terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Autoras brasileiras e suas produções

Conheçam as ótimas autoras brasileiras e suas produções reconhecidas no Brasil e no mundo.  





Heloisa Pires Lima nasceu em Porto Alegre. Aos nove anos, mudou-se para São Paulo, onde reside até hoje. Estudou Psicologia na PUC e Ciências Sociais na USP, onde também concluiu mestrado em Antropologia (2000), e doutorado em Antropologia Social (2005). Tem priorizado em sua produção acadêmica questões teóricas acerca das fronteiras entre História e Antropologia, na especificidade do tema das representações culturais, com ênfase em relatos de viagem e arte. 

O período alvo de suas pesquisas tem sido o século XIX. Sua aproximação com a literatura se dá no âmbito da biblioteca da Ibejí Casa Escola – projeto desenvolvido em São Paulo na juventude. Heloisa é também educadora. Após constatar a ausência ou inadequação de personagens negros no universo da literatura, começa a pesquisar acerca desses personagens e, mais tarde, passa à criação. Além disso, coordena para uma editora do Rio de Janeiro uma coleção de títulos infanto-juvenis protagonizados por personagens afrodescendentes. 

 Em 1998, publicou Histórias da Preta, pela editora Companhia das Letrinhas, um compêndio que aborda os vários aspectos da história de uma construção da identidade de uma menina negra. A obra vem sendo adotada por inúmeras escolas públicas e particulares. A Preta, como o chama a escritora, recebeu reconhecimento crítico, como os prêmios José Cabassa e Adolfo Aizen (1999/UBE), além de ter sido selecionada para o Brazilian Book magazine (1999/FBN-FNLJ) divulgado no Bologna Book Fair. 

Em 2004, coordenou a coleção O Pescador de Histórias, pela Peirópolis, cujo primeiro título foi O Espelho Dourado (PNBE 2005). Já em 2005, tivemos A semente que veio da África, pela Salamandra (PNBE 2005). Nesse projeto editorial, propôs, ao invés de produzir um texto sobre a África, uma conversa entre duas Áfricas. Convidou Georges Gneka, da Costa do Marfim, e Mário Lemos; de Moçambique, e todos trouxeram histórias sobre um mesmo tema, ou seja, uma árvore muito especial e riquíssima como inspiração literária. 

Foi responsável pela criação da Selo Negro Edições, do Grupo Summus Editorial, além de ter atuado como editora entre 1999 e 2000. É uma das autoras do volume De olho na cultura: pontos de vista afro-brasileiros, obra vencedora do I Concurso Nacional de Produção de Livros e Vídeos Sobre História, Cultura e Literatura Afrobrasileiras, modalidade Livros, na categoria cultura afro-brasileira. Em 2006, Ano do Brasil na França, participou da Journée Littéraire Foyalaise realizada na Martinica e em Guadalupe.


LIVROS DE HELOISA


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ARTIGO DE HELOISA

O desenho do racismo à brasileira


Por Heloisa Pires Lima* em 08/03/2011 na edição 632 do Observatório da Imprensa.

Dois monstros sagrados, ícones da produção editorial voltada para o público infantil e juvenil, acabaram reunidos numa mesma polêmica acerca do racismo no Brasil. O poder inegável do que representam para a sociedade parecia, até o momento, ter o reconhecimento das massas, do Estado e da mídia de capital privado. Mas, se a sacralidade lhes atribuída já adquirira a condição de perene, vimos aparecer o lado monstruoso dessas moedas valiosas.

Ano de 2010. Em novembro, um manifesto pró-Monteiro Lobato circulou em nome da falsa ideia de suas obras haverem sido proibidas pelo governo às vésperas de uma eleição. Longe disto, o parecer assinado pela conselheira Nilma Lino Gomes com o aval, por unanimidade, dos demais analistas do Conselho Nacional de Educação recomendava um conjunto de ações frente ao teor racista localizado na obra Caçadas de Pedrinho (original de1933). A partir da distribuição do título pela Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal, um educador mais atento toma a iniciativa de protocolar à denúncia. A análise, de instância a instância, acabou pauta para o CNE, que chamou para si a responsabilidade de emitir o parecer com as sugestões. O critério considerou o objetivo de promover uma educação anti-racista que prevê a formação do educador para lidar com o assunto.
‘Racismo sem ódio não é racismo’
O viés eleitoral amplificou o caso, com manchetes do tipo ‘querem proibir Lobato para as crianças’. Foram inúmeros adeptos da hora a multiplicar o arsenal de matérias em defesa do escritor. Os blogs replicaram artigos afiados no desejo de interpretar o momento e impuseram o assunto. Os grandes jornais, revistas, programas radiofônicos, televisivos, enfim, tiveram à disposição uma pauta embasada em manifesto tornado celebridade. Somente a voz dos conselheiros demorou a ganhar a atenção da grande mídia. Até o ministro da Educação, paradoxalmente, emitiu opinião informal antes de ouvir o próprio CNE. Mas em pouco tempo a espetacularização foi serenando, tornando cada mais insustentável a defesa do racismo em nome da bio-bibliografia de um autor. O debate amadureceu nos meios de comunicação com elementos inéditos para o grande público auxiliando na flexibilização do juízo de valor anterior. E eis que, enquanto a posição definitiva e oficial do MEC estava ainda sendo aguardada para encerrar o caso aberto lá atrás, surge a ação protagonizada pelo cartunista Ziraldo. Numa tentativa de se adiantar ao ministro, o ponto final da polêmica, na concepção que ele adotou, foi desenhar um bem vestido Lobato agarrando uma mulata de poucas vestes para a estampa de um bloco de carnaval no Rio de Janeiro.


Não fosse a provocação do tema, a livre expressão do cartunista tinha tudo para reacender os melindres acerca da representação da mulher negra. Não suficiente, a imagem ficou mais animada com a voz, em off, do próprio Ziraldo, que afirma:

‘Para acabar com a polêmica, coloquei o Monteiro Lobato sambando com uma mulata. Ele tem um conto sobre uma neguinha que é uma maravilha. Racismo tem ódio. Racismo sem ódio não é racismo. A ideia é acabar com essa brincadeira de achar que a gente é racista.’

O pau do gato
O chiste é plausível na vida intelectual. A espirituosa capacidade de rir de si mesmo ou de realizar junções inesperadas, o duplo sentido ou o trocadilho são jogos que a linguagem permite para sutilezas bem construídas. No entanto, não há nada mais desagradável do que uma piada sem graça. Maldita, então, é a jocosidade ofensiva. O humano é capaz de exacerbar fragilidades emocionais produzindo prazer para si e para o público para o qual exibe a própria esperteza. Somente a sensibilidade crítica inibe esse tipo de prazer. O dado de realidade localiza o impulso e tem força para a suspensão do conteúdo que agride. A percepção da dor do outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença, é o princípio da alteridade, noção cara para os dias atuais.
Por isso, a ‘gracinha’ de Ziraldo soou como um tapa na cara, sobretudo pela maneira displicente de referir o racismo que atinge a cidadania da população negra no país. A agressão veio acompanhada da asneira conceitual que pressupõe racismo com ódio e sem ódio. Mas a excrescência teve troco. A densidade e o estilo conhecido das análises definitivas da ágil intelectual negra Ana Maria Gonçalves (ver aqui) foi um golpe preciso. Outro, o isolamento do cartunista carente de eventuais defensores públicos da ‘carnavalização do racismo’.
A vinculação entre os escritores a partir de uma mesma ocorrência pode vir a ser um marco para a atenção sobre o racismo, quando sobreposto à sociedade brasileira. Todavia, a etiqueta racista entregue a um ou a outro esgotaria o evento nele mesmo. Certamente, Ziraldo não está sozinho na sua livre expressão. É comum os pleitos racistas invocarem a liberdade de expressão associada à absolutamente condenada ideia de censura. Esta é uma das nuanças do ‘deixe meu politicamente incorreto em paz’, como se a criação artística não devesse satisfação nem ao constrangimento que possa submeter seja ao gato, ao urubu ou à infância negra. Se a razão do Estado é garantir a proteção e a defesa dos incluídos em seu território, a cidadania é livre para agir, mas deve responder pelas consequências dos seus atos. Os aperfeiçoamentos legais conquistados arduamente são demandas que resultam do embate de argumentos culturais.
Portanto, não há como considerar irrelevante o racismo difundido por meio de aparentemente ingênuas obras ou o dimensionado no mapa da violência 2011 a demonstrar o extermínio de jovens negros. Se estampado fosse o slogan – ‘não somos racistas’ –, a mensagem a circular no carnaval seria a mesma. Todavia, por trás dessa opinião há a dificuldade para reconhecer a história particular da parcela negra da população do país e o esmero em atrasar intervenções que superem a desigualdades que a atinge. É braço da manutenção de privilégios.
E com a ‘mulata’ impressa, Ziraldo consegue animalizar mais ainda a mulatice das mulas que a semântica oferta às moças negras. Despida da história do uso semântico para racismos criadores de hierarquias entre mulheres reais, a do desenho está numa situação pior do que a do gato que segura numa das mãos o pau enquanto a outra lhe passa a mão na bunda.
O saber compartilhado
O argumento aí implícito defende que não ser racista é sair ridicularizando uma pedagogia anti-racista. A indignidade sexista recupera ainda a contenda da miscigenação, ora exaltada, ora condenada como síntese sociológica do Brasil. A máxima de sermos todos mestiços, concepção, aliás, soberana em princípios racialistas a priorizar o aspecto genético da questão, está da mesma forma dimensionada. Essa conotação social do feminino negro o transforma em categoria apaziguadora de conflito racial. É a mesma lógica presente em teorias do relacionamento harmônico que tendem a evidenciar a felicidade do convívio inter-racial nas ruas e a silenciar no que diga respeito à segregação dos mesmos nas esferas de poder do país. 
A evidente desigualdade para acessos sociais e as iniciativas que afirmem a condição da diferença na escala dos fenótipos tem sido um importante desafio para a sociedade compreender, demandar e alterar padrões de poder no país. O principal entrave está nas visões que insistem ser o fator classe suficiente para o desdobramento de políticas universalistas gestadas pelos governos. Para o Estado, essa homogeneidade atrapalha a nuança da história da escravidão e suas consequências para os que dela descendem como uma variável particular na administração do bem comum.
Se o que os escritores protagonizaram pode ser visto como dimensionamento do racismo enrustido ou explícito, condenado ou negligenciado na sociedade dos nossos e de outros tempos, a inesperada reunião propicia uma circunstância ainda mais singular: a de ambos serem sujeitos nativos e informantes de conteúdos vinculados ao setor editorial.
Aproveitando a problemática relação nativo-informante para a teoria, dicotomia central para o saber antropológico, área que adotei como profissão, ela não deixa esquecer a busca de sistemática fundamentação a lançar luzes sobre o intercâmbio entre argumentos culturais e produção de conhecimento. A revisão incessante teve para exame as contingências imperialistas, colonialistas e tantas outras istas imbricadas nesse conhecer o ‘outro’. Os inúmeros alertas apontando a condição de monólogos discursivos para a imagem do ‘outro’ confirmaram ao menos uma certeza: o acesso à produção a garantir o espaço para pontos de vista distintos, para o embate de ideias, é a única e a mais louvável das lapidações em prol da democracia a gerar o saber compartilhado.
A ilustração como foco
Mas e quando o tema passa a considerar a perspectiva infantil de ser informada pelo mundo e sobre o mundo? No caso brasileiro, podemos nos dar conta do imenso espaço que Lobato e Ziraldo ocupam na cabeça de várias gerações de brasileiros, o que ressalta o tema da presença negra na história editorial. As figurinhas negras elaboradas por suas mentalidades fazem parte do imaginário que produziram abundantemente, quase como um monólogo promovido e consentido. A representação ofertada por esses autores quase não teve contraponto.
Pensando ainda sobre os polos que se opõem, é hora de recordar o fato de sermos mais complexos que a teoria. Se a filiação ao partido político pode enviesar o julgamento de um relatório do MEC, o que dizer dos males da xenofobia? Reveladas as ideias racistas de Lobato, como o fez, recente e brilhantemente, Ana Maria Gonçalves, examinando inclusive o acervo de cartas do escritor, a análise da produção do autor ganhou em redimensionamentos. Não há como negligenciar que, para a história da presença de personagens negros no universo da literatura infantil, os textos que ele produziu foram inovadores, assim como o valor positivo para gênero, ou o protagonismo do idoso e outros aspectos que o exame atento pode, infinitamente, revelar. Caso o foco seja a ilustração de seu material, lá também está a Nastácia pelas mãos de Voltolino recebendo tratamento visual mais equitativo do que se poderia esperar quando relacionada à Benta. 
 
O contrário também é exemplar. Uma leitura contemporânea das edições, ilustradores afora e além do período original, reserva as mais grotescas formas da personagem. Idiotizada, bestializada, animalizada, inferiorizada sob todos os aspectos, tornada monstrenga, suja o que facilmente contrasta com a composição das demais figuras.

Racismo editorial produziu história de violência
O dado, sem dúvida, tem muito a dizer a respeito da livre circulação de preconceitos para as gerações de diferentes contextos. Por sua vez, Ziraldo, com seu trabalho O menino marrom (1986), produziu uma narrativa datada deixando como depoimento a dificuldade do cartunista em construir um personagem negro bonito, que é o que o enredo propõe. E ele cumpriu a tarefa reservando o cuidado gráfico ao personagem. O que se depara, nesse caso, é a dificuldade em desenhar um menino negro. Negro, não; marrom. A estrutura da obra testemunha que nos anos 1980 ainda não havia meninos negros bonitos retratados nos livros. Também deixa dicas sobre a resposta da época em afirmar a identidade negra. A interlocução com o menino cor-de-rosa reduz a densidade da história pela da cor.

 

É um ângulo para lidar com a questão, mas não o único. É provável que tanto Lobato quanto Ziraldo precisassem localizá-lo para traçar mapas, itinerários e rotas de viagem em terras desconhecidas, como a de facultar seus modelos de humanidade negros. Dá para imaginar os dois submetidos a uma série de circunstâncias políticas e de logística expedicionária durante o processo de suas criações. E, se muito se sabe das práticas coletivas de atribuir significados aos povos negros pelos não tão negros, pouca é a investigação dos processos em que a paisagem humana negra vai surgindo no universo desconhecido do explorador. 
E é nessa brecha que pode surgir o destaque para a força dos personagens em sua soberania a propor conteúdos para a autoria. Na verdade, as Nastácias ou os Barnabés lobatianos são expressões da narrativa popular se impondo. O autor se serviu da saborosa fonte para as suas elaborações. A alusão ao menino negro, apesar da assimetria com o cor-de-rosa também conquistou visibilidade. E todo o escritor sabe que a construção do sentido literário nunca é unilateral. Ela indaga e negocia o tempo todo com a criação. 
O personagem, como espessura inconsciente, adquire vida, espaço e autonomia. Incluir a imagem da população negra por Lobato e Ziraldo foi uma condição advinda do contato com o tema, já que antes ele não havia. Apesar das concepções racistas, é a demanda por um protótipo negro que chama a atenção para si, a ponto de entrar para o livro. E é esta soberania que torna mais notória ainda a ausência/presença da imagem como nativos e/ou informantes para dar a conhecer o mundo.
O outro lado dessa mesma moeda é o comparecimento de escritores negros no cenário das publicações. A existência negra expressa na literatura pouco abasteceu bibliotecas, videotecas, acervos de brinquedos. O racismo editorial produziu uma história de violência. O personagem, mas também o autor negro, são heróis da mesma jornada contra o preconceito. A desigualdade das cenas ficcionais dentro das obras é a mesma fora delas. Temos a chance de percebê-la.
Cadê o bloco do anti-racismo?
Em pleno século 21, não fosse o educador bater à porta do MEC, os conteúdos do livro de Lobato continuariam pouco problematizados. Da mesma forma, o tabu de questionar seja quem for o autor consagrado nas bibliotecas escolares. Por sua vez, não estariam colocadas na mesa as indagações extensivas, como o acesso à produção diversificador de pontos de vista. Não havendo confronto, a ignorância lúcida ou ingênua é mantida e não conseguirá identificar a dor do racismo. A ‘mulata’ impressa na camiseta, nesse ínterim, se olharmos bem, começa a falar da violência e da assimetria em que a posicionaram e que está ali sufocada e constrangida. A passividade simbolicamente sugerida, no entanto, acabou tridimensionalizada pela realidade. A entrada da internet como variável para os principais polêmicas nacionais tornou o nativo informante e aponta a precariedade da dicotomia. Este é um ponto de inversão cultural.
O racismo, enfim, é um desafio para todas as sociedades e todas as esferas. O acervo de obras singelas é a extensão de obras acadêmicas. A prevalência de fórmulas racistas em material aparentemente ingênuo também significa a falta de analistas formados para a temática. A tecnologia, consenso para aperfeiçoar o desenvolvimento do país, deveria tornar mais apto o saber acerca do racismo. Assunto de impacto, as diretrizes da tecnologia das relações raciais ocupam qual o espaço no gerenciamento da ciência produzida no país? Cadê o bloco do anti-racismo no investimento e na inovação tecnológica voltada para circunscrever as dinâmicas raciais? Ou a gestão de financiamento da pesquisa em centros universitários atenta para a diversidade e equanimidade dos pesquisadores? Estas, entre outras, são histórias a serem impressas no desenho de Brasil.
*Heloisa Pires Lima é Doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo. Também escreve para crianças e é consultora para os episódios do Livros Animados – programa Acorda cultura – TV Futura.
FONTE: 
http://observatoriodaimprensa.com.br/jornal-de-debates/o-desenho-do-racismo-a-brasileira/