terça-feira, 19 de novembro de 2013

Dia da Consciência Negra

RAÇA, RACISMO E IDEOLOGIA: ZUMBI ERA UM VÂNDALO, UM BLACK O QUÊ?

Imagem publicada – um menino zumbi? Uma foto colorida de meu arquivo pessoal com uma criança, com uma camiseta regata vermelha, onde se lê Salvador, Bahia, Brasil, uma cidade, um estado e um país bem pretos, com uma população infantil perdida e perambulante em busca de sentido e existência. Meninos e meninas, na maioria negros, que mendigam nossos olhares, nossa atenção, nosso respeito e nossa indignação. Meninos e meninas caídos, emagrecidos, dopados, como o da foto, em cima de pedras coloniais, por onde pisaram seus ancestrais escravizados, arrastando correntes, ou servindo aos seus donos senhores nas ladeiras como carregadores das liteiras, derivação de sua condição de mulas, ou seja, mulatos.

“Vós e nós somos raças diferentes. Existe entre ambas uma diferença maior do que aquela que separa quaisquer outras duas raças. Pouco importa se isto é verdadeiro ou falso, mas o certo e que esta diferença física é uma grande desvantagem mútua, pois penso que muitos de vós sofreis enormemente ao viver entre nós, ao passo que os nossos sofrem com a vossa presença...”.

Assim como o garoto “invisível”, esquecido e negado, para não deixar esquecer e com o desejo de não ter de repetir, pergunto-lhes, como já o fiz em 17 de novembro de 2010: de quem seria essa afirmação feita em 14 de agosto de 1862? Seria possível que fosse uma frase do eugenista Francis Galton (1822/1911)? Ou então de algum outro que pregasse à época a purificação das raças, sua higienização ou segregação para o “bem” de ambos os grupos étnicos, inclusive em nome da Ordem.

Não, a frase foi proferida por Abraham Lincoln, na Casa “Branca” para um grupo de negros, àqueles ainda sob a escravidão, e ditos motivos históricos da Guerra de Secessão. O norte abolicionista contra o sul escravocrata.

Historicamente aí nasce, ou melhor, se aprimora uma conceituação que alicerçará, por séculos, a ideia de raça. Naquele encontro presidencial estavam os que iriam receber uma ajuda governamental, aprovada pelo Congresso, para sua “instalação fora do país”. Seriam “ajudados” na sua volta a África, considerada já sua única pátria e nação verdadeiras. Então, Lincoln sublinhou que “neste vasto continente não há um único homem da vossa raça que seja considerado igual da nossa”.  E, como nossa Princesa, entra para a História como um defensor da abolição...

Escrevo este texto para nos lembrar, e em especial aos que negam a existência das consequências da ideia e da ideologia ligadas à raça, que quando se propõem uma comemoração ou celebração de um mês para a Consciência Negra, em nosso país, ao estarmos presos a velhos preconceitos ou falsas benevolências, a maioria da população deste país, apenas por ser a maioria, mesmo que tratada desde a Colônia como minoria ou marginalidade social.

Nunca gostei do que colocaram em minha certidão de nascimento: cor da pele – pardo. O que ouvia e o que sentia é que ainda  existia, pela visão de Abraham, uma diferença física que mesmo edulcorada com o “moreninho” permanecia como " a diferença". Uma diversidade não tão divertida, como os nomes que aprendia: cafuzos, mamelucos e outras “coisas”. 

Minha e nossa miscigenação era e é parecida com um processo de liquidificação genética de superfície; explico, apesar da pele mais “clara”, os processos de inclusão permaneciam, podem permanecer, na escola, na rua, nos mundos em volta, diferenciados. No fundo, no inconsciente colonizado, permanece a ideia da raça diferente.

São as sutis e negadas exclusões que permanecem subjacentes e como significantes nos processos ditos inclusivos. As construções das ideias intelectuais de raça foram, transhistoricamente, municiadas de “balas de borracha teóricas”, ou seja, continuavam repressivas, violentas, instauradoras de uma ordem, confirmadoras de um Estado de Exceção, mas sempre difundidas como uma solução para os conflitos das multidões e dos povos.

No meu universo empardecido procurei, pela voracidade do conhecer e do ler, encontrar um rebelde com quem me identificasse. Esse, que nos Anos de Chumbo, transformei em uma força constituinte e instituinte para meu próprio futuro: Zumbi (1655/20 de novembro de 1695). Um nome ligado a uma resistência ao colonialismo e à nosso histórico de dominação por Portugal. Um quilombola que os livros de história (com h minúsculo) diziam que tinha se suicidado na Serra da Barriga. Não, ele foi é traído e morto, como alguns das guerrilhas que se deram em outras matas da América Latina.

Segundo o livro de Joel Rufino dos Santos, como reparação dessa versão suicida, ao ser morto, após perder sua única fortificação e posição fixa no Quilombo dos Palmares, quando retomou a ‘guerra do mato’, demonstrou o vilipendio do seu corpo tombado por “quinze furos de bala e inumeráveis de punhal”. Tinham lhe castrado, e o seu pênis enfiado na boca, além de um olho tirado e uma mão direita decepada. Tinha se tornado uma vida nua, matável, despojável e uma ‘coisa negra’ que os vencedores do Império precisavam eliminar: um vândalo, um subversivo, um inimigo político dos bandeirantes, dos comandantes militares e dos aristocratas de Pernambuco e Alagoas.

Por isso quando leio que uma cidade brasileira impõe uma liminar para impedir a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra, 20 de Novembro, lá em Curitiba, me sinto, novamente, experimentando na pele esse disfarce e tática para a discriminação. A ACP (Associação Comercial do Paraná) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, e a Justiça concedeu uma liminar, tendo como principal alegação: “...a ACP alega que o feriado (dia 20) causaria o prejuízo de 160 milhões à economia do município”.

Entretanto, como contradição a este suposto prejuízo, difundi pelas redes sociais o Relatório do DIESSE (Os Negros no Trabalho, 2013) que confirma que apesar de trabalhar mais a maioria dos trabalhadores negros, mesmo ao ter maior participação no mercado de trabalho, ainda ganham menos do que os não negros e ocupam os postos de serviços menos valorizados. 

Então, seja no Paraná ou no Amapá, continuam sendo uma maioria que alicerça a tal economia que seria prejudicada. Continuam uma ‘maioria’ em marginalização e discriminação laborativa. São os ‘zumbis’ que constroem prédios, novos aeroportos, novas estradas, novas economias, de novo denominados de mulatos e mulatas, inclusive no Global.

Para que não pensem que esta discriminação é localizada e datada na Colônia precisamos lembrar que a presença do trabalho indigno e escravo é mais atual do que nunca em nosso país. E, para nossa reflexão, um dos estados onde mais ocorre, o Mato Grosso, apenas 03 (três) de seus 141 (cento e quarenta e um) municípios, Corumbá, Ladário e Itaporã, irão comemorar o feriado do dia 20, o dia de Zumbi e da Consciência Negra. Em Campo Grande a Federação do Comércio também impediu o feriado. Entretanto, no Mapa da Escravidão, uma realidade e vergonha a ser enfrentada, este estado ocupa um grande espaço junto a outros que mantiveram mais de 43 a 200 mil trabalhadores em escravidão no séc. XX/XXI.

Então, alguns irão questionar o que há para comemorar? Não há nada para festa ou carnaval com mulatas globelezas nos encantando como sereias. Não há nenhum lamento ou banzo negreiro a ser rememorado. Não há nem mesmo nenhuma chaga gerada por velhos troncos ou torturas, ou chãos rasgados por mãos calejadas e ainda acorrentadas por novas escravidões.

Há apenas que, como a lembrança de Tiradentes, oficialmente autorizada, embora também martirizado por ser revolucionário, refazer a História, com participação ativa da população afrodescendente. Fazer, a partir das escolas, o resgate de um corpo, de uma História e de uma resistência, pela consciência e a educação, que retire os grilhões, hoje invisíveis, dos pés, mãos e cabeças dessa parte diferente e incômoda de cidadãos e cidadãs.

Este ano o 13 de Maio já passou. O dia 20 de novembro espero será menos negado e mais reconhecido, pois uma das mais comuns alegações ou justificativas, além das econômicas, para não torná-lo mais que um feriado, é a de que “não existe racismo no Brasil”. Assim se produziu, inclusive teórica e cientificamente, um embranquecimento de nossas memórias. Há quem não reconheça nem mesmo suas próprias identidades, origens ou negritudes.

Deu um ‘branco’ nas páginas obscuras de nossos movimentos eugênicos e higienistas que envolveram desde escritores infantis até grandes nomes das ciências. Estes esquecimentos já fazem parte de uma anistia que tentou esconder verdades de um tempo totalitarista e de exceção. O movimento de ocultamento de Amarildos e seus corpos reavivam essas práticas. O que a terra oculta, na nossa ‘culta’ sociedade, é para ser esquecido?  Zumbi diria que não, inclusive com armas ou pedras na mão, mesmo que decepada.

Por ter um dia me visto, reconhecido e re-existente através da história verídica de um homem livre, Zumbi, é que inventei nos tempos da Análise Institucional a “potência Zumbi”. Uma potência capaz, por sua força instituinte e desestabilizadora, de construir novos analisadores históricos, novas revoluções moleculares, novas cartografias, novas alianças e suavidades existenciais, para que possamos ir além das cotas e das ações afirmativas. Para que possamos realizar, em ato e mudança de paradigmas, minha frase premiada pela Seppir: “Abolir as novas escravidões e novos racismos, um futuro possível e urgente para o Brasil”.

Então, nem mesmo os mais radicais, os mais ‘poderosos’ ou os mais falsos abolicionistas poderão deter os novos Zumbis, novos black powers, novas singularidades, que não são mais massa, nem povo, são somente multidões indignadas e cansadas de sua exploração e escravidão neo e hipercapitalística. Martin Luther King, Malcom X e Frantz Fanon estarão juntos, de mãos e cabeças não decepadas, para nos inspirar essas potências Zumbis em nós.

Se entrega, Zumbi! Eu não me entrego não, só me entrego LIVRE, VIVO e com o belo nas mãos.

Copyright/left jorgemarciopereiradeandrade 2013/2014 (favor citar o autor e as fontes em republicações livres pela Internet e outros meios de comunicação de massa)

LEITURAS CRÍTICAS para reflexão e demolição de conceitos e preconceitos:

A IDÉIA DA RAÇA, Michael Banton, Edições 70, Lisboa, Portugal, 1977.

ZUMBI, Joel Rufino dos Santos, Editora Moderna, São Paulo, SP, 1985.

“A HORA DA EUGENIA” – Raça, gênero e nação na América Latina, Nancy Leys Stepan, Editora Fiocruz, Rio de Janeiro, RJ, 2005.

Notícias citadas no texto:

NEGROS/INCLUSÃO NO TRABALHO - Relatório do DIEESE revela que mesmo trabalhando mais sempre ganham menos /Só escolaridade não garante presença de negros no mercado de trabalho, aponta Dieesehttp://infonoticiasdefnet.blogspot.com.br/2013/11/negrosinclusao-no-trabalho-relatorio-do.html


Mapa da escravidão (Lista suja do Trabalho Escravo no Brasil)http://cienciahoje.uol.com.br/blogues/bussola/2013/11/mapa-da-escravidao



Pesquisa mostra que raça é fator predominante na escolha de parceiros conjugais http://www.ebc.com.br/2012/10/pesquisa-mostra-que-raca-e-fator-predominante-na-escolha-de-parceiros-conjugais

Para quem só lê ou para fazer pesquisas na Internet –



LEI 10.639/2003 – (Para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”)http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm

LEIAM TAMBÉM NO BLOG:
01 NEGRO + 01 DOWN + 01 POETA = 01 Dia para não esquecer de incluirhttp://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/03/01-negro-01-down-01-poeta-01-dia-para.html
RACISMO, HOMOFOBIA, LOUCURA E NEGAÇÃO DAS DIFERENÇAS:as flores de Maio http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2012/05/racismo-homofobia-loucura-e-negacao-das.html

Cultura de Paz acessível e inclusiva?


Caros clientes e parceiros da Caleidoscópio Comunicações, fui convidada para participar do Workshop sobre "Cultura de Paz" realizado pela Q3 amanhã dia 20/11/13 em SP. 

Aguardem minha crônica a respeito da acessibilidade e inclusão do local e das atividades para profissionais com deficiência. E acompanhem as novidades de nossa futura parceria de trabalho.

Conheçam o Workshop:


Conheçam a Caleidoscópio Comunicações - Consultoria em Inclusão: