segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

TURISMO PARA TODOS E TODAS

URGENTE

Preciso entrevistar profissionais de agências de turismo acessível e hotéis adaptados, além de pessoas com deficiência que viajaram para outros países da América Latina. 

Podem ser brasileiros que estiveram em países da América Latina, ou amigos latinos que estiveram no Brasil. 

Entrem em contato o mais rápido possível pelo e-mail: leandramigottocerteza@gmail.com ou (11) 8697-9067.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ser e Estar

Artigo sobre Educação Inclusiva premiado com a Classificação de Excelência no Concurso de "Periodismo y Comunicación Sociedad para Todos" na Colômbia em 2003. 

Por Leandra Migotto Certeza em 2003

Fico feliz em poder contar um pouco da minha história pelo universo escolar. Querem viajar comigo pelo túnel do tempo? Há 26 anos eu nasci. Em um tempo em que a diversidade natural do ser humano ainda era pouco abordada pela mídia. Hoje se fala muito em Educação Inclusiva, Responsabilidade Social, Terceiro Setor, Voluntariado, Inclusão Social, Consumo Consciente... Porém, a distância entre a teoria e a prática ainda é grande. Vejam só...

Pré-escola: onde criança quer mais é ser feliz!

Graças à amizade de meus familiares com diretores de uma escola, consegui cursar o pré-primário em meio às delícias da infância. Comi muita areia, brinquei de pega-pega, "pulei" corda, cantei cantigas de roda, visitei parques, fiz desenhos, aprontei com massinha de modelar, "subi" em trepa-trepa, brinquei de roda, aprendi a ler e escrever. Aos cinco anos, dava um jeito de participar de tudo. Como minhas pernas ainda não tinham forças para agüentar meu corpo, usava o bumbum e corria pelo pátio junto com os amigos. Sabia que para fazer algumas coisas precisava de ajuda, como subir em uma cadeira ou escada, pegar um livro na estante, ir às excursões... Mas nunca deixei de ser e estar na escola!

Muitas crianças com deficiência ainda não conseguem ter acesso à escola. Minha sorte foi que os meus familiares conheciam os diretores e explicaram que eu não seria uma aluna que, segundo o preconceito da época, traria "problemas" aos outros colegas, professores ou pais. Embora menor do que eles, pois tinha o tamanho de uma criança de dois anos, era bem alta no tom de voz quando queria dizer algo. Acho que isso até hoje é uma das minhas características mais fortes e que às vezes acaba sendo um pouco exagerada... Mas naquela época, essa espécie de "compensação" foi super importante para que eu nunca fosse esquecida do jeitinho que era.

Aos seis anos de idade, depois de ser alfabetizada, vivi a triste experiência de ser segregada a uma escola dita "especial". Pois, após diversas tentativas de minha mãe em me matricular na antiga primeira série, em um colégio com alunos sem e com deficiência, acabei indo parar dentro de uma verdadeira jaula! Naquela época, devido ao descaso dos governos e da sociedade, as escolas em sua maioria adotavam o modelo assistencialista. Então, cursei dois anos em um colégio regular conveniado a uma instituição especializada em crianças com deficiência.

Lá estagnei. Pois, numa mesma sala, uma vitoriosa professora, tinha o árduo e mágico objetivo de ensinar crianças com diferentes graus de deficiência e séries distintas. Em meio às lições de alfabetização - o que eu já dominava - crianças com comprometimentos mentais, dividiam a atenção com as que possuíam dificuldades de mobilidade como eu. É claro que todos saiam prejudicados, pois além de não termos nossas especificidades respeitadas, não tínhamos a mínima possibilidade de desenvolvermos nosso potencial. Mas sem dúvida, o fato mais marcante - e que ainda hoje, infelizmente, é encontrado em alguns Estados do Brasil - era a existência de uma grade que nos separava do outro mundo - o das crianças ditas "normais"! Isso era um horror! Tínhamos que tomar lanche também em um pátio separado. Parecia que iríamos transmitir alguma doença contagiosa ou "aterrorizar" as outras crianças com a nossa aparência diferenciada.

Em um completo sistema assistencialista, éramos considerados coitadinhos que mereciam cuidado especial, mas fora do convívio com as outras pessoas. Não éramos vistos como cidadãos, com direitos e deveres. Hoje, penso que talvez fosse a transição de um processo educacional para o outro, pois, anos antes, a maioria das crianças com alguma deficiência não eram nem mesmo consideradas "aptas" à educação, permanecendo sob cuidados médicos ou como eternos bebês nos colos das suas mães. Era o início das chamadas: "Classes Especiais", que ainda existem hoje. Porém, graças à luta de inúmeras pessoas, elas são bem melhores do que antes, apesar de ainda estarem bem longe do objetivo da Educação Inclusiva: não à segregação!

Mas, naquela época era muito complicado para uma menina de sete anos, esperta como eu (creio que para inúmeras outras também, pois não sou melhor ou pior do que ninguém), ser ignorada e ter de pedir, por favor, para ser vista pelo mundo. Por isso, sempre que possível, dava uma fugida e passeava pelos corredores do colégio no colo das "tias". Elas me levavam de volta ao sonho do qual despertará: o convívio com todas as crianças. Não que eu não me sentisse bem perto dos meus amigos com alguma deficiência, pois, desde os três anos, estava no meio deles, nas sessões de fisioterapia e hidroterapia em uma instituição especializada. Mas não entendia porque tinha que me manter escondida dos outros sem deficiência.

E é por isso que hoje, quando participo de congressos e escrevo artigos sobre Educação Inclusiva, sei da importância que o TODO têm na vida de uma pessoa. As crianças, os jovens e os adultos têm o direito, assegurado na nossa Constituição Federal, à educação em meio à diversidade inata ao ser humano. Todos nós nascemos sem nenhum preconceito, pois só os "formamos" após sermos "ensinados" do que é "certo" ou "errado" - apesar de eu não gostar dessas palavras, pois não refletem a complexidade e amplitude humana. Portanto, nunca vamos discriminar alguém por não ter um braço ou uma perna, ou porque fala, ouve, enxerga ou anda diferente de nós. Muito pelo contrário, criança que é criança, quer mais é ser feliz! Não importa como!


Depois de muita luta, finalmente, uma escola inclusiva!

Eu fui muito feliz, mesmo depois de alguns tropeços pela vida e, literalmente, ossos quebrados. E em 1986, depois de muitas andanças por aí e "portas na cara", finalmente minha mãe, meio que por milagre, conseguiu me matricular em uma escola dita regular. Mais uma vez, eu, infelizmente, ainda era a única aluna com alguma deficiência que havia estudado lá. Pois, a maioria das mães encontravam inúmeras dificuldades para conseguir que seus filhos fossem aceitos nas escolas; uma vez que ainda não era lei, como é hoje, a obrigatoriedade em matricular qualquer aluno que batesse na porta de um colégio.

Nessa escola eu pude desenvolver todo o meu potencial de uma menina de 9 anos. Como havia parado de andar, era levada no colo pelos colegas e professores, que nunca me deixaram de fora das atividades, inclusive das broncas. E uma vez fui parar na diretoria e tomei suspensão por ter xingado uma menina, que - diga-se de passagem - era muito chata. Esse fato ilustra o verdadeiro significado da inclusão em sua plenitude: tratar todas as pessoas igualmente respeitando suas diferenças. Acredito que esse sentimento pode estar dentro de cada um de nós ou em pessoas mais sensíveis "ligadas" na evolução da vida.

É importante ressaltar, que, felizmente, eu tive uma grande sorte, pois nunca ninguém me tratou diferente dentro da medida das minhas diferenças. A equiparação de oportunidade - mesmo que ainda apenas intuitivamente - sempre era usada para que eu me sentisse completamente incluída. O que significa isso? Quer dizer que, se eu precisasse de uma carteira mais baixa; uma rampa; ser levada no colo (pois hoje sei que deve ser ao máximo evitado, porque todas as crianças têm o direito à privacidade, individualidade, oportunidade de crescimento e desenvolvimento adequado à idade); ou ser acompanhada por minha mãe em passeios, entre outras coisas, tudo era providenciado.

Naquela época pouco se falava sobre os conceitos de Acessibilidade e Desenho Universal, os quais garantem rampas, elevadores, sistemas de computação para leitura em voz alta direcionada aos cegos e/ou deficientes visuais, intérpretes de Libras (Língua Brasileira de Sinais) para surdos e/ou deficientes auditivos; salas de recursos e/ou professores de apoio para algumas deficiências metais, entre outros recursos. E como eu não sabia quase nada sobre o assunto, não exigi muito da escola para adaptar as dependências de forma que amanhã outros alunos com dificuldades como eu pudessem utilizar. Hoje, fico feliz, em saber que o colégio foi ampliado e dispõe de rampas e elevadores. Mas ainda pretendo fazer um trabalho de conscientização sobre a inclusão, para que eventuais alunos com outras deficiências, como auditiva, visual, mental ou múltipla (união de duas ou mais deficiências), ou crianças obesas possam se sentir tão bem quanto eu.

Outro ponto super importante a relatar, é que o conteúdo do currículo, da pedagogia e das atividades do antigo primeiro grau e do ginásio não foi alterado em nenhum aspecto. Nunca recebi nota alta em matemática - matéria que detesto até hoje e não sei direito - só porque parecia uma "bonequinha de louça", como diziam os médicos ou professores. Muito pelo contrário, era punida da mesma forma caso colasse nas provas - coisa que só fazia em matemática mesmo... Além disso, não era elogiada mais do que os meus amigos por uma pesquisa ou nota, pois sempre estive na média em relação ao desempenho escolar da sala. Caso merecia reconhecimento era exclusivamente pelo que havia feito com muito orgulho e dedicação!

Infelizmente, só permaneci lá até a antiga oitava série. Minha formatura do curso ginasial foi marcante. Todas as minhas amigas me incentivaram a participar. E com um certo receio sobre o que a minha imagem física poderia trazer aos outros - coisa super valorizada quando se têm 14 anos - fiquei muito feliz ao entregar rosas à diretora, mesmo estando sentada em uma cadeira com meu lindo vestido branco.

É isso aí, durante esse fundamental período da vida escolar, pude contar com pessoas éticas, responsáveis, profissionais e acima de tudo humanas, que nunca me deixaram me sentir menor ou maior do que ninguém. Fiz muitos amigos e amigas. E depois de formada em uma universidade voltei ao colégio e me emocionei com a alegria das professoras e diretoras ao me verem andando.

Antes de terminar o "capítulo" desse relato, não posso esquecer de dizer que quando conheci essa escola, tanto os diretores como os professores não temeram em enfrentar uma situação nova e desafiadora. Acreditaram na minha capacidade, nas informações conscientes de minha mãe e acima de tudo na vida, pois ela, felizmente, não é dada igualmente a todos nós! Acredito que é isso o que os educadores devem ter em mente hoje em pleno século 21. A diversidade faz parte da vida e, conseqüentemente, da vida das escolas! Então, por que fugir dela?

Ensino médio: mudanças que a adolescência traz

A minha evolução física e psicológica acompanhou a escolar. E aos 15 anos, voltei a fazer exercícios para andar novamente, com a ajuda de um par de muletas, e consegui me matricular em um colégio também regular. Lá, felizmente, já encontrei outros alunos com alguma deficiência. No primeiro ano do antigo colegial, éramos quatro: eu com Osteogenesis Imperfecta (formação óssea imperfeita, que pode acarretar, entre outros fatores, baixa estatura e dificuldade de andar, mas, principalmente, fragilidade óssea devido a não absorção de cálcio); um menino com paralisia cerebral (o que, superficialmente falando, é a falta de comunicação do intelecto com as partes do nosso corpo, e ocorre, na maioria das vezes na hora do parto, podendo comprometer os movimentos, a musculatura e a fala dessas pessoas, mas em nada altera o raciocínio); uma menina surda, que fazia leitura labial e sabia um pouco de Libras; e um garoto com deficiência auditiva, que usava um aparelho para ouvir um pouco e falava muito bem.

Nessa escola também fui muito bem aceita por todos durante os três anos. E, já com 17 anos, lutava mais pelos meus direitos, mesmo que eles ainda não tivessem respaldo legal, além da Constituição Brasileira - que, infelizmente e vergonhosamente, ainda hoje não é respeitada pela maioria das pessoas. Então, solicitei algumas modificações físicas para garantir a acessibilidade às dependências do colégio. Infelizmente enfrentei maiores resistências, pois era a única que ainda usava uma cadeira de rodas e os diretores temiam as possíveis "profundas mudanças" na estrutura física da escola. Assim, mais uma vez eu contei com a famosa "ajuda", que hoje é considerada inadequada e ineficiente.

Pois, atualmente, experiências bem sucedidas demonstram o quanto é possível fazer adaptações físicas na estrutura das escolas e dentro dos sistemas de comunicação, com materiais, tecnologia e mão-de-obra financeiramente acessíveis. E, na maioria das vezes, com a reutilização e/ou reaproveitamento de recursos. Além do mais, cada dia que passa - infelizmente com exceções - aumenta o número de escolas construídas seguindo o conceito de Desenho Universal. Mas o que ainda é extremamente escasso é a fiscalização dos órgãos públicos e da própria população, em relação ao cumprimento das leis brasileiras que garantem a acessibilidade.

Agora, em relação aos professores do antigo colegial, a maioria compreendia a necessidade de maior atenção aos alunos com deficiência, na medida em que ainda não dispunham de outros mecanismos como o domínio da Libras, ou a experiência com a fala de pessoas com paralisia cerebral. E nunca me esqueço o dia em que numa aula da antiga e saudosa disciplina de Educação Moral e Cívica, o professor, atenciosamente, fez o aluno com paralisia cerebral ler sua redação em voz alta, deixando-o todo cheio de auto-estima e dignidade. Pois mesmo com dificuldade na fala ele tinha o total direito de usar a sua voz para expor suas idéias.

Contudo, ainda é muito triste, o relato abafado de muitos fatos de puro descaso, omissão e/ou crime de alguns diretores de colégios em relação principalmente, aos alunos com deficiência mental e física. Vide o que aconteceu recentemente, em uma escola de Itanhaém, no Estado de São Paulo, onde um aluno com paraplegia e sem controle de suas funções fisiológicas, terrivelmente não tem outra alternativa senão fazer as necessidades na frauda, pois não há um banheiro que ele possa utilizar com sua cadeira de rodas.

Voltando à minha trajetória, é importante declarar que, em relação os alunos - em sua maioria, adolescentes e jovens entre 16 e 20 anos -, as reações eram as mais diversas. Isso era natural, pois em uma fase em que a identidade está sendo colocada em jogo pela sociedade e a personalidade está sendo meio "moldada", ficava difícil fugir aos estereótipos. E muitas vezes, os alunos com deficiência eram um pouco incompreendidos. Creio que mais por falta de informações a respeito de suas particularidades do que por preconceito, pré-julgamentos ou ações discriminatórias. O que acontecia era que alguns colegas ficavam um pouco impacientes, pois o tempo de realização das coisas dos alunos deficientes era um pouco maior do que o deles. Ou, na maioria das vezes, também não sabiam como poder ajudá-los nas atividades cotidianas. Fatos esses, resolvidos hoje, em algumas escolas, por meio de dinâmicas e treinamentos específicos sobre as principais características das pessoas com deficiência. O que facilita muito na hora de "quebrar o gelo" entre as pessoas diferentes. Pois, um dos principais pressuposto do conceito de inclusão social é o conhecimento do outro em sua totalidade, para depois conseguirmos interagir naturalmente sem qualquer receio.

Agindo dessa forma, os pré-julgamentos, e atitudes discriminatórias seriam evitadas. Afirmo isso, pois infelizmente, ainda hoje, muitas pessoas sofrem com atitudes puramente racistas e preconceituosas. E palavras como: aleijado, caolho, manco, monstro, coitado, perna de pau, débil mental, mongolóide, baleia, anão, anormal, aberração da natureza entre outros terríveis e abomináveis xingamentos acabam sendo maldosamente usadas por algumas pessoas, ao se referirem às com alguma diferença.

Porém, eu, na maioria das vezes, não ficava de fora de nenhuma atividade do colegial, mas nunca me senti à vontade quando o assunto era sexo e relacionamentos amorosos. Creio que esse tabu ainda é um dos mais complexos de serem quebrados, pois a sexualidade de uma pessoa com deficiência, infelizmente ainda é um mito para muitas pessoas. E naquela época, como eu não tinha um distanciamento com a adolescência; conhecimento sobre o assunto; e nem experiência profissional na área da inclusão, sofri bastante com os olhares assustados dos colegas, principalmente dos garotos. Pois, na hora de paquerar as meninas, todos, sem exceção, simplesmente e friamente desviavam o olhar de mim. Eu chorava muito por não ter a altura normal (pois até hoje meço 1 metro de altura), pernas retas e um bumbum no lugar, usar um par de muletas e parecer um "ser estanho" perto de qualquer menina de 17 anos.

Resumo minha passagem pelo colegial como uma metamorfose. Pois, nessa fase percebi a importância da família e dos verdadeiros amigos. Foi só depois que me dei conta que o colégio em si, mesmo que ainda pouco acessível fisicamente, foi um ambiente inclusivo. Pois, ao conviver com as adversidades que a diversidade nos impõe, cresci muito. E hoje luto para que outros jovens passem por essa fase sem ou com menos dor do que eu. E em meus textos e palestras alerto para a importância de se conviver com a diversidade desde criança.

E, apesar de ainda ser um tema extremamente polêmico, também creio que para a maioria dos alunos com deficiências mentais - salvo raríssimas exceções - estudar em meio às crianças com e sem deficiência é extremamente importante para o estímulo do seu potencial, não sub ou super estimando-o. Portanto, o ambiente escolar inclusivo é a melhor solução para quebramos tabus e construirmos uma sociedade mais humana!


Cursinho pré-vestibular: um passo muito importante rumo a faculdade

Continuando minha trajetória pela educação, em 1995, antes de ingressar na faculdade - meu grande sonho -, fiz cursinho pré-vestibular. Lá também encontrei muitas dificuldades com as barreiras físicas e comportamentais. Nunca ninguém se preocupou em construir uma rampa no lugar dos degraus da entrada do prédio, mesmo com a presença de uma aluna em cadeira de rodas. Pois eu já usava apenas um par de muletas e subia a escadinha sem problemas. Mas essa menina, que também estava na mesma sala que eu, tinha que ser carregada pela tia-avó - já com uma certa idade - todos os dias para conseguir estudar. Raramente, um aluno ou professor "dava uma força", mas nunca se preocuparam em proporcionar independência a ela, pois pagava em dia sua mensalidade, como todos os outros alunos, portanto tinha o direito a acessibilidade. Eu insistia para que ela e sua tia solicitasse aos diretores uma rampa, mas elas tinham medo de perder a vaga e o desconto no curso. E era óbvio que se tratava de uma relação extremamente assistencialista. Era como se a escola tivesse o terrível e completamente falso direito de dizer: "Você não tem do que reclamar. Afinal, deixamos você estudar aqui e ainda lhe ajudamos com um desconto".

Esse fato era inadmissível, pois já em 1989, a Lei 7.853, em seu art. 8º, dizia que: "... Constitui crime, punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa: I - recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta..." E no parágrafo único também estava escrito que os órgãos públicos ou privados deveriam: "... proporcionar tratamento prioritário e adequado, tendente a viabilizar, sem prejuízo de outras, as seguintes medidas: V - na área das edificações: a) a adoção e a efetiva execução de normas que garantam a funcionalidade das edificações e vias públicas, que evitem ou removam os óbices às pessoas portadoras de deficiência, e permitam o acesso destas a edifícios, a logradouros e a meios de transporte, e..."

Finalmente o grande sonho: ensino superior!

É por isso que em 1996, quando passei no vestibular para cursar Comunicação Social em uma faculdade particular, não me preocupei em perguntar a diretoria se seria aceita - o que infelizmente e vergonhosamente fui obrigada a fazer durante 15 anos de minha vida! Estava pronta para acionar o Ministério Público, caso ocorresse algum problema. Isso não significa que fui "chata" com os diretores, professores, funcionários ou alunos, pois o processo de inclusão deve ser um mútuo conhecimento das especificidades entre as pessoas e o ambiente. E é importante deixar claro que defender direitos não implica em cometer infrações, desde que se esteja dentro da lei. Afinal, na hora de cumprirmos nossos deveres cíveis, como pagar impostos, votar para eleger nossos governantes e responder à justiça sobre nossos atos, ninguém nos diferencia em pessoas com deficiência ou não. Não é verdade?

Também é importante lembrar que, muito antes de 1996, algumas conquistas em termos de legislação foram alcançadas pelas pessoas com deficiência. Porém, ações eficazes ainda não eram colocadas em prática. E mesmo com um aluno em cadeira de rodas, uma de andador, outra com a altura comprometida, além de mim, que usava um par de muletas e tinha a altura também abaixo de 1 metro, todas as instalações da faculdade não eram totalmente acessíveis. Quando perguntei o porquê, a coordenação informou, que uma menina com dificuldade de altura já havia estudado lá. Mas todos a ajudavam a alcançar os locais mais altos, colocando banquinhos móveis e sem segurança para que ela subisse. E a única rampa, que dava acesso apenas a uma das salas de aula, foi construída para auxiliar um antigo aluno que usava uma cadeira de rodas. Assim, segundo a diretoria, as adaptações só eram feitas quando eles achavam necessárias.

Atitudes essas, ainda eram um pouco assistencialistas, pois os diretores da faculdade não haviam se conscientizado sobre a importância da independência e autonomia das pessoas com deficiência. Era como se esses alunos fossem depender das outras pessoas durante toda sua vida, ou permanecerem em um único espaço físico. Hoje, fatos como esse, infelizmente, ainda ocorrem, mas talvez em menor escala em algumas escolas da chamada "classe média". Pois, as áreas mais periféricas das grandes cidades e o interior dos Estados - salvo exceções - ainda sofrem bastante com a falta de informação das escolas sobre o direto à educação que essas pessoas têm.

E, por incrível que pareça, em 1998, mesmo cursando o terceiro ano da faculdade, a sala de aula onde eu estudava localiza-se no segundo andar do prédio. Com grandes dificuldades para subir uma escada de mais de 20 degraus, eu praticamente não descia durante o intervalo, pois o tempo não era suficiente para subir depois. Conseqüentemente, acabava ficando segregada de todo ambiente escolar. E só depois de dois meses de muitas reclamações e uma burocracia tremenda consegui mudar de sala. Porém, a maior parte das dificuldades encontradas era em relação à falta das equiparações de oportunidades ao meio físico, pois o relacionamento com todos os professores e colegas foi tranqüilo. Sempre fui aceita por todos e até incentivada a me tornar mais independente fisicamente e psicologicamente. Pois, apesar de já começar a desenvolver uma atitude inclusiva em relação à vida, ainda tinha algumas dificuldades de aceitação interna, medos e traumas. E, com o passar dos anos, em meio às loucas e gostosas aventuras universitárias me encontrei como mulher, cidadã e portadora de uma limitação física. Foi um grande aprendizado para todos, pois os professores e amigos também comentavam sobre a valiosa troca de experiências ao conviverem comigo.

Em 1999, já mais desinibida, comecei a reivindicar fortemente meus diretos. E a primeira grande luta foi conseguir uma vaga para estacionar o carro, com o qual eu era conduzida por parentes ou amigos, pois, de acordo com o Decreto 3.298 de 1999, um dos Parágrafos Únicos, já determinava que: "... I - nas áreas externas ou internas da edificação, destinadas a garagem e a estacionamento de uso público, serão reservados dois por cento do total das vagas à pessoa portadora de deficiência ou com mobilidade reduzida, garantidas no mínimo três, próximas dos acessos de circulação de pedestres, devidamente sinalizadas e com as especificações técnicas de desenho e traçado segundo as normas da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas)..."

Mas, somente depois de diversas cartas ao diretor e reuniões adiadas com a coordenação - além de, literalmente, terem batido a porta na minha cara -, consegui solicitar a reserva de uma vaga em frente à faculdade. O que acabou finalmente colocando em prática o direito de ir, vir e permanecer em um estabelecimento de ensino, não apenas para mim, como para todos os demais alunos com alguma deficiência física. Assim, o aluno usuário de cadeira de rodas também pode usufruir desse direito, pois, infelizmente, as calçadas e ruas próximas à faculdade eram praticamente intransitáveis devido aos buracos e elevações. Porém, as adaptações nos banheiros só foram terminadas no final de 1999, ano em que eu estava me formando em Produção Editorial. E foi com alegria que finalmente encontrei rampas e portas largas dentro do banheiro, no último dia em que estive na faculdade, apresentando meu trabalho de conclusão de curso.

Hoje, as novas unidades da agora universidade encontram-se mais acessíveis, porém ainda não contemplam todas as necessidades e direitos constitucionais dos futuros alunos com alguma deficiência ou necessidade especial. Pois é fato que, variando de acordo com cada estabelecimento de ensino superior, muitos ainda não demonstram interesse em preparar o ambiente para receber, principalmente, alunos que necessitem de sintetizadores de voz, intérprete de Libras ou recursos pedagógicos de alguns materiais de apoio no exame pré-vestibular e durante as aulas. Além da falta de iniciativa na qualificação de professores e funcionários para lidarem com as especificidades dessas pessoas. É preciso divulgar mais, que o conceito de Desenho Universal pressupõe a acessibilidade física e de comunicação. Pois algumas pessoas ainda pensam que adaptar é apenas construir rampas, as quais muitas vezes são feitas fora dos padrões da ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas). E também esquecem que outras pessoas, como crianças, obesos, grávidas, mães com carinho de bebê e idosos, poderão fazer uso desses espaços!


Voltar a estudar: um grande desafio!

No penúltimo ano da faculdade, lutei muito para conseguir estagiar na área e só consegui trabalhos paralelos à minha formação. Em todos os lugares, precisei reivindicar meus direitos à equiparação de oportunidades, pois os conceitos de educação inclusiva apenas estavam começando a serem disseminados. Enviar currículos e procurar vagas de estágio ou emprego nos meios de comunicação era muito difícil, pois eram pouquíssimas as empresas que acreditavam no potencial de pessoas com deficiência. Hoje já é mais fácil conseguir outras oportunidades de emprego. Principalmente, devido a Lei 8.213 de 1991 - que funciona como uma política afirmativa para garantir a inserção qualitativa desses cidadãos aptos ao mercado de trabalho e que há 10 anos ainda não era aplicada com rigor -, graças à fiscalização do Ministério Público. Mas, com certeza, naquela época, a oportunidade de acesso à educação foi fundamental, para qualificar-me para à terrível concorrência do sistema capitalista. E caso não tivesse apoio da minha família, também não teria estudado em colégios inclusivos. Pois na época eram raras as escolas públicas que aceitavam crianças com deficiência, por isso, cursei particulares e muito caras.

Infelizmente, muitas crianças em pleno século 21 ainda não têm acesso à escola, menos ainda, às com alguma deficiência. Pois não conseguem nem mesmo sair de suas casas devido à precária condição dos meios de transporte. Creio que esse seja o principal fator para a nossa exclusão, pois como ter direito à saúde, educação, cultura, esporte entre outros, se não se pode chegar até eles? É por isso que eu ainda não consegui ingressar em um curso de pós-graduação em Comunicação Social, além de outros cursos de especialização na área. Pois não tenho recursos financeiros para arcar com as despesas do curso e gastos com transporte. Por isso, voltar a estudar hoje é um grande sonho. Mas, eu não vou desistir tão fácil desse objetivo, como sempre fiz em minha vida. Vou transformá-lo em realização, e mostrar às pessoas, que apesar das adversidades, podemos vencer os obstáculos e derrubá-los para que os nossos filhos não tenham que passar por eles.


Educação inclusiva: refletir para evoluir!

Após 22 anos, creio que o sistema de educação brasileira evoluiu em relação à inclusão de alunos com alguma deficiência devido a alguns fatores, porém, ainda não o suficiente. Afirmo isso com base, principalmente, na criação das leis que asseguram a todos o acesso às escolas e universidades; em algumas experiências bem sucedidas de colégios inclusivos com a saudável convivência de alunos com e sem deficiência; e das profundas mudanças nas chamadas "classes especiais", as quais - na minha opinião e de vários especialistas renomados - tendem a desaparecer. Esses fatos carregam uma dose de mudança de paradigma por parte da sociedade, sobre a diversidade humana e todo seu potencial. Porém, ainda estamos começando a caminhar na estrada de uma educação para TODOS! Cabe a cada um fazer a sua parte com coragem e determinação, conscientes da realidade em que vivemos, mas nunca tirando um dos pés do terreno dos sonhos. Transformando-os em objetivos concretos e acessíveis: hoje, amanhã e sempre. Afinal, todos somos e estamos no mundo da forma que nos foi apresentada: humana.

Agradeço a atenção de todos, aguardo as opiniões sobre essas palavras e desejo conhecer suas histórias no universo da educação. Professores, educadores, alunos, pais ou profissionais interessados mandem notícias sobre suas experiências com a educação inclusiva!

Até breve!

Abraços, Leandra


Este artigo foi publicado nos seguintes portais:



Um trecho do artigo também foi publicado no livro:  

"Educação Inclusiva: o que o professor tem a ver com isso?" - Rede SACI - Imprensa Oficial - 2005 (ISBN: 85-7060-377-0). Pg. 81.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Uma turnê diferente

Mundo Asas

Este é um filme de estrada. Músicos, cantores, dançarinos e pintores; todos importantes artistas com diferentes capacidades e diferentes deficiências expressam suas visões de mundo, acompanhados pela voz, talento e experiência de Leon Gieco, numa turnê por várias cidades argentinas. Durante esse tempo, histórias de amor e relações humanas se revelam como prova de que a integração é possível. Uma maravilhosa experiência musical sobre superação de dificuldades e amor, que começa por nomear e reconhecer as pessoas por suas capacidades.


A série de 10 episódios: "Uma turnê diferente", exibida pela TV Cultura (de segunda a sexta, às 8hs e 30min), acompanha o tour pela Argentina. O comandante da história é o também músico León Gieco, que, ao lado de Fernando Molnar e Sebastian Schindel, assina a direção. A viagem começa logo após uma apresentação de León no Palácio do Governo junto com esses personagens que dispõe de uma imensa energia musical. A proposta da série é, a partir deste instante, mostrar o passo a passo da empreitada artística. Ela faz parte do projeto "Mundo Asas", que inclui além deste programa de TV, um CD, um filme e um livro.



BLOG do livro: http://cuentoconalas.blogspot.com/

Música de Alejandro Davio, um dos cantores da turnê: http://www.4shared.com/account/audio/3vV5FJsW/CABALGANDO_EN_LAS_PROFUNDIDADE.html



MUNDO ALAS es una road movie. Un viaje iniciático de un grupo de jóvenes artistas nóveles que muestran su arte junto a la voz, el talento y la experiencia de León Gieco a lo largo de una gira por diferentes provincias argentinas.

Músicos, cantantes, bailarines y pintores, todos ellos grandes artistas con distintas discapacidades que expresan y comunican su mirada del mundo: Aquello que les preocupa, que los anima, que los inspira, en un show que combina música, danza y pintura. Un show donde se destacan el rock, el folclore y el tango junto a grandes éxitos de León Gieco.

A lo largo de la gira y de la película se van conociendo las historias de vida de cada protagonista y su evolución artística. Los shows, ensayos, la ruta y los hoteles son los escenarios de anécdotas y música que generaran nuevos sueños: lograr editar el disco de “Mundo Alas” y consagrar la gira con un gran show en el Luna Park. Al tiempo que surgen historias de amor, de relaciones humanas que demuestran que la integración es posible.

Un film único que espera incluir a todos, una maravillosa experiencia musical sobre la superación y el amor, que empieza por nombrar y reconocer a las personas por sus capacidades.



Descrição da imagem: foto da turma completa em frente uma catedral.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O sonho da causa própria

Por Pedro Ulsen - Fonte: Rede SACI - 13/03/2008

Provocações

Leandra está sentada na cadeira. Sente-se bem. A data é 17 de novembro de 2002. Aos 25 anos, acabara de se formar em produção editorial, atuava como jornalista e militante pela sua causa. Havia pedido para ir ao programa. O som de vozes entrecortadas e destoantes anuncia o início e Antônio Abujamra declama um poema de Mário Sá-Carneiro: “Feminina”. Leandra está no Provocações, da TV Cultura. Está pronta para provocar?

Diz Antônio Abujamra: – Nós não queremos fazer o que as televisões fazem, que é o aproveitamento de uma estética da pobreza, uma estética da tragédia. Não. Nós queremos pegar as pessoas e colocá-las para baixo se for preciso e para o alto se elas quiserem.

E anuncia: – Ela veio para conversar sobre os seus vinte e cinco anos, sobre a vida, o mundo, as coisas. Ela é Leandra Migotto Certeza!

Leandra está tranqüila. De fato, solicitou à produção do Provocações ser entrevistada pelo apresentador que sempre admirou. Neste 2007, cinco anos depois, ela relembra com alegria aquele momento em que bateu um papo com um grande jornalista – em sua avaliação.

Questionada sobre sua deficiência física, Leandra explica que apresenta má-formação óssea, uma deficiência no colágeno, que dá sustentação para a calcificação dos ossos. Com isso, sofre muitas fraturas e dificuldades de crescimento.

Você já se perguntou “por que eu”, Leandra?

– Há um tempo atrás, na adolescência. Hoje consigo pensar de uma forma realista. Por que cada um é do jeito que é? É porque é, não tem muito o que discutir.

– Como você vê o mundo?

– É um desafio que a gente enfrenta a cada dia. É uma loucura. Eu acho que é uma loucura. Mas eu acho divertido às vezes. Acho que se fosse tudo perfeito, como a gente quer que seja, como o ser humano quer, não teria graça.

Leandra escreve também. Comenta sobre seus textos. Fala que o que escreve é empírico. Escreve sobre o que vê, o que vivencia, o que sente. Tem se dedicado a poesias e crônicas ultimamente. A última recebeu o título de “O amor transforma”.

De frente com Abujamra, ela fala sobre a situação do deficiente no Brasil. Para ela, ser deficiente significa matar um leão a cada dia. Não alcança o caixa do banco, e quando se depara com uma escada, não há chances. Ônibus então, impossível. Transporte é o mais difícil para um deficiente. Para viver bem, o deficiente tem que ter um padrão de vida muito alto.

Na Idade Média, conta-se, o deficiente era jogado precipício abaixo; a velha questão da lei da natureza.

– Você preferia isso?

– Não, porque eu adoro viver.

– E a vida, o que é a vida pra você?

– Um desafio gostoso e trágico.

– O que falta?

– Quero ser vista como cidadã. Temos que cada vez mais tentar estar no mundo para exercer o que a gente é, sendo o que a gente é. Falta, na verdade, inclusão social.

Da mesma forma que Suely, sua grande amiga e também personagem desta história, Leandra recebeu, ao se formar na faculdade, um presente. Quando havia entrado para o curso de Comunicação Social, habilitação em Produção Editorial na Anhembi Morumbi, em 1996, a faculdade não contava com nenhuma estrutura de acesso para deficientes. Quando já se formava, em 1999, na última semana de aula, viu concluída algumas obras de acesso para os deficientes na faculdade. “Saí chorando. Pelo menos consegui algo”, lembra-se.

Conseguir algo não é assim, de repente. Conhecendo melhor Leandra, posso entender como é a situação do deficiente no Brasil e por quais caminhos andam aqueles que buscam mais; como estará sendo a trajetória dessa personagem real que batalha como todos os dias para ter o seu lugar ao sol e que, cotidianamente, vence preconceitos e tem dificuldade de ser vista, respeitada e aceita.

Antes mesmo de nascer, Leandra já sofria, no útero de sua mãe, fraturas por todo o corpo. Os pais ainda não sabiam, mas aquela garotinha que estava a caminho, 30 anos atrás, tinha uma deficiência genética não muito comum e nasceria com “osteogenesis imperfecta”.

A deficiência rara – que atinge um a cada 21 mil nascidos, ou cerca de 15 mil brasileiros – rendeu à Leandra ossos frágeis e certas dificuldades próprias da deficiência. Depois de passar uma semana na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), Leandra recebeu alta do hospital, de onde saiu deficiente física.


Casos diferentes

Aos seis meses e meio de gestação, Suely nasceu em um sítio no interior de São Paulo, sem nenhum tipo de assistência médica ou hospitalar. Passou por um parto difícil, que lhe deixou seqüelas. A prematuridade e a demora na realização do parto lhe trouxe anóxia (falta de oxigenação no cérebro), e danificação de alguns neurônios que estavam em formação. Ainda bebê, Suely viu-se com dificuldades motoras, de articulação da fala e da escrita, sem, contudo, apresentar nenhum grau de deficiência mental. Seu quadro era o de paralisia cerebral do tipo atetóide, com dupla hemiplegia.

Com poucos recursos para tratamento, fora dos grandes centros urbanos, a família decidiu mudar-se para São Paulo, onde teriam o acesso facilitado a certos cuidados. Quando criança, Suely lembra-se, brincava muito, principalmente com um vizinho, ainda hoje seu amigo. Com carinho, ela recorda daqueles momentos em que tinha grande liberdade para se divertir na rua, o que incluía brincar de carrinho de rolimã. O começo da história de Suely.

Paralisia cerebral (PC) é um termo que descreve um grupo de disfunções que afetam os movimentos e a coordenação motora do corpo. Na prática, o que ocorre é uma desordem de movimentos e/ou de postura. Se há algum dano na formação do cérebro do bebê até os seus três anos de idade, pode haver um quadro de paralisia cerebral.

Os efeitos da paralisia variam de pessoa para pessoa. Na sua forma mais leve, o resultado pode ser movimentos desajeitados ou controle deficiente das mãos. Na sua forma mais severa, pode haver falha de controle muscular, com alterações nos movimentos físicos e na fala. Algumas vezes pode haver outras conseqüências, como convulsões, e dificuldades de aprendizagem. O grau da deficiência física da pessoa com PC, no entanto, não tem nada a ver com o grau da sua inteligência.

O caso de Leandra é diferente. Ela tem “osteogenesis imperfecta”, ou “síndrome dos ossos de cristal”, como é popularmente conhecida. Trata-se de uma deficiência de origem genética provocada por uma falha no colágeno (tecido formador dos ossos), que resulta em uma estrutura óssea extremamente frágil, sujeita a fraturas contínuas, inclusive durante o período de gestação.

Os deficientes com OI, como Leandra, apresentam fragilidade óssea, com fraturas e deformidades. Normalmente, são de baixa estatura, têm desvio na coluna vertebral e deformidade torácica. Geralmente também apresentam deformações nos ossos longos e limitações de movimentos. Dores são constantes em decorrência das fraturas freqüentes. “Durante minha infância tive fraturas continuamente. Até os meus 14 anos, já eram mais de cem fraturas. Um sofrimento muito grande.”

Para uma criança que requeria certas cautelas, Leandra foi bem brincalhona. Cursou o pré-primário em meio às delícias da infância, era livre em sua espontaneidade, não entendia muitas coisas e a maioria delas sequer ouvia. Abusou da criatividade e, sem medos, traumas ou cercas, viveu como toda criança tem que viver.

A seguir, alguns trechos (em itálico) escritos por ela mesma, em outros momentos de reflexão:

Comi muita areia, brinquei de pega-pega, pulei corda, cantei cantigas de roda, visitei parques, fiz desenhos, aprontei com massinha de modelar, subi em trepa-trepa, brinquei de roda, aprendi a ler e escrever. Aos cinco anos, dava um jeito de participar de tudo. Como minhas pernas ainda não tinham forças para agüentar meu corpo, usava o bumbum e corria pelo pátio junto com os amigos. Sabia que para fazer algumas coisas precisava de ajuda, como: subir em cadeira ou escada, pegar um livro na estante, ir às excursões... Mas nunca deixei de ser e estar na escola!

Depois de ser alfabetizada, justamente pela dificuldade enfrentada em encontrar vagas em escolas, Leandra viveu a amarga experiência de estudar dois anos em uma escola considerada “especial”, e consideravelmente famosa, própria para crianças deficientes. O modelo era puramente assistencialista. Não promovia a inclusão de ninguém.

Lá estagnei. Pois, numa mesma sala, uma vitoriosa professora tinha o árduo e mágico objetivo de ensinar crianças com diferentes graus de deficiência e séries distintas. Mas, sem dúvida, o fato mais marcante era a existência de uma grade que nos separava do outro mundo – o das crianças ditas “normais”. Isso era um horror! Tínhamos que tomar lanche também em um pátio separado. Parecia que iríamos transmitir alguma doença contagiosa ou “aterrorizar” as outras crianças com a nossa aparência diferenciada.

Leandra, criança, queria era brincar, estar ao lado de todas as crianças. Leandra Certeza começava a conhecer o mundo, mas este a rejeitava. Jogava-a de lado. Como explicar isso a uma criança? Que coisa é essa de segregação? Ela não entendia era nada...

Naquela época era muito complicado para uma menina de sete anos, esperta como eu, ser ignorada e ter de pedir “por favor” para ser vista pelo mundo. Por isso, sempre que possível, dava uma fugida e passeava pelos corredores do colégio no colo das “tias”. Elas me levavam de volta ao sonho do qual despertara: o convívio com todas as crianças.

Dos 7 aos 14 anos Leandra não andou. Sofria de recorrentes fraturas e o processo de crescimento do seu corpo impedia-a de desenvolver uma coordenação motora mínima para simplesmente andar. Aos 14, já em melhores condições, batalhou firme pela reabilitação. Utilizava sempre a cadeira de rodas e, praticando exercícios com barra paralela e muletas, voltou a andar aos 18 anos. Quando adolescente, com 14, conta, começou a encarar psicologicamente a deficiência, reconhecendo, inclusive, outros deficientes. Antes disso, não aceitava sua condição, diz.


Escola e militância

Suely, na escola, era aluna aplicada. Dentro da sala de aula era vista como estudiosa e inteligente; sempre foi colocada como um exemplo a ser seguido.

A seguir, reflexões escritas por ela própria (em itálico):

Como isso pesava! E eu não me considerava nada disto, e, ao mesmo tempo, tendia a acreditar e a carregar este peso. Na verdade, esta identidade atribuída foi produto de uma dificuldade que eu tinha em escrever, falar, e de coordenação motora, devido à paralisia cerebral.

Suely não se sentia bem em seu ambiente escolar. Estudava muito e procurava fazer tudo como as outras crianças. Queria estar bem, e queria ser como as outras crianças – mas estava fora de lugar. Na hora do lanche eu ficava num grupinho de "marginais" — uma era gorda demais para a idade, outra era pobre e simplória para a categoria do colégio, ainda havia uma que era filha de pais desquitados e outra, negra.

Após terminar o primeiro grau e ingressar no colegial, Suely continuava a sentir uma angústia que a prendia, um sentimento que a levava, sempre, ao seu próprio mundo interior. Era uma excelente aluna, por assim dizer, mas cautelosa. Tímida, e ao mesmo tempo com necessidade de autoconfiança e auto-estima.

Continuando a minha trajetória, freqüentei o colegial todo, sem problemas aparentes. Sem problemas aparentes porque, no final de 1º ano, a psicóloga da escola chamou a minha mãe e eu para ter uma conversa séria. Pensei: “É hoje! Fui reprovada!” Mas não era esse o assunto a ser tratado.

O assunto era a minha atitude de não falar em classe. A psicóloga me chamou de egoísta porque não queria compartilhar a minha experiência de vida com as colegas. E eu pensando: “Por quê? Não há nada demais na minha vida. Ela é desinteressante”. E não era bem assim. Com o passar do tempo é que fui entender a bronca que levei.

Eu entrava muda e saia calada da sala de aula porque eu não achava que aquilo que ia colocar era importante, muito pelo contrário. Muito mais tarde, fui ver que o medo de ser descoberta na minha deficiência mental, que eu não tinha, pesava muito. Ao mesmo tempo, lutei para provar, inclusive para mim, que eu era capaz intelectualmente. Após o colegial, prestei o vestibular e entrei para a PUC em Filosofia.

Leandra movimenta-se atualmente utilizando cadeira de rodas. Em contraste com seu corpo – pequeno para a média de um adulto –, Leandra mantém mãos fortes, vigorosas, que apertaram com muita energia as minhas mãos. Possui cabelos castanho-claros, de comprimento médio, e no olhar carrega alta dose de inteligência, atenção e determinação. É enfática quando fala. Não faz o tipo boazinha e muito menos maldosa. É valente, firme e raçuda, mas absolutamente doce e solícita com quem propõe a ela uma amizade verdadeira. Leandra tem algo a nos contar.

Foi durante o curso de Produção Editorial, iniciado em 1996 na Universidade Anhembi Morumbi, que Leandra partiu para uma nova visão sobre a situação e as dificuldades de outros deficientes no Brasil. Dedicou-se a melhorar isso. “Na faculdade nenhum acesso era adaptado aos deficientes, conforme necessário. Eu me incomodava com isso. Queria fazer mais coisas, agir mais.” Envolveu-se com o Clube dos Paraplégicos, em São Paulo. Entre umas reuniões e outras também se dedicava a campeonatos de natação.

Também participou de grupos de discussão, com os colegas do curso e outros alunos da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Escreveu para jornais e revistas especializadas. Agitou e militou. Até que, em 1999, juntamente com amigos de militância, se uni à ABOI – Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta.

A Associação fundada por amigos de Leandra é uma organização que se dedica a ajudar os portadores de OI a lidar com os problemas associados a esta doença. A sua missão, em que Leandra Migotto Certeza responde como diretora de divulgação, trabalhando voluntariamente, é melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas pela OI por meio da informação, conscientização da sociedade e ações coletivas junto aos órgãos de saúde e justiça. Também trabalha pelo incentivo à pesquisa sobre a deficiência e fornecendo dados e estatísticas sobre a OI. Todas as pessoas que administram a ABOI são portadoras de osteogenesis imperfecta elas mesmas ou são familiares de portadores da doença. Nela se reúnem, atualmente, cerca de 400 voluntários que buscam apoio mútuo e especialmente seus direitos de cidadãos.


Graduações

Estudar filosofia na PUC de São Paulo foi a primeira e única opção de Suely quando prestou vestibular. O ano era 1972. Iniciava-se ali, exatamente ali, naquele início de curso, um processo que faria parte de todos os outros momentos da sua vida. Ela atirava-se, como se atira aquele que sabe que há o que buscar, que há o que colher. Ela sabia que com o início desse processo teria mais condições de se transformar. Não sabia muito bem o que encontraria, mas não lhe restava dúvidas de que era preciso navegar. Suely navegou e foi longe. Muito longe. Hoje pode dizer o que buscava. Àquela época, o que a movia era puramente uma busca espontânea e incerta, porém necessária.

No segundo ano do curso, em busca de cura, Suely Satow partiu para um tratamento diferenciado, o método Dowman. Em seis meses de tratamento – fracassado – Suely não se curou. Teve mais dor de cabeça, espasmos fortíssimos e crises de labirintite terríveis. A faculdade teve que ser interrompida.

Vejamos outros trechos de textos (em itálico) escritos por ela:

Após procurar muito, encontrei um neurologista que, depois de três consultas, disse para eu tirar o cavalinho da chuva, se estava com esperanças de “cura”. Eu fiquei muito agradecida a ele por isso. Depois, na consulta posterior a isso, ele disse que mais de 70% dos problemas físicos que eu apresentava eram de origem psicológica, e me mandou para um psiquiatra.

Com o início da psicoterapia, Suely estava de volta à sua jornada. Com muito incentivo dos médicos e da mãe estudou e se dedicou muito. Foi aluna aplicada. Graduou-se filósofa e, não satisfeita, também cursou Comunicação Social pela mesma universidade. Já tinha na bagagem não somente uma, mas duas graduações. Passou por um longo período de amadurecimento.

Suely já conseguia ver mais claramente por onde poderia seguir para encontrar as compreensões que necessitava. Já via que ali, naquele caminho de universidade e conhecimento, podia, na verdade, tratar de conhecer melhor a si mesma. Podia, claro, entender o seu próprio mundo, com as especificidades do seu ser e do seu ser paralisada cerebral.

Nesse meio tempo, consegui me ver na condição de deficiente, com a ajuda de muita psicoterapia, e me tornei militante pela nossa causa.

Partiu para a dissertação de mestrado, também na PUC-SP. Foi pesquisar o preconceito que sofrem os deficientes físicos. Estudou a identidade de um militante político revolucionário deficiente físico. Mestrado. Depois doutorado.

Hoje, sou Doutora em Psicologia Social e minha tese foi referente à Identidade dos Paralisados Cerebrais Socialmente Ativos. Esta pesquisa acabou sendo editada em livro pela Cabral Editora Universitária com o nome “Paralisado Cerebral: Construção da Identidade na Exclusão”.

Após um longo período de estudo, reflexões e muita dedicação, Suely aponta com muita clareza o que tanto a instigava em seus estudos.

Agora sei, com certeza, de que eu estava à procura de minha identidade como ser humano desde a escolha de meu curso de graduação em Filosofia. E, vejo que, apesar dos sofrimentos causados pelos preconceitos e conseqüente discriminação, sou uma pessoa com muita sorte, pois na minha militância e na pesquisa sobre os PCs, encontrei pouquíssimas pessoas com esta deficiência que chegaram a concluir um curso universitário com muito esforço, pois havia limitações nos próprios corpos e também as barreiras arquitetônicas e os preconceitos. Outros, não chegaram a finalizar sequer o primeiro grau, pois as barreiras atitudinais e físicas são enormes. Ainda, há os que simplesmente foram deixados de lado, ou escondidos, pelas condições não “normais” de seu físico. Chego a colocar, em minhas palestras, que eles são trancados no armário.

Para Leandra, tudo o que ela fazia era ainda insuficiente. Ela queria participar, atuar, mudar. Tomou uma decisão: “Ser jornalista na área social”. Em 2000 envolveu-se no Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência, em cujas reuniões debatem-se políticas públicas voltadas aos deficientes, que representam 15% da população brasileira de acordo com o Censo Demográfico de 2002 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No Conselho Municipal Leandra conheceu mais sobre as leis voltadas aos deficientes e envolveu-se com o grupo de dedicado à apresentação de propostas para o acesso dos deficientes ao transporte público de São Paulo, capital.

Ainda enquanto atuava no Conselho Municipal, buscando emprego na área social, Leandra tornou-se colunista colaboradora do site da revista “Sentidos”, publicação da Áurea Editora focada em deficientes. E era lá mesmo que sonhava trabalhar. Finalmente, teria espaço para ampliar sua luta e trazer à tona outras tantas discussões sobre inclusão social. A vivência durou dois anos. Lá, Leandra relembra, fez muita cobertura de eventos, entrevistas, escreveu colunas para o site e fez muita edição de textos.

– Acredito no ativismo por direito, não por assistencialismo. Estamos aí para viver, e eu sou cidadã como qualquer outro cidadão, também pago meus impostos e exijo meus direitos.

– E o que te incomoda Leandra?

– A sociedade me incomoda, por ser preconceituosa. Também não poder engravidar e ter meus próprios filhos é um pouco triste para mim, e também o fato da minha deficiência se agravar com o tempo. Também tenho muito incômodo com a corrupção deste país, discriminação racial e desigualdades sociais. Mas também tem uma coisa. Isso tudo me incomoda, mas não me paralisa. Tenho um caminho de ação e de aceitação, que não significa conformismo.

Considerando a necessidade de melhoria da condição social de muitas pessoas, notadamente dos deficientes, Leandra coloca-se de maneira muito semelhante ao que pensa Suely Satow: “Cada vez mais a inclusão social é necessária. Mas uma inclusão bilateral, que significa a participação entre eu e a sociedade, cada qual no seu papel”.


Ao banco

Fazia um friozinho lá fora, mas nada desanimava Leandra a retirar seu benefício do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), no Banco do Brasil, no Largo da Batata, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. São 15h34 do dia 31 de maio de 2007. Estamos no Sesc Pinheiros, local em que Leandra pratica natação duas vezes por semana. Estão indo ao banco, então, Leandra, Marcos dos Santos, seu noivo – que teve paralisia infantil –, e eu.

– Precisamos que você empurre a cadeira até lá. Tudo bem? – Ela me pergunta.

- Claro.

O percurso, de aproximadamente 400 metros, é nos arredores do Largo da Batata. Estamos entre centenas de lojas, camelôs, carros, pedestres, motos, ônibus; a cidade fervendo em ritmo alucinado. Vida social cotidiana. Neste pequeno tempo, o que encontramos pela frente foi muito desrespeito e atitudes agressivas, principalmente por parte dos motoristas e motociclistas.

– Você viu que os caras não respeitam! – Leandra ratifica.

– Tem razão - concordo. – Também vi que cada degrauzinho, mesmo esses pequenos das rampas de acesso, representam uma grande dificuldade. Também percebi que todo o percurso de quem usa cadeira tem quer ser muito bem planejado, por conta dos acessos.

– Olha lá aquele carro – Marcos aponta. – Entra com tudo! Cuidado, gente! Aqui é cada um por si, se não tomar cuidado eles passam por cima mesmo, viu?

Em notáveis gestos, e usando as suas muletas, Marcos me auxilia a guiar a cadeira de Leandra. No banco, ela recebe atendimento, embora não consiga entrar dentro da agência pela falta de adaptação aos cadeirantes. Resolve suas operações com a atendente enquanto converso com Marcos.

Marcos dos Santos usa boné azul, blusa cinza de moletom, calça jeans simples. Vez ou outra, pára, olha para longe. Leandra, em sua cadeira de rodas, estava bem à vontade. Em uma das rodas da sua cadeira, um adesivo do Clube dos Paraplégicos de São Paulo, redondo, azul, me chama atenção. Nele, o desenho de um boneco brincando com uma bola de basquete.

– Ele é louco por boné, se você quer ver ele feliz é só ele ganhar um boné – diz Leandra.

– Esse, faço a quinze pra você – o camelô faz uma oferta a Marcos.

– Agora você quer me ver feliz é em uma loja de CDs, uma loja de livros, aí sim, fico feliz – diferencia-se Leandra.

Já no percurso de volta, na rua Paes Leme, paramos em uma loja de tintas. Leandra precisa pintar sua cadeira de rodas para o congresso que participará em junho de 2007, no Peru.

– Temos esta aqui fosca, e também a tinta brilhante, diz o vendedor.

De volta ao SESC os namorados se curtem enquanto escrevo o texto. Entre cochichos e beijinhos, um pedido:

– Você não vai me ver sábado, paixão? – Ela pergunta.

Marcos olha, calmo, tranqüilo, enquanto mastiga um pão com qualquer coisa, embrulhado em papel alumínio. A despedida deles se encerra com um “Tchau, vai com Deus” de Leandra.

Após a ida de Marcos, conversamos mais uns pares de minutos. Leandra usa uma blusa roxa, de gola branca, protegida do frio paulistano. Tempo louco. Ela me conta que está passando por uns processos seletivos para emprego.

– Tenha calma. Tenho certeza que está preparada. É só manter a calma e depois fazer a prova. Você já chegou até aqui... – Conforto-a.

– Eu acredito que tenho capacidade, mas o meu problema é físico. Eu simplesmente não posso trabalhar o dia inteiro, e se eu passar e eles não aceitarem minha condição? A minha deficiência piorou. Tenho que fazer natação duas vezes por semana, além da fisioterapia.

Leandra está preocupada. É uma boa oportunidade de emprego, ela precisa dele, mas algumas situações dificultam seu acesso.
– E olha que esta Lei de Inclusão do Deficiente é de 1991... Mas só agora as empresas começam a respeitar, a contratar!

Entendimentos

Um longo caminho para se encontrar algo, e, algo encontrado, interiorizar algo. Interiorizar, reconhecer, entender, compreender. Mas o que virá depois disso? E como será o caminho de autoconhecimento, auto-análise, auto-afirmação de uma identidade caricaturada por preconceitos e ignorâncias sociais? Como será a trajetória de Suely Harumi Satow, esta mulher de riso fácil?

Sentada ao sofá, Suely está tranqüila e à vontade em seu ambiente doméstico. Nas paredes da sala de visitas, muitas pinturas e outros trabalhos de tapeçaria. No seu quarto, logo ao lado, um armário abarrotado de conchas do mar, sua coleção particular. Um computador do lado oposto, armário, cama. Tudo muito limpo e organizado.

Suely Satow tem 54 anos de vida. Aparenta muito menos, talvez 40. Veste calça de moletom azul e uma blusa Lacoste vermelha sobre outra blusa branca. Tem os olhos puxados, rosto arredondado, cabelo liso e curto – sinais da sua descendência japonesa. Transparece serenidade. Mantém as mãos constantemente colocadas ao lado das pernas, ou sob elas. Fala calmamente e articula um notável vocabulário. De quando em quando ajeita seus óculos com o indicador; aí a gente vê melhor o seu olhar. Pausa um segundo, dois segundos. Inspira e continua a falar.

Está se tornando adulta, cada vez mais adulta, cada vez mais madura; enfrentando questionamentos sobre sua própria identidade; sofrendo preconceito pela paralisia cerebral; afetando-se por eles; querendo desconsiderá-los; voltando-se para si mesma; buscando entender-se a si própria; autoconhecimento livre de qualquer tipo de preconceituação; procurando sua identidade. Quem é Suely?

Em diversos momentos de amadurecimento, Suely deparou-se com a necessidade de se autoconhecer. Todos passam por isso, naturalmente, e com ela não foi diferente. Mas havia uma questão. “A paralisia cerebral é um ponto crucial na vida de um paralisado cerebral. Se ele não fosse PC, seria outra pessoa”, entende Suely.

Desde sempre convivendo com situações peculiares ligadas à sua condição, Suely viu-se com a necessidade de entender a sua própria identidade. Levou essa busca para a academia – entenda-se mestrado e doutorado. Alguma coisa a buscava lá, alguma coisa a buscava, já devia imaginar que, lá no fim do túnel, encontraria a resposta para seus anseios. Partiu e se dedicou com afinco. Estudou muito. Aos poucos, enquanto estudava, entendia como se forma a identidade de um paralisado cerebral; entendia a si mesma.

Em meio a todos os envolvimentos em busca de mais justiça social, Leandra caiu envolvida. Por amor. Conheceu Marcos dos Santos em setembro de 2005, enquanto participava da ONG Espaço da Cidadania, na cidade de Osasco, na Grande São Paulo. Freqüentar aquele ambiente, que para Leandra era militância, tornou-se “uma questão muito pessoal”. Assim ela entende.

– Ele começou a me paquerar, mas não tinha nada a ver comigo. Mas aos poucos eu fui dando atenção a ele, e percebi que estava gostando dele. Quando vi, estava apaixonada. Ele é minha alma gêmea, me faz muito feliz.

Leandra está diferente. Está apaixonada.

– O amor transforma muito, e para melhor, graças a Deus. Ser amada é maravilhoso.

Afirma e transparece felicidade por este neste momento vivendo a sua sexualidade, seu relacionamento, seu namorado. O momento é de paz e amor. Também de aceitação.

– As pessoas precisam aparecer pra isso. O encontro com Marcos foi decisivo. Antes não estava tão tranqüila.

– E o primeiro beijo, como foi?

– Foi no cinema. Estávamos assistindo “Dois Filhos de Francisco” – lembra, meio envergonhada, mãos juntas, cabeça levemente inclinada, quase se escondendo entre os ombros.


Tese

Depois de finalizar a dissertação de mestrado, em que estudou a identidade de um militante político revolucionário deficiente físico, Suely decidiu partir para o doutorado, também em psicologia social pela PUC-SP. Nesta nova empreitada, se propôs a “estudar como se constrói a identidade do deficiente”. Para isso, estudou duas histórias de vida de paralisados cerebrais. A proposta da tese carregava em si algumas características únicas: primeiro que se tratava do estudo da história de vida deles, a partir da fala deles próprios. E, segundo, que a própria pesquisadora da tese era paralisada cerebral.

A tese de doutorado foi editada e tornou-se livro: “Paralisado Cerebral: Construção da Identidade na Exclusão” (Cabral Editora Universitária). A tese a que Suely chegou é a seguinte:

Os paralisados cerebrais não são considerados humanos. Para a sociedade, são caricaturas, tratados como objetos, e sempre da mesma forma. Isso cria neles uma identidade cristalizada, não móvel, o que significa um rótulo para eles. A partir disso surge muito preconceito e o paralisado cerebral absorve isso, não trabalha a sua própria noção de identidade.

Eis aqui um trecho (em itálico) do prefácio escrito pela orientadora de Suely, a professora Bader Burihan Sawaia:

Este livro é indicado a todos que se preocupam com a dignidade do viver. Ele fala de pessoas vitoriosas na dolorosa batalha contra políticas de identidade que definem modelos de participação social e atribuem papéis estereotipados. (...)

Mas não espere o leitor atos heróicos e transformações mágicas ou a demagogia do happy end hollywoodiano. O que se encontra é a renovação da esperança fundamental do gênero humano em poder traçar e retraçar seu próprio projeto de vida, mesmo que modestamente e com muito sofrimento. Processo que só termina com a morte.

O aspecto desconcertante do livro é que, por traz de uma trama simples, que se desenrola em torno da história de vida de dois portadores de paralisia cerebral, complementada na conclusão, pelas histórias de outros sete, ele apresenta reflexões teóricas que ampliam a nossa compreensão, tanto do processo de construção da identidade singular quanto do processo social da exclusão. (...)

Exclusão não é um estado que uns possuem, outros não. Não há exclusão em contraposição à inclusão. Ambos fazem parte de um mesmo processo. – “o de inclusão pela exclusão” – face moderna do processo de exploração e dominação. O excluído não está à margem da sociedade, ele participa dela, e mais, a repõe e a sustenta, mas sofre muito, pois é incluído até pela humilhação e pela negação de humanidade, mesmo que partilhe de direitos sociais no plano legal. A inclusão pela humilhação se objetiva das mais variadas formas, desde a inclusão pelo “exótico” até a inclusão pela “piedade” (personagem coitadinho) e não tem uma única causa. O estigma de ser portador de deficiência se interpenetra com outras determinações sociais como classe, gênero etnia e a capacidade de autodiferenciação dos indivíduos, configurando variadas estratégias de objetivação da reificação das diferenças.

A autora deste livro passou por esse mesmo processo, o qual analisa sem autopiedade, para transformá-lo em conhecimento “virtuoso”.


 “Amor transforma”

Quando eu encontrei minha alma gêmea, vi que o ser humano ainda é capaz de amar. Marcos dos Santos tem um olhar doce. Uma ternura... Sorri de dentro para fora. É puro e verdadeiro. Brinca feito criança na piscina do Sesc. Fala o que sente. Sabe o valor de um prato de arroz com feijão. Trabalhou muito para conquistar o pequeno teto que lhe abriga. Construiu cada pedacinho com seu próprio suor. É o homem que eu amo! É a alma que habita meu coração. Falar dele é muito intenso. É um oceano de emoções.

Eu sou a mulher mais feliz do mundo. Sou MUITO amada, e ganhei o maior presente da vida: uma pessoa íntegra. Infelizmente, muito rara hoje em dia. Com ele aprendo a falar mais baixo. A ter paciência. A ter calma. A ser humilde. A apenas ser. Estar com ele me faz crescer. Ser minha essência. Deixo de criar mais rugas na testa para rir das coisas simples, como comer bolo de chocolate com chá. Dormir abraçado respirando o mesmo ar. Sentir o calor da pele. Fazer um carinho no rosto. Colocá-lo para dormir.

Marcos me faz bem. Enche meu espírito de luz. Sinto-me segura ao seu lado. Amada. Desejada. Querida. O carinho com que ele acaricia o meu cabelo é tão único... Ele sempre me viu como uma pessoa. Para ele não sou uma deficiente. Uma menina. Uma coisa estranha. Uma eterna criança. SOU. Ele É. Nós somos! Talvez não existam palavras para explicar. Não, eu é que não tenho o dom de colocá-las para fora da alma e exprimir o quanto é vivo esse amor. E o que significa amar.

Escrever para mim é respirar. Não consigo viver sem as palavras. O mundo precisa saber que ainda é possível evoluir. Estender a mão a quem está do nosso lado. Nos amamos porque temos plena certeza que o que mais importa na vida é nos ajudarmos. Ele sempre foi generoso e solidário com quem ama, mesmo com quem não o conhece. Marcos não é capaz de ficar com 1 centavo que não seja dele. Sempre divide um prato de comida. Fica com frio para esquentar uma criança. Todo dia que vem até a minha casa cumprimenta o vigia que trabalha no consultório em frente. É simpático. Conversa com todo mundo na rua e dentro das casas. Sorri. Fala sempre a verdade.

Estranho falar que ele é assim? É que hoje, infelizmente, existem muitas pessoas que se fecharam em seu egoísmo. Vivem em uma redoma. Têm medo de serem que são. Colocam máscaras e fingem ser algo que não são. Marcos não é perfeito. É um ser humano. É teimoso, cheio de manias, turrão, bate o pé quando não quer alguma coisa, se pela de medo de ir ao médico, não gosta de cuidar da saúde, é bagunceiro, esquece chaves, óculos, e blusas por aí, é distraído, e às vezes muito triste...

Ao seu lado eu me libertei de pré-conceitos, quebrei tabus, desfiz mitos. Aos 28 anos, quando fui amada por inteiro, apossei-me de mim mesma. Não tenho mais que provar nada para ninguém, muito menos para mim. Sinto-me confortável dentro do meu corpo. Sou uma mulher amada e desejada. Sou uma super tia-mãe das crianças que chegam até mim. Sou FELIZ. Minha alma gêmea tirou o medo de me assumir. Pena que perdi tanto tempo tentando viver uma perfeição que não é humana... Hoje a diversidade é tão natural...

Estamos juntos há 1 ano e 6 meses. Até agora, o que mais me marcou em nossa relação foi a minha verdadeira aceitação. É por isso que sinto necessidade de falar sobre. Comigo foi assim: sempre vivi ouvindo que eu devia ser como os outros. Como a maioria. “O mundo não foi feito para a minoria. As pessoas são normais. Normal é morar numa casa legal, ter boas roupas, carro, estudar, viajar, ter um emprego, ter pernas, andar, poder dar à luz a um filho, ter uma altura mediana, fazer parte da sociedade”. Mas que sociedade? Falar da desigualdade é uma coisa, vivê-la é completamente diferente. Quando chego na comunidade onde Marcos mora, os vizinhos brigam para ver quem vai levantar a minha cadeira de rodas e subir-me pelas escadas. Na minha casa, meu pai se incomoda muito em ter que colocar minha cadeira de rodas dentro do carro, quando vamos almoçar num restaurante.

Na casa do meu noivo sou mulher. Converso na porta com as vizinhas, peço que batam um bolo para mim, cuido das crianças quando elas estão ocupadas. Ser pequena, andar em cima de uma cadeira de rodas, e ter um corpo um pouco mais diferente do que o delas não importa. Comem da minha comida. Aceitam o meu dinheiro quando compro algo que vendem. Ouvem os meus conselhos. Aceitam o meu convite para ir à lanchonete. Se sentem seguras em deixar seus filhos comigo.

Na minha casa me tratam feito criança. Tudo fica alto para que eu não possa alcançar sozinha. Tem tapetes por toda a casa. Não tenho privacidade em meu próprio quarto! Para eles, meu noivo é “mais um para dar trabalho”. Um pobre e deficiente. Uma escolha errada. Sexo? É a maior loucura que eu não deveria fazer. É como seu eu estivesse brincando de ser mulher. Quando era adolescente usar saia era proibido. Passar batom então... Tento não os culpar e, principalmente, não me culpar. Mas a responsabilidade é de ambos. Eu, que permiti ser tratada a vida toda dessa forma; e deles, que levaram anos para começar a me enxergar como realmente sou (se é que enxergam...). Infelizmente, um processo bem provável em um país sem caráter como o Brasil, que prefere esconder as todas as diferenças debaixo do tapete.

Esperança! É a palavra. Ainda bem que existem alguns Marcos por aí. Temos o melhor clima, a terra mais saudável, os animais mais bonitos, a flora mais rica em diversidade, a cultura mais criativa, as pessoas mais amáveis, mas muito a evoluir. A sociedade é formada por pessoas. E as pessoas se transformam. O amor transforma!

(“O amor transforma”, de Leandra Migotto Certeza)


Avante

A idéia de superação, comumente associada à transcendência de alguma dificuldade, apoiada em ações pessoais sobre-humanas e finitas, no sentido de não contínuas, têm, para Suely, que cotidianamente convive com paralisia cerebral, um sentido mais amplo e concreto.

– Tive, em primeiro lugar, muito apoio dos meus pais. Minha mãe inclusive sempre falava que não sabia se os outros me consideravam uma doida varrida ou uma batalhadora. Ela sempre apostou que eu era intelectualmente capaz, me apoiou muito. Também pude ter acesso a um tratamento muito adequado, exercícios de fisioterapia e psicologia, que me ajudaram muito. Mas também é claro que a gente precisa ter muita força interior. Fora isso, é necessário que a sociedade esteja preparada para a inclusão. Isso significa que temos que ter professores preparados para lidar com os deficientes e programas sociais que incluam os marginalizados. Uma prática de inclusão social mesmo, não de assistencialismo. Isso ajudaria e muito a acabar com os preconceitos, que na verdade não são racionais, em grande parte partem do inconsciente coletivo.

– Algo mais?

– Quero lembrar que os paralisados cerebrais são pessoas com necessidades diferenciadas, porque apresentam diferenças e graus de dificuldades físicas. Se estas necessidades forem atendidas, não haverá mais o desperdício de potencialidades como vem ocorrendo atualmente. E, assim como todos os incluídos pela exclusão social, somos seres humanos, não sendo super-humanos ou sub-humanos, como apregoam os preconceitos, que geram segregação, desamor, ódio, guerra, porque faz do outro uma coisa e não uma pessoa com diferenças, mas também igual em sua humanidade ao preconceituoso.

– Fique à vontade...

– Eu diria para os outros deficientes que se assumam e que batalhem pelo que é deles. Que busquem autonomia, que busquem ser respeitados como seres humanos e que busquem seus direitos. Acredito que o caminho é assumir, e assumir significa aceitar sem revolta. Depois, temos que pensar onde estamos e como podemos ir para frente. Chorar de nada adianta. Temos que manter a postura, cabeça, corpo e mente. E pegar o touro de frente!


Fundo profundo

Sábado, 23 de junho de 2007. São oito horas da noite e Leandra está no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) embarcando rumo ao Peru. A cadeira de rodas, devidamente pintada e reformada por seu namorado, vai novinha em folha. Leandra participa, entre os dias 27 e 29 de junho, do VI Congresso Internacional Prazeres Dês-Organizados – Corpos, Direitos e Culturas em Transformação.

O evento é uma organização da Associação Internacional para o Estudo da Sexualidade, Cultura e Sociedade, e é realizado na Universidad Peruana Cayetano Heredia. O convite veio pela amiga e jornalista Maria Esther Mongollón, coordenadora de um grupo de estudos sobre mulheres e deficientes. No congresso, Leandra participa da mesa “Corpos, Prazer e Bem-Estar”. Também expõe seu trabalho “Fantasias Caleidoscópicas”, ensaio fotográfico com deficientes físicos nus. O projeto, que conta com parceria da fotógrafa Vera Albuquerque, propõe um repensar sobre juízos prévios.

Diria Leandra:

Numa estrela, um brilho,

A princípio inatingível

Ofuscado pelo brilho

Oprimido, impedido,

Ilhado por sentido

Fundo, profundo,

Dentro de si mesmo.


Pedro Ulsen é jornalista e pós-graduando em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), turma de São Paulo (SP), 2007.

A boneca que falava e vivia no sol

Por Leandra Migotto Certeza - 23/06/2009

Flutuava. Era de cristal. A boneca que vivia no sol começou a falar. Tinha mais ou menos 9 meses e só alguns centímetros. Tão pequena que parecia um bebê, mas não era. Tati era o centro das atenções do céu. Raio e chuva, seus pais, viviam brigando por ela, e para saber o que fazer com ela. Brisa, sua avó materna, nunca a tirava do colo. Vento, seu avó materno, a admirava com muita tristeza, e a provia de todas as necessidades.

Tempestade, sua tia-avó materna, cuidada com tanto zelo dela, que se esqueceu de ouvir as primeiras palavras que Tati disse quando deixou de ser um bebê. Nuvem, sua tia materna, a olhava com o rabo de olho, e o pé atrás. Tinha receio de perder seu lugar no céu, por isso, tratava Tati como uma eterna criança.

Tati gostava de ser criança, e ao mesmo tempo não. Adorava o colo da avó, mas sabia que um dia iria cair do céu e deixar de viver no sol. Sabia também que viver na Terra era muito dolorido, por isso, preferia a dor de ser levada de um lado para o outro, como um saco de batatas que seus pais carregavam para cima e para baixo, sempre com o coração do tamanho de uma ervilha.

Ser uma boneca era muito bom. Tinha tudo sempre à mão: guloseimas, brinquedos, passeios, carinho e, principalmente, atenção. Era o centro das atenções. O raio, a chuva, a tempestade, a brisa, a nuvem e o vento, viviam ao seu redor. Nunca a abandonavam, nem mesmo para deixá-la sozinha com seus pensamentos. Isso era bom? No começo sim. Foi ótimo ter todas as dores aplacadas por remedinhos, comidinhas e carinhos. Ser o centro das atenções a livrou da insuportável dor do medo de viver quebrada, por dentro e por fora.

Tati nasceu toda esfacelada. Os pedacinhos do seu corpo foram colados de qualquer jeito, e ela nem teve tempo de dizer como queria ser. Não entendia porque tanto sofrimento. Não sabia o que tinha feito para merecer tanta dor. Viver no sol era seu maior conforto. Lá era quente, acolhedor, seguro, e o mais legal, era um lugar privilegiado.

As estrelas tinham seu brilho, mas Tati era o centro delas. Viver no sol, trouxe calor para cada pedacinho do seu corpo, tão frágil e desamparado. Sem ele não seria capaz estar no céu. Lá pode ser feliz. Brincou como uma criança até mais ou menos 14 anos. Mas era muito engraçado como Tati sabia que não era mais criança, e mesmo assim gostava de ser uma marionete nas mãos das pessoas, em especial de seus pais.

O peso do seu leve corpo era tão grande que ela achava que não conseguia carregar sozinha, por isso, optou por fingir ser criança até mais tarde, quando encontrou o mar, seu eterno, único e verdadeiro amor, e tudo começou a tremer dentro dela. Mas esta é uma outra estória que ela conta depois.

Agora Tati quer se lembrar de quando era uma ‘boneca-bebê’ que falava. Nasceu com olhos grandes; cabeça maior e em forma de triângulo; cochas roliças; pernas curtas e braços compridos; cabelos castanhos bem finos; dedos alongados, e mãos perfeitas. Tati adorava suas mãos e dedos. Era a única parte do seu corpo que achava igual a das outras bonecas do céu. Ela não queria ter nascido feita de pano, palha ou plástico, mas ser de cristal era extremamente perigoso e trabalhoso. Chato até.

Tinha sempre que se proteger. Até de si mesma. Quebrava qualquer pedacinho do seu corpo, só de respirar. Por isso, fingiu que era feita de aço, e nunca deixou de se divertir pulando de bundinha pelo céu. Suas pernas não tinham força, mas em compensação, sua voz era mais forte do que o trovão, seu único irmão. Gritava tanto que o sol tremia, mas seu coração não percebia o mal que fazia a si mesma. Ganhou fama de dona do céu. Adorava esse título, mas não sabia até quando conseguiria carregar o peso de ser o centro das atenções.

Falar cedo foi sua tábua de salvação. O céu era muito grande e o sol muito quente. Quando disse as primeiras palavras, pode conhecer o horizonte da imaginação. Perdeu-se nele, e se entregou a ele em seus mais doces sonhos. Trovão, seu único irmão, sempre a despertava com tanta violência que Tati, voltava a se entregar nos braços do horizonte, com medo do barulho que todos os trovões têm. Como uma onda no mar, foi e voltou da sua imaginação várias vezes. A cada retorno quebrava um pedacinho da sua alma. Eram marcas que nunca seriam apagadas da sua memória, principalmente, no momento de fazer a primeira viagem ao Centro da Terra.

As outras bonecas tinham inveja da sua condição de rainha, mas Tati não achava a menor graça o peso de sua coroa. Era obrigada a exibi-la para todos no céu. Era o troféu mais esquisito que o céu ganhara, sem saber o motivo. Luz só tinha dito ao céu que foi um acidente, Tati ter nascido de cristal.

A boneca que falava e vivia no sol, perguntou inúmeras vezes porque não tinha nascido igual às outras, que eram como lindas bailarinas, mas nunca encontrou uma resposta verdadeira. Por isso, pensava que tinha sido ela quem pediu para vir ao céu em um corpo de cristal. Achava que era sua máxima e eterna culpa. E que a carregaria para todo o sempre. Por isso, tinha que levar alguma vantagem nessa estória.

Viver no reino da fantasia sabendo que já tinha crescido, foi a melhor tática que encontrou para continuar viva, mesmo sem saber. Assim, conseguia observar de longe, e bem segura, todas as outras bonecas se transformando em seres humanos, ao chegarem a Terra. Ela seria a última, ou uma das últimas, pois até então, ainda não conhecia outras bonecas iguais a ela. Raio e chuva a escondiam dentro de suas capas feitas de aço. Assim, era bem mais difícil Tati conseguir fugir e dar as mãos para o arco-íris rumo ao Centro da Terra.

Um dia, a boneca que falava e vivia no sol, conseguiu ver o pote de ouro do outro lado do arco-íris, e resolveu dar uma espiada nas condições da viagem que sempre soube que faria um dia, mais cedo ou mais tarde. Antes tarde do que nunca, já dizia sua outra tia-materna, a estrela cadente. Tati tirava todas as suas dúvidas com ela porque sabia que era a única capaz de entender seus mais íntimos desejos. Tão íntimos que o mar, seu eterno e único amor verdadeiro, ainda está conhecendo bem devagar, cada desejo seu.

Tati deu várias espiadas ao Centro da Terra, mas sempre amparada pelo cometa, que na verdade, era uma cometa com cara de anjo, mas que de boazinha não tinha nada. Passava tão depressa que Tati, às vezes, não conseguiu segui-la, mesmo que desejasse com seu mais profundo desejo. Um dia a cometa surgiu em sua vida com tamanha força que Tati não resistiu e subiu em sua cauda. Viajaram juntas por muitas galáxias, mas a boneca que falava e vivia no sol ainda não estava preparada para virar gente; e a cometa entendeu suas emoções.

Hoje Tati viaja na cauda da cometa com muito mais segurança, e principalmente, conforto. É uma viagem longa, cheia de tempestades, trovões, maremotos, vulcões, rochas, e muitas pedras pelo caminho, mas a boneca que falava e vivia no sol, está decidida a virar gente e entrar bem devagar no Centro da Terra, para ser de cristal, mas deixar de chamar a atenção de si mesma.

Não vai mais carregar nenhum peso nas costas, ser marionete de ninguém, e muito menos o centro das atenções. Será apenas mais uma boneca que virou gente e conquistou seu espaço na Terra, e não no centro dela. O maior desafio agora é Tati aprender a viver parecendo uma simples boneca, que sempre será de cristal, e chamará a atenção de todos, mas nunca deixará de ser e viver como gente, com todas as dores e delícias de ser humana.