na legislação brasileira através do Decreto 6.949 de 2009, após o trâmite no Congresso Nacional e a aprovação por maioria absoluta nas duas casas legislativas, mais que estabelecer princípios e parâmetros legais ou atender a um elenco de demandas de um determinado grupo de pessoas, compete em uma série de desafios sociais que amarram definitivamente sujeitos e instituições em torno a um modelo de convívio social que vai se descortinando aos poucos no Brasil do início deste século. Este ethos que passa a constituir-se não se realiza através da imposição de um determinado modo de vida sobre outro e nem adquire sentido social a partir do exclusivo desejo político do Estado mas, principalmente, pela permeabilidade cultural que o convívio social tem permitido nas democracias contemporâneas e pela intensa busca empreendida por segmentos sociais outrora marginalizados em torno à sua emancipação e inclusão social. Na medida em que o sentimento social passa a adquirir a capacidade de introjetar valores compreensivos em relação a pessoas e grupos até há pouco estigmatizados e a estrutura social garante normas que afirmam direitos comuns, a engrenagem social passa a mover-se com base em outro tipo de substrato, um que lhe permita a valoração do sujeito, qualquer que seja ele, no pleno exercício de seus direitos humanos fundamentais.
Mesmo que este tipo de raciocínio pareça simples e de fácil verificação, ele apenas é possível pela compreensão de que a universalização e concretização dos direitos humanos não decorrem de uma sucessão espontânea de etapas históricas, mas do deslocamento de poder que se verifica na sociedade ao longo do tempo, através de disputas, da autoafirmação e do diálogo que os grupos sociais realizam entre si e com o Estado, que é em última análise quem providencia a regulação social. Em seus estudos, Habermas (2007, p. 260) caracteriza da seguinte forma a coexistência nas sociedades multiculturais:
“Em sociedades multiculturais, a coexistência equitativa das formas de vida significa para cada cidadão uma chance segura de crescer sem perturbações em seu universo cultural de origem, e de também criar seus filhos nesse mesmo universo (…), dar-lhe continuidade ou transformá-lo.”
A organização social e, consequentemente, a forma pelas quais as normas legais são confirmadas, decorrem muitas vezes mais do conflito do que pelo acordo, e este é um processo natural na democracia. Fosse diferente, não haveria necessidade de renovadas regulagens nos acordos sociais, traduzidas na forma da legislação. É por isso que a CPCD confirma mais valores mínimos do que propriamente dita regras e finalidades; porque ela resulta em grande medida do desejo e da organização das próprias pessoas com deficiência em dar um sentido mais amplo e completo a sua própria condição humana e cidadania. Numa antecipação do que viria a confirmar-se como o caráter e extensão dos direitos humanos, Flávia Piovesan (2006, p. 28) assinala que “(…) a implementação dos direitos humanos requer a universalidade e a individualidade desses direitos, acrescidas do valor da diversidade.”
Diversidade é exatamente o termo que, proveniente dos estudos biológicos, mais tem sido utilizado na disseminação da ideia de que o ser humano não tem uma única identidade, um único corpo ou, menos ainda, uma única forma de pensar a si mesmo e agir no mundo. Tampouco a universalidade de direitos, expressos de forma totalizante, pode ser tomada como o bastante para atender o ser humano em suas particularidades. Ainda seguindo o pensamento de Piovesan (2006, p. 28): “Torna-se, contudo, insuficiente tratar o indivíduo de forma genérica, geral e irrestrita. Faz-se necessária a especificação do sujeito de direito, que passa a ser visto em sua peculiaridade e particularidade.”
Foi o antropólogo Claude Lévi-Strauss quem, por solicitação da UNESCO ao fim da Segunda Guerra Mundial, um dos principais pensadores a sedimentar o conceito de diversidade nas ciências humanas, recusando distinções hierárquicas entre os seres humanos e ajudando a fundar um sentimento planetário em um mundo que recém experimentara todos os tipos de violências possíveis derivadas principalmente dos sentimentos patrióticos de distinção racial. Através da segunda metade do séc. XX e início do atual, o conceito ganha as cores da sociedade multicultural que, entretanto, não supera as formas mais básicas de desigualdade sócio-econômicas. Porém, desde então, obtém-se o reconhecimento de que qualquer evolução deverá se operar com base em considerações fundamentais, tais como os princípios de dignidade e autonomia da pessoa humana, expressos igualmente em grande parte do direito constitucional das nações.
Mesmo que tais valores estejam enraizados de forma cada vez mais profunda na composição de forças políticas, passem a fazer parte de um desejo social comum e acessível à grande parte da população e inscrevam-se de forma declarativa como regramentos de convívio social nas matérias legais contemporâneas, ainda assim toda essa capacidade compreensiva não chega a fixar-se como realidade concreta ou como praxis efetiva plenamente, a partir de si própria. As estruturas de poder, a legitimidade cultural e as formas de organização econômico-social no mundo contemporâneo estão amarradas a uma impossibilidade de atendimento a todos os grupos sociais e, nesse aspecto, as condições de desigualdade ganham um poderoso aliado na organização deste status: a exclusão social. No texto a seguir, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2008, p. 280-281) explica o funcionamento engenhoso que promove e sustenta a exclusão:
“Se a desigualdade é um fenômeno sócio-econômico, a exclusão é sobretudo um fenômeno cultural e social, um fenômeno de civilização. Trata-se de um processo histórico através do qual uma cultura, por via de um discurso de verdade, cria o interdito e o rejeita. Estabelece um limite para além do qual só há transgressão, um lugar que atira para outro lugar, a heterotopia, todos os grupos sociais que são atingidos pelo interdito social, sejam eles a delinquência, a orientação sexual, a loucura, ou o crime. Através das ciências humanas, transformadas em disciplinas, cria-se um enorme dispositivo de normalização que, como tal, é simultaneamente qualificador e desqualificador.”
O lugar dos direitos humanos, ou melhor, de sua positivação e afirmação pública, em sociedades que querem efetivamente observar o valor da diversidade humana, deve considerar as dificuldades que esse duplo desigualdade-exclusão interpõe nas condições de vida objetiva das pessoas. Cria-se, portanto, a dependência de que a sociedade não apenas compreenda tais direitos como, principalmente, os assimile enquanto formas efetivas e condições reais de convívio democrático, mesmo que para tanto sejam necessárias medidas de recomposição política, tais como ações afirmativas e políticas públicas antidiscriminatórias.
Em outro trabalho, Flavia Piovesan (2009, p. 189) comenta as razões que levam à necessidade de organização e ação pública no sentido de promover o acesso aos direitos humanos fundamentais: “Enquanto a igualdade pressupõe formas de inclusão social, a discriminação implica a violenta exclusão e intolerância à diferença e diversidade. O que se percebe é que a proibição da exclusão, em si mesma, não resulta automaticamente na inclusão.” E, logo a seguir, complementa: “… para garantir e assegurar a igualdade não basta apenas proibir a discriminação mediante legislação repressiva. São essenciais as estratégias promocionais capazes de estimular a inserção e inclusão desses grupos socialmente vulneráveis nos espaços sociais.” A concretização dos princípios enumerados na CPCD, assim como outros tratados internacionais de direitos humanos, adquire sentido justamente a partir dos movimentos que a sociedade civil engendra junto aos espaços sociais e a partir das pressões que, levadas ao Estado e seus poderes, traduzem-se na efetividade destes direitos, sentidos por cada cidadão em sua vida cotidiana. Portanto, a garantia que o caráter constitucional dos princípios da CPCD empresta às pessoas, seus movimentos e organizações sociais é o expediente necessário para que sejam confirmadas as expectativas das próprias pessoas com deficiência em seus diálogos e disputas sociais, e isto decorre tanto do reconhecimento legal da expressão de seus enunciados como, principalmente, da incorporação de seu significado pelas próprias pessoas em todas as dimensões de sua vida civil.
  1. Direitos por efetivar
A abertura do campo político a partir da redemocratização brasileira, em fins da década de 70, e a Constituição Federal de 1988 consistem nos principais marcos da história recente que reintroduziram a participação da sociedade na organização do poder no Brasil. Esta reorganização se dá tanto em função da possibilidade de criação de novas formas associativas e de organização popular como também pela tendência crescente do Estado em fragmentar sua ação social, dependendo cada vez mais de instituições que efetivem suas políticas, enquanto ele próprio se aparelha em uma nova dinâmica gerencial e burocrática. Maria da Glória Gohn (2004, p. 23) contextualiza a seguir o momento e as formas pelas quais se estabelece, no Brasil, essa nova noção de esfera pública:
“No novo cenário, a sociedade civil se amplia para entrelaçar-se com a sociedade política, colaborando para o novo caráter contraditório e fragmentado que o Estado passa a ter nos anos 1990. Desenvolve-se o novo espaço público, denominado público não estatal, onde irão situar-se conselhos, fóruns, redes e articulações entre a sociedade civil e representantes do poder público para a gestão de parcelas da coisa pública que dizem respeito ao atendimento das demandas sociais. Essas demandas passam a ser tratadas como parte da ‘Questão Social’ do país.”
Este espaço público é justamente o cenário onde passam a se desenvolver demandas e soluções políticas já não mais tomadas como exclusivos projetos políticos de governo, mas como parte do desejo social ressignificado pelas organizações civis que passam a elaborar políticas públicas em conjunto com a sociedade e a executar medidas de atenção não mais de forma exclusiva pelo Estado. Evelina Dagnino (10, p.96) ajuda a explicar a dinâmica em que essa transição acontece:
“(…) os anos noventa foram cenário de numerosos exemplos desse trânsito da sociedade civil para o Estado. Segundo, e como conseqüência, durante esse mesmo período, o confronto e o antagonismo que vinham marcando profundamente a relação entre o Estado e a sociedade civil nas décadas anteriores cederam lugar a uma aposta na possibilidade da sua ação conjunta para o aprofundamento democrático. Essa aposta deve ser entendida num contexto onde o princípio de participação da sociedade se tornou central como característica distintiva desse projeto, subjacente ao próprio esforço de criação de espaços públicos onde o poder do Estado pudesse ser compartilhado com a sociedade.”
Se até então o ambiente social preferencial das pessoas com deficiência restringia-se aos meandros e corredores da assistência social e da atenção à saúde, é justamente a partir desse momento que o espaço civil comum vislumbra-se como possível às pessoas com deficiência e outros grupos identificados como minorias marginalizadas. As demandas garantistas de mínima condição de sobrevivência passam a dar lugar ao desejo de coexistência social, mesmo que continue a desenvolver-se em paralelo o modelo de atenção médico-assistencial que por tanto tempo propugnou pela defesa de seus direitos através de uma intervenção radical em suas condições de participação na vida civil. Ao mesmo tempo, a sociedade obriga-se a reconhecer e nominar pessoas que de outro modo viveriam e morreriam encobertas pela invisibilidade social e anomia ou, mais simplesmente, afastadas do convívio social e alijadas de condições de acesso à cultura comum da sociedade, perpetuando o caráter da estigmatização observado ainda na década de 60 por cientistas como o canadense Erving Goffman (2008, p.42-43), em um texto já clássico nas ciências humanas:
“O momento crítico na vida do indivíduo protegido, aquele em que o círculo doméstico não pode mais protegê-lo, varia segundo a classe social, lugar de residência e tipo de estigma mas, em cada caso, a sua aparição dará origem a uma experiência moral. Assim, frequentemente se assinala o ingresso na escola pública como a ocasião para a aprendizagem do estigma (…).É interessante notar que, quanto maiores as “desvantagens” da criança, mais provável é que ela seja enviada para uma escola de pessoas de sua espécie e que conheça mais rapidamente a opinião que o público em geral tem dela. Dir-lhe-ão que junto a “seus iguais” se sentirá melhor, e assim aprenderá que aquilo que considerava como o universo de seus iguais estava errado e que o mundo que é realmente o seu é bem menor.”
É precisamente frente à noção de proteção social totalizante que boa parte dos movimentos sociais em torno das pessoas com deficiência então passam a organizar-se, tendo por base a afirmação da dignidade humana, em qualquer circunstância, a apropriação do sentido de igualdade de direitos emprestado dos direitos humanos e a busca pela inclusão social em todos os espaços públicos disponíveis na sociedade, garantidos pelo respeito às características particulares de cada indivíduo.
É importante notar que, ao contrário de outros grupos sociais visivelmente homogêneos e com necessidades compartilhadas, as pessoas com deficiência têm na própria diversidade uma de suas mais evidentes características, uma vez que há uma série de aspectos particulares e condições funcionais que podem expressar-se organicamente de forma distinta nos indivíduos. Essa diversidade de expressão nas características humanas, que é considerada na própria CPCD, não deve ser tomada como um mero princípio enunciativo, mas decorrente das relações entre estas características individuais, o meio e as barreiras sociais que amplificam ou mesmo instituem o interdito na fruição dos direitos humanos fundamentais, como o simples direito de ir e vir. Este é o resultado do trânsito do conceito biomédico da deficiência para o seu modelo social, base da compreensão e dos direitos que a CPCD passa a assegurar, fundindo-se aos princípios constitucionais, no Brasil, pelas características de sua incorporação legal. Débora Diniz (2010, p. 62) aponta a esse respeito:
“According to the Convention, the new understanding of disability should not ignore the bodily impairments, nor is it restricted to listing them. This redefinition of disability as a combination of a biomedical framework, which lists bodily impairments, and a human rights perspective, which denounces this type of oppression, was not a creation of the United Nations alone. For over four decades, the so-called social model of disability provoked the international political and academic debate on the failure of the biomedical concept of disability to promote equality between disabled and non-disabled people.”
Esta redefinição conceitual é fundamental na própria revitalização dos movimentos de defesa de direitos das pessoas com deficiência e passa a agregar de forma definitiva o sentido de “cidadania” às possibilidades existenciais dos indivíduos, porque amparado nas normas legais e baseado no mais amplo reconhecimento social e político. Izabel Maior (2010, p.32) comenta o impacto da CPCD da seguinte forma:
“A mudança de conceituação que retira a deficiência da pessoa e a remete para o meio, bem como as obrigações assumidas pelos Estados-Parte, seria suficiente para recompensar o trabalho do movimento das pessoas com deficiência. Porém, a Convenção supera as expectativas ao cuidar dos direitos civis e políticos, econômicos, sociais e culturais dos cidadãos com deficiência e, também, ao considerar esse segmento como parte da diversidade humana.”
A CPCD, portanto, além de ressignificar legalmente o conceito de deficiência, abre-se como uma oportunidade inédita de ação política a ser plenamente explorada pelo Estado e também pela sociedade civil, enfim configurada de forma mais diversa e mais descrita a sua própria semelhança.
De posse do que já foi denominado pela jornalista Patricia Almeida (2010) por “carta de alforria das pessoas com deficiência”, e da perspectiva presente de maior inclusão das pessoas com deficiência na vida social do país, os desafios que se apresentam à sociedade podem ser expressos de distintas maneiras. A mais convencional delas confere aos direitos o mero caráter de demandas, como se tratassem de soluções que, tomadas caso a caso, pudessem “reparar” a sociedade e permitir o ingresso puro e simples das pessoas com deficiência na vida social. Em que pese muitos destes “reparos”, “ajustes” ou mesmo “adaptações sociais”, mostrem-se efetivamente necessários, caso os direitos consagrados na CPCD vejam-se reduzidos a um conjunto de justificativas de intervenção que não rompam efetivamente com o caráter de ação assistencial através da qual as pessoas com deficiência podem ser “aceitas” na sociedade, sua compreensão permanecerá limitada pelo mesmo conjunto de idéias e praxis que caracterizou o período protetivo de seus direitos. Ora, tal perspectiva não somente corre o risco de exilar talvez a mais importante dos princípios expressos na CPCD, que é a capacidade do sujeito em providenciar e manter sua autonomia, como ainda fragmentar a percepção das experiências sociais e individuais das distintas formas de deficiência, como se obedecessem a critérios específicos de confirmação do direito à cidadania, direito essencial que se quer implementado com respeito às particularidades individuais das pessoas, quaisquer que sejam elas.
Avançar na implementação dos direitos das pessoas com deficiência tendo por base os princípios e finalidades da CPCD requer que se observem, portanto, dois critérios fundamentais: o indivíduo deve ser considerado como sujeito pleno de direitos e receber o apoio social necessário ao desenvolvimento e manutenção desse status; seus direitos devem ser respeitados e, verificadas condições precárias de sua efetivação, garantidos pelas instâncias jurídicas cabíveis e promovidos pelo Estado e pela sociedade civil. Além disso, sua dignidade não deve ser objeto de culpabilização, vulnerabilização, vitimização ou exploração indevida, mas tomada como um valor social a providenciar-se e compartilhar-se em e sob todos os aspectos. Amartya Sen (2008, p. 217), prêmio Nobel de Economia, explica como a promoção de condições de igualdade adquire efeito em comparação ao custo de combate às diferentes formas de exclusão:
“Políticas igualitaristas para desfazer desigualdades associadas à diversidade humana são muito menos problemáticas do ponto de vista dos incentivos do que políticas para desfazer desigualdades que surgem de diferenças em esforço e empenho, das quais tem tratado boa parte da literatura sobre incentivos.”
A efetivação dos direitos declarados na CPCD depende, além de garantias legais expressas nas normas infraconstitucionais, do mútuo esforço que Estado e sociedade civil devem empreender também na promoção de uma narrativa social que minimize os efeitos culturais negativos acumulados em muito tempo de anomia e discriminação, adquirindo sentido pela confirmação do alcance universal dos direitos humanos e de um espaço público apto a desenvolver melhores condições e acesso à cidadania para todas as pessoas.
  1. Comunicação, acesso à informação e o direito a uma nova narrativa
A concepção de um esforço para a promoção de elementos culturais voltados a sedimentação dos direitos humanos das pessoas com deficiência e dos valores e princípios recém firmados pela CPCD tem uma história importante no Brasil recente. Seja através do esforço de formação dirigido aos meios de comunicação e aos seus profissionais ou por uma mais ostensiva presença das pessoas com deficiência nos próprios meios de comunicação e produções culturais, a assimilação de sua presença social tem sido paulatinamente libertada dos preconceitos vinculados ao senso comum e estereótipos.
Muito embora ainda subsista em muitos meios de comunicação uma narrativa social baseada em estereotipias e na visão dualista negação/superação, aos poucos se vê que esse tipo de imagem muitas vezes nem sequer representa a realidade das pessoas retratadas, mas sim uma compreensão parcial e unilateral da deficiência. Se tampouco pode ser benéfica a propagação de um discurso que vitimize as pessoas com deficiência e negue sua mais elementar condição de direito e acesso à cidadania, igualmente o estereótipo “superacionista” desqualifica a necessidade de que a sociedade incorpore os valores individuais das pessoas com deficiência como uma sua própria parte, inextirpável e insubstituível. A jornalista Ana Maria Morales Crespo (2010) empresta uma contextualização esclarecedora nesse sentido:
“(…) até então, existiam conceitos inteiramente equivocados, segundo os quais havia apenas dois tipos de deficientes: o coitadinho e o super-herói. Basicamente, essas duas imagens são faces de uma mesma moeda. O deficiente coitadinho seria incapaz para tudo, inclusive e especialmente para tomar suas próprias decisões, ou seja, é um ser digno de pena. Já, o super-herói seria digno de grande admiração, em virtude de sua grande coragem e imensa força de vontade. Estas duas visões — embora diferentes — inspiram, cada uma a seu modo, atitudes sempre danosas para inclusão e a dignidade dos portadores de deficiência. De um lado, a imagem de coitadinho inspira atitudes paternalistas, assistencialistas e caritativas, ou seja, exclui toda noção de respeito aos mais básicos direitos como, por exemplo, o da autodeterminação. De outro lado, a visão de super-herói induz a que se desconsidere a necessidade de a sociedade remover os obstáculos que dificultam a vida dos deficientes, já que a força de vontade, a coragem e a determinação dessas pessoas seriam suficientes para que fossem bem-sucedidas na vida e, em decorrência, serem integradas à sociedade. Neste caso, a noção de cidadão com direitos também é excluída.”
Ainda em 2003, a ANDI – Agência de Notícias dos Direitos da Infância, publicava o manual Mídia e Deficiência, no qual a cobertura de imprensa era criteriosamente analisada e discutia-se a necessidade de que o jornalismo começasse a perceber a realidade e os direitos das pessoas com deficiência tendo por base um sentido de cidadania comum. Ali, em artigo de Rosangela Berman Bieler (2003, p.33), se vê que todo esse esforço já se encontrava em pleno curso e que o desejo por inclusão social já não necessitava mais ser forjado, mas apenas descortinado:
“Estamos falando de diversidade: uma nova sociedade, de e para todos os homens e mulheres de todas as idades e condições físicas, de todas as origens, raças, culturas, religiões, opções sexuais e ideológicas, condições sociais. O único tipo de sociedade que pode ser sustentável e permitir verdadeiro e completo desenvolvimento humano.”
Da mesma forma pela qual a narrativa clássica, repleta de uma linguagem condescendente ou piedosa, passou a ser substituída por conceitos mais simples e acessíveis, as próprias organizações civis que lidam diretamente com a temática das deficiências tomaram para si a tarefa de ressignificar conceitos do senso comum, abolindo qualquer terminologia de cunho discriminatório. Romeu Sassaki (2010, p. 16) resumiu da seguinte forma os princípios de adoção de terminologias:
“(a) Não camuflar ou negar a deficiência; (b) Mostrar com dignidade a realidade da deficiência; (c) Valorizar as diferenças e necessidades decorrentes da deficiência; (d) Não aceitar o consolo da falsa idéia de que todo mundo tem deficiência; (e) Não aceitar atitudes condescendentes, como a de que “aceitaremos vocês fazendo de conta que não têm deficiência”; (f) Combater eufemismos; (g) Defender a igualdade em dignidade e direitos humanos; (h) Identificar nas diferenças todos os direitos que lhes são pertinentes e a partir daí encontrar medidas específicas para o Estado e a sociedade diminuírem ou eliminarem as “restrições de participação”, ou seja, as dificuldades ou incapacidades causadas pelos ambientes humano e físico contra as pessoas com deficiência”.
A evolução terminológica, portanto, distingue-se do “politicamente correto” na medida em que considera a deficiência e suas características como elemento constituinte da pessoa e a pessoa como constituinte e elemento final da sociedade.
Também o assim chamado merchandising social vem sendo amplamente utilizado como catalisador do interesse público em relação às pessoas com deficiência, outras minorias e temas socialmente sensíveis, principalmente através das telenovelas, colecionando elogios, mas também críticas contundentes. A despeito de consistir em um método de inserção objetiva de um discurso pretensamente educativo, a prática está inserida em um contexto autoral que depende, em última análise, da vontade do autor e também dos interesses do proprietário do meio. É muito relevante, portanto, que a sociedade mantenha-se atenta a cada situação especificamente, porque se trata de um meio de grande penetração social, atingindo um alto grau de valor, considerando os baixos índices de escolaridade da população e a consequente vulnerabilidade sócio-cultural. Ademais o poder de influência da mídia está mais do que comprovado e o que se espera é que seus meios, inclusive o merchandising social, sejam utilizados na promoção da dignidade e, principalmente, de todos os direitos humanos.
Um último elemento a considerar ainda sobre a importância da comunicação e seus meios diz respeito à acessibilidade e ao direito ao acesso à informação. Conceito normalmente associado a providências materiais ou arquitetônicas, a acessibilidade se aplica e muito sobre os meios de comunicação e de registro da informação, consistindo matéria específica do Art. 9º e do Art. 21º da CPCD. O direito ao acesso à informação envolve mais do que meras adaptações, diz respeito ao desenvolvimento e a opção por uma matriz tecnológica capaz de suportar às necessidades específicas de todas as pessoas, além da eliminação de barreiras sociais. Um amplo leque de recursos e serviços já se encontram disponíveis para possibilitar este acesso à comunicação, tais como o braile, a audiodescrição, libras e outros recursos disponíveis graças às tecnologias assistivas e que compreendem ajudas técnicas, entretanto há muitas dificuldades de que tais recursos sejam disponibilizados e garantidos, como elementos de direito que são, às pessoas com deficiência. Tais dificuldades, entretanto, não devem ser tomadas meramente como produtos de demandas específicas, mas como violações que impactam direitos constitucionais, e dessa forma espera-se que sejam abordadas pela sociedade e consideradas pelos poderes do Estado.
  1. Uma nova experiência de cidadania para a pessoa com deficiência
Pouco restaria a fazer para a garantia da igualdade na sociedade caso os direitos fundamentais estivessem todos, de antemão, implementados. No entanto, a sociedade é heterogênea em sua essência e é a partir dos conflitos entre seus grupos que se pode apreender o estado de seu desenvolvimento legal e moral. Quando determinado grupo goza de seus direitos a pleno e outro desconhece que os têm, é sinal de que, a despeito da existência de qualquer declaração prévia de igualdade, a desigualdade enraizou-se em suas vidas de tal modo que é necessário que a sociedade parta sem demora em busca de um novo tipo de consenso. Embora necessário, o simples rompimento do véu de invisibilidade social que paira sobre as pessoas com deficiência não trará resultados observáveis caso indicadores precisos de desenvolvimento social não se consolidem em suas condições de vida. Por isso é que a cidadania não pode ser definida em um conceito, mas somente pela experiência, e a sua exata medida está na plenitude de acesso que todo e cada indivíduo tem em relação à vida social e aos bens culturais.
Talvez não exista maior consenso, na contemporaneidade, do que o creditado à educação como fundamento de emancipação do indivíduo e oportunidade para a equiparação de direitos. Não é difícil entender as razões para isso, mas é muito difícil compreender como, em posse de uma idéia aparentemente tão clara, resultem ainda tão preocupantes, no Brasil, os dados sobre evasão ou analfabetismo funcional, por exemplo[1]. Por mais que a sociedade brasileira encontre e decida-se por outras prioridades em relação às próprias possibilidades de desenvolvimento social, as chances efetivas de que se tornem inócuas sem que se garanta o pleno e universal acesso à educação são muito grandes. A educação, mais que um direito fundamental, é um direito insubstituível. Não há nada que possa equiparar-se a ela enquanto força propulsora de justiça social. É o que diz a UNESCO, em relatório organizado por Jacques Delors (2010, p.26), “Ao permitir que todos tenham acesso ao conhecimento, a educação desempenha um papel bem concreto na plena realização desta tarefa universal: ajudar a compreender o mundo e o outro, a fim de que cada um adquira maior compreensão de si mesmo.”
Definida como o exercício da liberdade, a autonomia é desta dependente. Viver com autonomia é o desejo de todo o ser humano, e não há nada que possa ser mais digno ou importante que isto. Mas nem a autonomia e nem a liberdade podem ser decretadas a quem quer que seja. A imposição da liberdade é um paradoxo, assim como se trata de um esforço dissociativo imaginar a liberdade de uns e não a de outros e é por isto mesmo que devem ser universais os direitos humanos. Ao longo da história, pessoas com deficiência têm vivido com maior ou menor liberdade e com menos ou mais condições para o seu exercício, ou seja, de expressão de sua autonomia. Na medida em que há o reconhecimento de que sua capacidade de expressão é legítima, de que suas necessidades são autênticas e, mais que isto, de que tal capacidade está autenticada pela aquisição e afirmação de sua própria competência política – e de que não está agindo meramente pela concessão de outros grupos sociais ou pela assistência direta do Estado – a pessoa com deficiência caminha irreversivelmente em direção a sua plena cidadania. O filósofo alemão Axel Honneth (2009, p. 364) define da seguinte forma a íntima relação entre reconhecimento e autonomia:
“No que antecedeu, eu reiteradamente apontei que os sujeitos dependem do reconhecimento tanto de suas necessidades como de suas convicções e habilidades para poderem participar autonomamente da vida social; não basta conceber sua autonomia tão somente como resultado do respeito intersubjetivo por sua competência racional de formar juízo e tomar decisão; ao contrário, é necessária adicionalmente uma valorização da natureza particular de suas necessidades e de seu desempenho individual. Somente quando cidadãs e cidadãos puderem saber-se estimados e reconhecidos em todos estes elementos de sua personalidade, eles estarão em condições de se apresentarem publicamente com autoestima (…).”
Obtida exclusivamente pela via social, a cidadania é o próprio reconhecimento dando espaço a novas experiências individuais. Sentir-se cidadão é uma experiência impossível de ser levada a efeito individualmente, dá-se pela naturalização das relações e pelo uso de uma linguagem e compreensão comuns, mesmo que por meios distintos. A cidadania pressupõe a mútua responsabilidade, como explica Edgar Morin (2006, p. 74): “Somos verdadeiramente cidadãos, dissemos, quando nos sentimos solidários e responsáveis.” e, ainda segundo ele, depende do princípio de inclusão (2006, p. 122): “O princípio de inclusão é tão fundamental quanto os outros princípios. Supõe, para os humanos, a possibilidade de comunicação entre os sujeitos de uma mesma espécie, de uma mesma cultura, de uma mesma sociedade.” Para as pessoas com deficiência, novas experiências de cidadania dependem da migração do sentido de proteção legal ao sentido de monitoramento, da ostensiva proteção social à efetiva promoção de direitos, da dependência e tutela ao empoderamento. Acima de tudo, partilhar dos direitos humanos fundamentais que alcançam a todos para, enfim, conviver em condições de igualdade a todas as demais pessoas, nem mais nem menos do que ninguém.
[1] Ver Relatório de Monitoramento de Educação para Todos de 2010 da UNESCO, disponível em
Referências
ALMEIDA, Patricia. Convenção: a carta de alforria das pessoas com deficiência. Inclusive: inclusão e cidadania. [online]. 2009, 24 jan. [citado 2010-10-03]. Disponível em .
BIELER, Rosangela Berman. Inclusão e cooperação universal. In: Veet Vivarta (coord.). Mídia e deficiência. Brasília: Andi/Fundação Banco do Brasil: 2003. p. 31-33
CRESPO, Ana Maria Morales. Pessoas com deficiência e a construção da cidadania. ARTS. [online]. s.d. [citado 2010-10-16]. Disponível em .
DAGNINO, Evelina. Sociedade civil, participação e cidadania: de que estamos falando? In: Daniel Mato (coord.), Políticas de ciudadanía y sociedad civil en tiempos de globalización. Caracas: FACES, Universidad Central de Venezuela, 2004. p. 95-110
DELORS, Jacques. Educação, um tesouro a descobrir: relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre educação para o século XXIBrasília: UNESCO/Faber Castell, 2010. 47 p.
DINIZ, Débora; BARBOSA, Livia; SANTOS, Wederson Rufino dos. Disability, Human Rights and Justice. Su

70 Anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos




As Mulheres e Os Direitos Humanos

Por Carlos Alberto Lungarzo
Anistia Internacional (USA) – Reg. 2152711

Hoje, em pelo menos uma metade do planeta, a teoria dos DH básicos constitui um consenso. Mesmo que existam alguns elementos isolados e sombrios, que assomam suas horríveis cabeças em diversos meios (especialmente nos setores conservadores da política e nas forças de repressão), exigindo a volta da tortura e da pena de morte, e se opondo a igualdade racial, em geral, quase ninguém contesta abertamente sua validade. Entretanto, apesar dessa coincidência, sua aplicação mínima é inatingível em quase todo o continente americano e parte da Europa.
Pode imaginar-se, então, como era o desespero para a metade da Humanidade que os DH visam proteger, há menos de um século: as mulheres não tinham direitos formais nem reais. Ainda hoje, apesar de que a teoria dos DH tem sido estendida formalmente às mulheres, sua aplicação prática é ainda mais difícil que seu equivalente no caso masculino. Isso acontece porque, além da discriminação que existe nos empregos, na vida pública, na atividade intelectual, na política, a mulher é ainda explorada no lar e na vida sexual.
Como dizia o grande revolucionário vietnamita Nguyễn Sinh Cung, que nossa geração conheceu por seu nome de batalha Hồ CHÍ MINH (o que dá luz), nos duríssimos dias da luta daquele país por sua autonomia, a mulher sofre uma tripla opressão: “Ela é oprimida pelo sistema social, pelo clã e pelo marido”.
No obstante, a intuição dos Direitos de Mulher é muito antiga, e a primeira reivindicação dos Direitos Humanos em geral foram afirmados explicitamente, pela primeira vez, por uma mulher, Antígone.

O Desafio Feminino

Até o século 5º antes de Cristo, não havia sinais do protagonismo da mulher na vida pública, salvo por breves aparições em algumas comédias e tragédias. Tampouco ninguém tinha formulado o valor dos DH naturais, aqueles que, como dirá depois o jurista Ulpiano, “Deus dá a todos os animais e não apenas aos homens”.
Na Grécia Clássica, inclusive dentro de sua restrita democracia (que só atingia homens adultos, livres e não estrangeiros), a sociedade parecia pensar que os direitos formais gerados pelas guerras e pelo domínio de classe eram “naturais”. Afirmava-se que eram desse jeito porque não podiam ser de outro, e que ninguém poderia questioná-los, pois o direito de propriedade, de mandar sobre os outros, de punir os infratores da sociedade, eram direitos tão evidentes como os fenômenos naturais, tormentas e chuvas.
Entretanto, embora esta sacralidade do direito positivo era comum nos povos monoteístas, e se transformou em regra de ouro durante o  cristianismo, na Grécia pagã ainda existia um resquício para a liberdade, que o dramaturgo Sófocles (por volta de -450) personifica na heroínaAntígona.
Polinices e Etéocles, órfãos de Édipo, rei de Tebas, brigam entre si pela herança do governo da cidade e ambos morrem na luta. Creonte, irmão de Édipo, assume o poder e permite enterrar o cadáver de Etéocles, mas não o de Polinices, que era considerado traidor, pois tinha sido ajudado por inimigos da cidade. Creonte aplicou o direito positivo da época que proibia o funeral de traidores. Antígona, irmã dos mortos, desafia a proibição do tio e tenta sepultar o corpo de Polinices. Creonte manda prende-la e lhe pergunta se ela tinha ousado desobedecer suas leis. Num parágrafo célebre, Antígona responde com um argumento que se tornou símbolo do direito à liberdade de consciência:
Sim, pois não foi Zeus que deu [essas leis]
Nem a Justiça, que habita com os Deuses subterrâneos,
Quem delineou estas leis para todos os filhos dos homens;
Nem eu acreditei que teus editais [fossem] fortes o suficiente,
Vindos de um homem mortal, para reduzir ao Nada
As leis imutáveis não escritas de Deus.
Elas não são de hoje nem de ontem,
Mas existem desde sempre, e não pode o homem afirmar
Quando apareceram
(Da versão de Harvard Classics,volume 8, parte 6, 493/501, traduzida por E. H. Plumptre.)
Esta forma de pensamento de Antígone talvez teria conduzido a sociedade ateniense ao reconhecimento do valor da consciência acima da autoridade, do militarismo e do nacionalismo, já que o Deus a que ela se refere (Théus) é uma representação geral da gênese do Universo. Entretanto, alguns séculos depois, o cristianismo deu a Deus um caráter pessoal (interpretável pelos padres), tornando o direito natural numa forma arbitrária de direitos revelado. A Humanidade atrasou-se 20 séculos.
O filósofo inglês Stuart Mill (1806-1873), uma mente avançadíssima para sua época, denunciava que o sistema patriarcal era tão antigo como a humanidade, e escreveu um famoso livro sobre a opressão feminina:
Mill percebeu que a condição feminina é uma forma de escravidão. Mas, outras formas de dominação semelhantes que ele não menciona (omilitarismo e o classismo, por exemplo) foram geradas pelo mesmo método que a dominação da mulher: pessoas mais fortes, melhor armadas, mais rápidas, assumiram domínio sobre outras, e depois, sua opressão ficou justificada através de regulamentos e cumplicidades.
Em quase todas as culturas, a mulher ficou relegada à reprodução e ao lar, mas, apesar de sua falta de liberdade e de seu perfil discreto, a maior parte das religiões apresentou o feminino como nocivo e perigoso. Em poucas passagens da Bíblia se reconhece a importância de alguma mulher (como a juíza Deborah), mas em muitas outras, o feminino é tratado com desprezo. Por exemplo:
[Depois de uma batalha]. E se encontras entre os cativos uma linda mulher, e a desejas, deves apropriar-te dela e transformá-la em tua esposa –DT 21:11
Alguns sugerem que o Cristianismo teria favorecido à mulher, mas as passagens do Evangelho onde se demoniza o feminino são majoritárias. As singelas gentilezas de Lucas (8:13 e 23:27) e Mateus (27:55) ficaram esquecidas quando a Igreja assumiu o poder. A partir do século 12, o direito canônico enfatizou a “inferioridade” moral e intelectual da mulher. Anos depois, Santo Tomas adotou uma idéia de Aristóteles: o único gênero real é o masculino, pois a mulher é um “erro” da natureza (um erro esquisito que aparece um 50% das vezes). Não tendo raciocínio, deve manter silêncio e obediência ao homem, e ficar fora da vida pública. Aliás, deve ser castigada pelo marido por tê
-lo afundado no pecado original. O direito canônico autorizava a bater nela e privar-la de comida, mas evitando matar-la!
As religiões reformadas reconheceram parcialmente o valor da mulher. No século 16, na Inglaterra, várias escritoras ficaram famosas, e a mesma Elizabeth 1ª promoveu a educação feminina. As religiões alternativas, espiritualistas e naturalistas, amenizaram as diferenças de gênero; o credo Bahá’i, fundado em Irão em 1844, defendeu a igualdade de direitos entre os sexos, além de combater o racismo, a homofobia e qualquer outro preconceito. Nos Estados Unidos a misoginia prevaleceu até o século 19. Os puritanos que governavam as colônias queriam repetir a experiência católica do terror inquisitorial. Um caso lembrado todos os anos junto ao túmulo das vítimas, é o massacre de 14 mulheres consideradas “bruxas”, na cidade de Salem (Massachusetts), entre 1692 e 1693.

Discriminação Antifeminina

discriminação sofrida pelas mulheres está definida na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra Mulheres da ONU de 1979:
“Discriminação contra mulheres” designa qualquer distinção, exclusão ou restrição feita com base no sexo, que possua o efeito […] de diminuir ou anular o reconhecimento, desfrute ou exercício pelas mulheres […] (sobre a base de igualdade de homens e mulheres) de Direitos Humanos e liberdades individuais […] em qualquer campo.
A primeira reivindicação da militância feminista foi o voto. Em Ocidente, a conquista do direito de eleger e se candidatar estendeu-se lentamente, mesmo para a mulher branca: o primeiro país que autorizou o voto feminino (com restrições) foi a Suécia, em 1718, mas o último foi Portugal, apenas em 1976. Os direitos econômicos, como salário, emprego, etc., nunca foram totalmente atingidos. No caso do emprego, aONU denunciou que em quase todos os países membros, as mulheres desfrutam de menos oportunidades que os homens. Nos Estados Unidos, fontes do governo afirmam que, apesar de que 50% dos mestrados são obtidos por mulheres, o 95% dos altos executivos nas maiores empresas são homens.
Em outros casos, a supremacia masculina se manifesta no controle familiar.  A família tradicional pode ter apenas um líder. Instituições repressoras, como o exército, algumas igrejas e os aparatos políticos apelam à importância da família para combater a diversidade. O pai de família tem a decisão final em todos os assuntos, mas a mulher deve inculcar os valores mais conservadores no dia-a-dia de seus filhos. A mulher também padece a falta de planejamento familiar. As religiões oficiais proíbem o planejamento, alegando que interfere nos desígnios divinos, enquanto nos estados totalitários ateus (como o chinês), o governo o impõe pela força.
Por uma razão ou pela oposta, a mulher é vítima. Mulheres sem parceiros assumem sozinhas a organização doméstica, mas, nos lares com ambos os conjugues, o compartilhamento de responsabilidade é geralmente ilusório. O marido costuma coagir à mulher para engravidar ou para abortar, a despeito de seu interesse e vontade.
A disposição do próprio corpo é a conquista mais difícil para a mulher de um lar patriarcal. Nos casos de “quebra feminina da monogamia”, o marido pode reagir com insultos, medidas legais e atos violentos. Nas culturas mais brutais (entre outras, Irã, Nigéria, Afeganistão), o estado pode executar à esposa “infiel”, mas inclusive em algumas regiões da América Latina, homens que assassinam suas mulheres por ciúmes podem ser absolvidos por juízes cavernícolas e ressentidos.

Dados de Anistia Internacional

Estes são dados do relatório 2004 de Anistia Internacional sobre violência contra mulher, baseados em fontes da ONU e da Organização Mundial para a Saúde:
Em algum momento de sua vida, 16,7% das mulheres sofrerão alguma ação violenta, e 10% serão vítimas de tentativa de estupro. Cerca de um 30% já foram espancadas, pressionadas sexualmente ou abusadas. Até 47% das mulheres denunciaram que sua primeira relação sexual foi forçada. Até 70% das vítimas de assassinato foram mortas por seus parceiros. Em Egito, 35% das mulheres denunciam ser espancadas por seus maridos em algum momento. Em Bolívia, 17% das mulheres com 20 ou mais anos tem sido vítima de violência no ano anterior. Vide a página de Anistia Internacional (em 4 línguas):

A Origem do Feminismo

feminismo é uma corrente formada por movimentos cujo ponto comum é a defesa de direitos justos para as mulheres. Ao dizer “direitos justos”, supomos que existe um critério de ética e justiça para determinar direitos. A afirmação usual de que devem defender-se “direitos iguais” é reacionária, pois alguns direitos dos homens são negativos, como servir no exército e trabalhar como carrasco.
Germes de feminismo aparecem na Modernidade. A igualdade de direitos (justos) foi aceita pelos Anabaptistas ingleses e pelos Quakers, que estimulavam às mulheres a manifestar-se sobre política e religião. Entre 1646 e 1649, um movimento popular chamado Leveller (Nivelador) organizou as primeiras grandes passeatas com cerca de 10 mil mulheres que exigiam liberdade de presos políticos, igualdade religiosafim da guerra, e direito ao voto universal.
Existem casos isolados de mulheres feministas desde o século 14º. Christine de Pizan (13631434?) foi criada na França, onde salientou como escritora, combateu a misoginia, e redigiu a primeira obra teatral onde todos os protagonistas são mulheres. Em 1622, a francesa Marie de Gournay (15651645) afirmou a igualdade intelectual entre homens e mulheres. A escritora sueca Hedvig Nordenflycht (17181763) reclamou  educação equivalente para ambos os gêneros e denunciou o casamento como forma de servidão. Mais influente foi OLYMPE DE GOUGES que assumiu a defesa teórica e prática da mulher.
MARIE GOUZE (1748 –1793) dita Olympe de Gouges, militou na Revolução Francesa, da qual celebrou seu papel libertador, mas criticou seu caráter antifeminino. Em seus textos, que tiveram enorme popularidade, apresentava críticas políticas e sociais, e fazia propostas de incitação à luta. Sua DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER E DA CIDADà(1791) foi idealizada como complemento da Declaração dos Direitos do Homem. Olympe teve uma visão muito completa dos Direitos Humanos também no combate ao escravismo, a cuja crítica dedicou a obra teatral A Escravidão dos Negros (1774), e se tornou militante da Sociedade Amigos dos Negros, fundada pelo matemático Jean A. de Condorcet (1743 –1794). Esteve contra a execução de Luis 16, por achar cruel e desumana a pena de morte.
A britânica Mary Wollstonecraft (17591797) escreveu romances, ensaios e livros para crianças. Ganhou celebridade com A Reivindicação dos Direitos da Mulher (1792), onde rejeita a inferioridade “natural” feminina. Foi a primeira que pôs em evidência um grande tabu: O RECONHECIMENTO DOS DESEJOS SEXUAIS DAS MULHERES.
Wollstonecraft influiu diretamente no surgimento da Primeira Onda feminista (1850-1920), identificada no Reino Unido e nos Estados Unidos pelo sufragismo. Em ambos os países, a Primeira Onda também exigiu direito a atendimento médico, educação e emprego, e estava formada basicamente por mulheres de classe média, brancas, com objetivos limitados.

Segunda e Terceira Ondas

Segunda Onda (19601970) começa, em sua maioria, nos Estados Unidos. No início dos 60, suas ativistas batalharam contra a tradição de colégios separados para homens e mulheres, e conseguiram institutos mistos. No emprego, lutaram contra a demissão de mulheres que envelheciam ou casavam. No plano ideológico, denunciaram os estereótipos femininos na mídia: mulheres frágeis, religiosas, pouco inteligentes, assexuadas, etc..
A Segunda Onda conquistou alguns direitos sexuais, como o acesso aos anticoncepcionais e (em alguns lugares) à interrupção da gravidez. Conseguiu que o abuso sexual e o estupro fossem denunciados e que suas vítimas recebessem proteção. Parcialmente, obteve leis para o cuidado dos filhos de mães trabalhadoras, e punições contra o assédio sexual no local de trabalho. Esta onda interceptou com a Guerra de Vietnam (1959-1975), à qual suas militantes se opuseram energicamente. Em 1964, criou-se um movimento feminista muito amplo, o frente deLibertação das Mulheres (Women Lib), que foi criticado por seu estilo genérico e sua falta de ações concretas para mulheres pobres e negras.
Na metade dos anos 80 surgiu a Terceira Onda, que ainda mantém sua força. Típicos da Terceira Onda são: a diversidade, e solidariedade com outros movimentos, e a crítica ao paradigma universal de identidade feminina, extraído da mulher branca pequeno-burguesa. Promove às interações com outras etnias, classes sociais e culturas.
A Terceira Onda incorpora assuntos mais amplos e profundos, especialmente a sexualidade em todas suas formas, e questiona a divisão binária dos gêneros, entendendo o feminino e o masculino como estados fluentes. Esta fluência reativou a palavra “queer” (utilizada antes para referir-se a homossexualidade), para designar as pessoas e condutas que faziam parte dessa fluência e podiam mudar o padrão de gênero. Esta onda está marcada por propostas sociais bem definidas:
(1) Anti-Racismo. Milita na luta contra o racismo, e reivindica a compreensão dos problemas de outras etnias para articular um feminismo coerente. (2) Atitude pós-colonial. Considera a variedade de problemas femininos criados pelo domínio imperial nos países ex-coloniais. (3)Transnacionalismo. Equivale ao internacionalismo socialista: a luta deve ser comum a todos os oprimidos, ignorando as identidades nacionais. (4) Ecofeminismo. Ressalta a afinidade entre a opressão da mulher, o domínio sobre outras espécies vivas e, em geral, sobre o conjunto da natureza.
O movimento central dentro da Terceira Onda é o feminismo Sexualmente Positivo, que trata a sexualidade explícita como objeto de prazer e não como degradação machista. Afirma que a pornografia nem sempre é degradante, como tinha afirmado a Segunda Onda, pois, desde que seu conteúdo não promova o ridículo, os estereótipos ou a violência, deve ser entendida como a difusão de atos prazerosos, cuja condena implicaria estigmatizar a própria atividade sexual.
Esta onda desafia os preconceitos contra mulheres e outros grupos discriminados, e defende o direito sobre o próprio corpo e a própria sexualidade, reconhecendo a influência fundamental da etnia e da classe social na luta feminista. Sua militância se baseia no esclarecimento, a educação, a comunicação, e as ações concretas em relação com trabalho, saúde, cuidados das crianças e reprodução.

A Luta pelos DH das Mulheres

Os movimentos feministas mais avançados trocaram solidariedade com outros movimentos e grupos, atingindo uma cooperação estável a partir da Terceira Onda. Isso fez possível a atual inclusão, pelo menos teórica, do gênero feminino dentro das conquistas dos DH. Vamos a apresentar uma tabela onde se mostram algumas destas relações de solidariedade.
Ver a tabela "Movimentos e Outros Grupos Solidários Externos com o Feminismo" no link: https://feminismo.org.br/as-mulheres-e-os-direitos-humanos/993/

O Reconhecimento dos DH das Mulheres

Os políticos aprovaram o sufrágio feminino porque esperavam receber votos como amostra de gratidão (como aconteceu no Chile, onde forças católico-fascistas ganharam as eleições municipais de 1935 graças ao voto das mulheres), mas se mostraram menos sensíveis com os outros direitos. A integração de gênero nos colégios foi demorada e parcial. Os empregos para mulher aumentaram na Europa e nas Américas, porque o sistema necessitava mais mão de obra, mas os salários não foram igualados. Medidas humanitárias, como salário família e licença maternidade só foram implantadas pela insistência de legisladores de esquerda.
Teoricamente, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 protegia de mesma maneira os direitos de homens e mulheres, mas na prática, os movimentos feministas deveram pressionar durante décadas para que a ONU assumisse seriamente sua causa. Desde 1975, a ONU celebrou várias conferências sobre as reivindicações femininas e em 1979, apresentou uma Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contras as Mulheres (CEDAW), um detalhado documento com 30 artigos contra as discriminações mais conhecidas.
Os Estados participantes condenavam todo preconceito, prometendo sua eliminação jurídica, a criação de organismos para problemas femininos, e a revogação de leis, hábitos e práticas discriminatórios. Esta medida visava eliminar costumes bárbaros, como o dote ou a virgindade nupcial, o que irritou às sociedades onde estas práticas eram comuns.
Sob a expressão “medidas especiais de caráter temporário”, o artigo 4º da Convenção estimula a adoção de ações afirmativas por parte do estado.
A Convenção previu ações educativas gerais para modificar preconceitos e estereótipos, e ações educativas familiares para ensinar aos homens e às mulheres sua responsabilidade conjunta no desenvolvimento dos filhos. Também obrigava os países membros a perseguir o tráfico de mulheres e a exploração da prostituição.
O Artigo 10º exigia eliminar a discriminação nos estudos, e garantir acesso equivalente a escolas, faculdades, bolsas, cursos de aprimoramento e aplicações em todos os níveis, e atacar os estereótipos profissionais que dividem os gêneros, revisando livros, programas, planos e métodos que veiculam esses preconceitos. No plano do emprego, a Convenção propôs a igualdade de gênero na escolha de profissão, e no direito a salário, promoção, capacitação e às diversas formas previdência, incluindo saúde e férias. Veja:
Esta Convenção foi ratificada por vários estados, mas apresentou menor nível de aceitação que qualquer outro instrumento da ONU, e foi alvo de reservas em artigos importantes por mais de 20% dos aderentes. Em 1999, a Comissão da Situação da Mulher da ONU apresentou o Protocolo Opcional da CEDAW, no qual se providenciam métodos para o controle do cumprimento da Convenção e para a investigação das infrações. Este Protocolo, porém, encontra ainda maiores resistências que a própria Convenção.
Portanto, a luta, inclusive jurídica, pela emancipação de mulher, continua agora com maior vigor do que nunca. Como disse Lênin durante a Revolução Bolchevista, nenhuma sociedade será livre se só for livre uma metade dela.
Fonte original deste texto: https://feminismo.org.br/as-mulheres-e-os-direitos-humanos/993/