sexta-feira, 20 de novembro de 2015

20 de novembro de 2015




Parabéns, atingimos a burrice máxima

A “baranga” Simone de Beauvoir e a importância de um livro que ensina a conversar com fascistas





A fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colocou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo, começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a privada e a pública. Dia após dia.

Recapitulando alguns espasmos do mais recente surto de burrice. O verbete de Simone de Beauvoir (1908-1986) na Wikipedia, conforme mostrou uma reportagem da BBC, foi invadido para tachar a escritora de “pedófila” e “nazista”. A Câmara de Vereadores de Campinas, no estado de São Paulo, aprovou uma “moção de repúdio” à filósofa. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), da Bancada da Bíblia, descobriu na frase “uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. Em sua página no Facebook, o promotor de justiça do município paulista de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marum,chamou Beauvoir de “baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila”. Como o tema da redação do ENEM era “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, houve gente que estudou em colégios caros afirmando que este era um tema de esquerda, e portanto um sinal inequívoco de uma conspiração ideológica por parte do governo federal. Como sugeriu o crítico de cinema Inácio Araújo em seu blog, se defender que a mulher tenha o direito de andar sem ser perturbada, agredida e chutada é tema de esquerda, isso só pode significar que a direita vai muito mal.
A única arma capaz de derrotar a burrice é o pensamento
Está cada vez mais difícil fazer humor no Brasil. Como nada do que foi relatado acima é piada, somos submetidos cotidianamente a uma experiência de perversão. Também não tem sido fácil escrever quando não se é humorista, por que o que se pode dizer, seriamente, diante de uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir? Mas é preciso tratar com seriedade, porque talvez não exista nada mais sério do que a boçalidade que atravessa o país. Torna-se urgente, prioritário, fazer um esforço coletivo e enfrentar a burrice com o único instrumento capaz de derrotá-la: o pensamento.
Esta é a potência e a generosidade de um livro lançado pela filósofa Marcia Tiburi, escritora e professora universitária. O título vai direto ao ponto, afinal os tempos são graves demais para papinhos de salão: Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record). Nas 194 páginas, Marcia enfrenta as várias faces do cotidiano atual com profundidade, mas de forma acessível a quem não está familiarizado com os conceitos. Faz o mais difícil: escrever simples sem simplificar. É um livro que se pretende para todos, e não para os seus pares. Quem acompanha a trajetória da filósofa conhece a sua coragem. E este é um livro de coragem, já que é tão difícil quanto arriscado escrever sobre o que está em movimento, sem a proteção assegurada pelo distanciamento histórico. Poucos são os intelectuais que se arriscam a sair do conforto de seus feudos para enfrentar o debate público com suas dúvidas. E por isso aqueles que se arriscam de forma honesta, sem ficar arrotando suas certezas e suas credenciais, ou usando-as para massacrar aqueles que já são massacrados, são tão preciosos.
O confronto atual não é entre direita e esquerda, mas entre os que pensam e os que não pensam
“Eu queria saber por que dialogar é impossível”, conta Marcia Tiburi, sobre a pergunta que a moveu nessa busca. Para enfrentar a ausência do pensamento, a filósofa propõe a resistência pelo diálogo. Este é um esforço de cada um –e de todos. Arriscar-se a deixar o “isolamento em comunidade”, a forma atual da vida social e política, para confrontar o que ela chama de “consumismo da linguagem”. Compreender o confronto atual como um confronto entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, machistas e feministas é, segundo ela, uma redução. O confronto atual seria mais profundo e também mais dramático: entre os que pensam e os que não pensam.
O exercício que faço, deste parágrafo em diante, é buscar compreender a fogueira em que Simone de Beauvoir foi jogada nos últimos dias, entre outros fatos recentes, a partir das ideias deste livro. Para começar, a seriedade do episódio do ENEM pode ser demonstrada neste trecho tão agudo: “Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está muito fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência”.
Vale perguntar. Num país em que a preocupação com a educação é uma flatulência, em que a não educação é a regra, para onde vai o lixo e que tipo de impacto ele produz na tessitura do cotidiano, nos corações e mentes de quem o consome? O que acontece com a fogueira de Simone de Beauvoir num contexto em que aqueles que a jogaram no fogo possivelmente sequer a leram? Que restos dos discursos vazios sobre a filósofa permanecerão na memória de uma população que não tem seus livros na estante e que tipo de eco produzirão?
Como dimensionar a gravidade de um vereador eleito, pago com dinheiro público para legislar e, portanto, para decidir destinos coletivos, dizer que a escolha da frase de Simone de Beauvoir para uma prova do ENEM é algo “demoníaco”, como afirmou Campos Filho (DEM)? E como enfrentá-la com a seriedade necessária?
Com a palavra, o autor da “moção de repúdio”: “Foram buscar lá Simone de Beauvoir, lá pro ano de mil trocentos e pôco.... (...) A grande maioria é favorável à lei da natureza. Homem é homem. Mulher é mulher. (...) Cuidado com essa pulsão, essa pulsão pode levar à cadeia. O senhor pode passar na frente do caixa eletrônico e ter uma pulsão de vontade de roubar e vai preso. Pode ter uma pulsão de vontade de estuprar e vai preso. Então, tomem cuidado com essa pulsão, ah, hoje de manhã sou menina, agora à noite eu sou homem....”.
O vazio de pensamento não é silencioso, mas repleto de clichês, frases prontas e repetições
O vereador nem sequer sabe em que século Simone de Beauvoir nasceu, viveu e produziu pensamento – “miltrocentos e pôco”. Nem sequer tentou compreender o que a frase citada no ENEM significa. Não é engraçado. É a ruína causando mais ruína. O que interessa é fazer barulho, porque o barulho encobre o vazio de ideias. O que importa é perverter a palavra, usando o que sequer tentou entender para enclausurar o pensamento e reafirmar a certeza em nome de uma suposta “lei da natureza” que jamais existiu. A perversão do fascista é a de acusar o outro de manipulação ideológica quando é ele o manipulador. É acusar o outro de impor um pensamento quando é ele que empreende todo os esforços para barrar qualquer pensamento. É impedir o diálogo denunciando o outro pelo ato que ele próprio cometeu. É nessa repetição de boçalidades que seguem os discursos de outros vereadores, invocando clichês bíblicos, lembrando de Sodoma e Gomorra e Adão e Eva, abusando de Deus.
Para perverter a realidade, o fascista conta com o consumismo da linguagem. Trata-se, como aponta Marcia Tiburi, de um vazio repleto de falas prontas. Não é um vazio silencioso, espaço aberto para buscar o outro, o inusitado, o surpreendente. Mas sim um vazio barulhento, abarrotado de clichês, de frases repetidas e repetitivas, usadas para se proteger do pensamento. Os lugares-comuns, neste caso específico a constante invocação de Deus e de leis bíblicas, são usados como um escudo contra a reflexão. Todo o esforço é empreendido para não existir qualquer chance de pensamento, ainda que um bem pequenino.
Neste vazio, a filósofa acredita que os meios tecnológicos e a mídia desempenham um papel crucial. Repete-se o que é dito na TV, no rádio. Fala-se, muito, sem pensar no que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler, tão fácil quanto comprar com um clique pela internet, foge-se do pensamento analítico e crítico, trocando-o pelo vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva. É assim que a burrice se multiplica em cliques, propagando-se em rede. O título deste artigo é esperançoso, mas não corresponde à realidade: a burrice não tem limites, ela sempre pode atingir patamares ainda mais extremos.
Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos
Episódios semelhantes à “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir ocorriam esporadicamente em rincões afastados, e logo eram ridicularizados. Hoje, acontecem na Câmara de Vereadores de uma das maiores e mais ricas cidades do estado de São Paulo, no sudeste do Brasil, uma cidade que abriga várias universidades, entre elas a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), uma das mais respeitadas do país. E cadê os intelectuais? Rindo dos burros nas cantinas universitárias? Será? Não era de se esperar mais iniciativas de busca do diálogo, de criação de oportunidades para explicar quem é Simone de Beauvoir e refletir sobre sua obra, ou mesmo a ocupação da Câmara, para produzir reação e movimento que permitisse o conhecimento e combatesse a ignorância?
Talvez o polêmico livro Submisssão (Alfaguara), do francês Michel Houellebecq, possa ter alguma ressonância maior por aqui. Nele, só para lembrar, o protagonista é um acadêmico desencantado que se depara com a vitória de um partido islâmico nas eleições da França. Depois de assistir ao desenrolar dos acontecimentos pela TV, já que não se sente motivado a participar de nenhum debate que não seja sobre a sua própria tese acadêmica (ou nem mesmo sobre ela), se choca com o resultado eleitoral. É o protagonista que não protagoniza –ou só protagoniza por omissão (ou submissão). Aos poucos, os novos donos do poder lhe acenam não só com a manutenção dos privilégios, mas com uma considerável ampliação dos privilégios. E ele, afinal, conclui que aderir pode não ser tão ruim assim.
Os burros estão por toda parte e muitos deles estudaram nas melhores escolas e, o pior, muitos ensinam nas melhores escolas. A “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir foi aprovada pela Câmara de Campinas por 25 votos a cinco. Assim, os burros são a maioria. É preciso enfrentá-los com pensamento, fazer a resistência pelo diálogo. Ou, como diz Marcia Tiburi: “Sem pensamento não há diálogo possível nem emancipação em nível algum. Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos”.
O promotor e professor universitário que reduziu Simone de Beauvoir a “uma baranga”, ao comentar a questão do ENEM em sua página no Facebook, fez o seguinte comentário: “Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. Depois da repercussão negativa, o que incluiu uma nota de repúdio por parte da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Jorge Alberto de Oliveira Marum apagou os posts e defendeu-se, em outra postagem, alegando que pretendia ter sido irônico: “Ironia, para quem não sabe, é uma figura de linguagem que consiste em afirmar o contrário do que se pensa”. Interprete-se.
A burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu
“Distorcer é poder” é o título de um dos capítulos do livro em que a filósofa enfrenta a prática amplamente difundida de esvaziar as palavras pela distorção. Como transformar a vítima em culpada, como se faz rotineiramente com as mulheres no falso debate do aborto, por exemplo, ou no tratamento do estupro. Ou distorcer para que aquele que detém os privilégios pareça ser o que têm seus direitos ameaçados: o branco, por exemplo, quando se apresenta como prejudicado pelo sistema de cotas raciais que busca reparar injustiças históricas cometidas contra os negros, ocultando assim que sempre foi o privilegiado; ou quando se invoca um suposto “orgulho heterossexual” na tentativa de mascarar a violência contra os homossexuais, alegando que querem privilégios, quando todos sabem que a heterossexualidade jamais foi contestada ou atacada, nem em sua expressão nem em seus direitos. E também é por essa conversão que os manifestantes de junho de 2013 foram tachados de “vândalos” por parte da mídia e, hoje, uma lei em discussão no Congresso ameaça converter quem protesta em “terrorista”.
A própria “democracia” pode ser vista a partir da prática da distorção, já que há aquela, mais difundida, que é vendida pelo mercado. “De um lado, há uma democracia que deve parecer como realizada, contra outra democracia, que está na ordem do desejo e do sonho e que não teria preço”. O capitalismo sequestra a democracia também como palavra, que passa a ser consumida, junto com outras: felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito. Palavras que a filósofa chama de “mágicas”, invocadas a serviço do ocultamento da opressão. “Antidemocrático, o capitalismo precisaria ocultar sua única democracia verdadeira: a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade”, afirma Marcia Tiburi.
Quando se invade o verbete de Simone de Beauvoir na Wikipedia é também disso que se trata: distorcer e replicar até virar “verdade”. Aliena-se os fatos de seu contexto histórico para produzir rótulos. Assim, após o ENEM, a filósofa foi tachada de “pedófila” e de “nazista”. Ambas as afirmações já foram retiradas da página pelo responsável, avisando que a manteria fechada até “que o furor acabasse e as pessoas perdessem o interesse em danificar o artigo”. Entre as dezenas de distorções do verbete, segundo a matéria da BBC, um usuário disse que a filósofa havia escrito um "livro de estupro". Outro informou que Beauvoir era uma "antifeminista". Um terceiro disse ainda que ela era "muito conhecida por seu comodismo e pela luta na justiça por uma lei que proibia o trabalho das mulheres fora de casa”.
Se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?
As distorções servem à reprodutibilidade da burrice. Ao converter a filósofa no que é interpretado como o mais monstruoso – “pedófila” e “nazista” – o objetivo é tornar impossível refletir sobre o que ela escreveu: “uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. A ampla distorção das palavras serve, de novo, ao vazio do pensamento. Pede-se aos burros que a repliquem à exaustão em cliques histéricos. A linguagem, como escreve Marcia Tiburi, tem sido rebaixada à distribuição da violência – também pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. “Vivemos no império da canalhice, onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu”, afirma. “Ela se transformou no todo do poder.”
Aderir é viver. Esta parece ser a frase deste momento de orgulho da ignorância e exaltação da burrice. Aqui, a pergunta se impõe: “se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?”.
Na semana passada, foi divulgado na página da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República um estudo que reuniu pesquisadores de diversas instituições, apresentado como o mais completo já feito no Brasil sobre os efeitos da mudança climática. Refletir seriamente sobre a mudança climática é urgente, mas há muito menos pensamento e ação do que o momento exigiria, apesar de estarmos às vésperas da Conferência do Clima em Paris. Assim, a divulgação de um estudo com as conclusões a que se chegoupoderia ser uma oportunidade excelente para promover participação e diálogo. Mas, entre as tantas previsões que apontaram para um possível drama climático daqui a 25 anos, em 2040 – doenças, calor extremo, falta d’água e de energia etc –, uma foi destacada por diferentes veículos da imprensa: a possível perda de uma área imobiliária avaliada em R$ 109 bilhões no Rio de Janeiro, devido à elevação do nível do mar causada pelo aquecimento global.
Não as perdas humanas, não a corrosão da vida, não o aniquilamento dos mais pobres e dos mais frágeis. Não. O que se destaca é aquilo que se monetariza, é a perda do patrimônio material, no caso imobiliário. O que merece título é o cifrão. O episódio evoca um dos capítulos mais interessantes de Como conversar com um fascista: “O capitalismo é a redução da vida ao plano econômico. (...) O pensamento está minado pela lógica do ‘rendimento’. Viver torna-se uma questão apenas econômica. A economia torna-se uma forma de vida administrada com regras próprias, tais como o consumo, o endividamento, a segurança pela qual se pode pagar. Tudo isso é sistêmico e, ao mesmo tempo, algo histérico. (...) As palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas”. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral no púlpito tecnológico da televisão)”. Se depois de tanto calarmos sobre a mudança climática, falarmos dela a partir da lógica monetária, estamos todos (mais) perdidos.
Precisamos resistir em nome de um diálogo que torne o ódio impotente
Mas é em outro episódio destes últimos dias que a perversão do Brasil atual se revelou em toda a sua monstruosidade: a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro concluiu em inquérito que o policial que matou um menino de dez anos agiu em “legítima defesa”. Eduardo de Jesus brincava na porta da sua casa, numa das favelas do Complexo do Alemão, quando teve a cabeça atingida por um tiro de fuzil. Sua mãe encontrou parte do seu cérebro na sala. O inquérito isentou de qualquer responsabilidade os policiais envolvidos, por estarem supostamente em confronto com narcotraficantes. Eles teriam apenas “errado” o tiro.
Eduardo estava a cinco metros do policial que o matou. Terezinha de Jesus, a mãe do menino, afirma que não havia tiroteio naquele dia. “Eu parti para cima do policial. Gritei que tinha matado meu filho e ele me respondeu, com seu fuzil na minha cabeça, que igual que tinha matado ele poderia também me matar, porque o menino era filho de bandido. Nunca vou esquecer aquilo. Posso estar em qualquer lugar do mundo, que nunca esquecerei a cara daquele policial”. Ao ser informada por jornalistas que a polícia concluiu que seu filho foi morto em legítima defesa, Terezinha disse que sentia vontade “de quebrar tudo”.
Quando a perversão supera tal limite é porque estamos quase no ponto de não retorno. “Não acabaremos com o ódio pregando o amor”, diz Marcia Tiburi. “Mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.”
Em Como conversar com um fascista, a filósofa defende a necessidade de começar a tentar falar de outro modo. O diálogo não como salvação, mas como experimento, como ativismo filosófico para enfrentar a antipolítica. A política, lembra a autora, “é laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças de ódio e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão enterradas”.
Num país de antipolítica e antieducação generalizada como o Brasil é preciso se mover. É urgente aprender a conversar com um fascista, mesmo que pareça impossível. Expor ao outro aquele que não suporta a diferença. Revelar suas contradições e confrontá-lo pelo diálogo é um ato de resistência. Enfrentar a burrice com a única arma que ela teme: o pensamento.
É isso ou não vai adiantar nem estocar alimentos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebru
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/09/opinion/1447075142_888033.html
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Literatura para todos e todas

Aparição distorcida do negro na literatura reforça preconceito


Os escritores Nei Lopes, Conceição Evaristo, Paulo Lins e Ana Maria Gonçalves



por Rodrigo Caesarian no UOL

A pesquisadora Regina Dalcastagnè leu, entre 1990 e 2004, um total de 258 romances de escritores nacionais publicados por três das principais editoras do país. Sua leitura resultou no livro “Literatura Contemporânea – Um Território Contestado” (2012), no qual aponta que 94% dos autores brasileiros são brancos –mesma cor de 92% dos personagens. Dalcastagnè encontrou pouco mais de 5% de protagonistas negros, e quase sempre apresentados como bandidos, empregados domésticos ou escravos e que, em mais da metade dos casos, morrem assassinados. Na vida real, dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Pesquisa) apontam que a população que se declara negra no Brasil é de aproximadamente 53%.

Cruzando os dados, é fácil notar: a representatividade do negro na literatura nacional está muito aquém da sua presença e importância na sociedade brasileira. “O rótulo ‘literário’ é usado como elemento de exclusão: a produção dos escritores de fora da elite aparece como testemunho, documento sociológico, e não como literatura”, apontou a pesquisadora da UnB (Universidade de Brasília) em entrevista ao jornal “Cândido”.

Simone Paulino, editora da Nós, lembra que “a representação ficcional é uma questão que merece um olhar mais detido porque, em geral, o negro é de fato representado em papéis de coadjuvantes, exceto quando é ele o bandido ou o malandro. Naturalmente, essa aparição e exposição distorcidas reforçam estereótipos e preconceitos, e precisa urgentemente serem desconstruídas em favor da construção de uma identidade nacional, com tudo de escorregadio que essa expressão comporta, mais verossímil”.

Seja entre expositores das livrarias, resenhas nos meios de comunicação e programações de eventos literários, é possível contar nos dedos os autores negros que se destacam no país. Difícil fugir de poucos nomes como Paulo Lins, Nei Lopes, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves e Joel Rufino dos Santos. “É muito pouco para a imensa riqueza cultural que os negros têm para compartilhar com o Brasil”, defende Simone.

“O espaço do escritor negro no mercado editorial brasileiro como um todo é ínfimo, quase inexistente. Estudos mostram que a maioria dos escritores nacionais são homens, brancos, héteros, jornalistas ou acadêmicos, residentes na região sul e sudeste do país, nas capitais mais ricas. O quadro começa a mudar lentamente com a emergência da chamada literatura marginal ou periférica”, diz a editora.
Uelinton Farias Alves, jornalista, escritor, pesquisador e curador da FlinkSampa –evento literário focado na cultura negra–, faz uma análise que extrapola o mercado editorial. “A situação do negro no Brasil continua desigual em todos os aspectos da economia e da cadeia produtiva. O escritor negro passa pelos critérios de uma seletividade mercadológica que o exclui. Suas obras são mais rigorosamente avaliadas, o investimento em seu livro é reduzido, ele não é exposto e nem recebe apoio publicitário. Independente da qualidade do seu texto literário, o escritor negro publica menos do que um autor branco”.

Esses elementos são decisivos para que os autores negros tenham pouco espaço, mas não são os únicos, segundo Alves. “Há a invisibilidade notoriamente criminosa que as grandes corporações, incluindo mídias e editoras, impõem em benefício dos outros que não são negros. Ora, pensar que iremos empoderar o escritor negro em uma sociedade onde os negros aparecem estereotipados ou estão fora da grande mídia é uma brincadeira”.

Fundo Correio da Manhã/Arquivo Nacional
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Retrato do escritor Machado de Assis

A importância do espaço

Alves é também especialista em literatura brasileira do século 19. Suas pesquisas focam principalmente na obra de Cruz e Sousa, um dos escritores negros mais importantes da história do país. De olho na tradição literária do país, encontramos poucos, mas grandes exemplos de negros que alcançaram reconhecimento por conta de seu talento para lidar com as letras, a começar por Machado de Assis. Lima Barreto, José do Patrocínio, Luiz Gama e Maria Carolina de Jesus são outros que compõem esse time.

E por que essa conquista por mais espaço se faz tão necessária? “Porque a literatura de um país deve, idealmente, representar a diversidade de vozes e matizes e gêneros que a compõem e, deste perspectiva, como em outras artes, o percentual de representatividade do negro é ainda muito pequeno”, explica Simone.

Mas essa mudança não virá de uma hora para outra, aponta Alves, que lembra que para ampliar sua voz na literatura o negro precisa conquistar mais espaço em toda sociedade, a começar com o acesso à educação básica de qualidade e universitária. O pesquisador também vê como de suma importância que a lei que ordena a inclusão da história da cultura afro-brasileira na rede pública de ensino seja respeitada. “A partir da compreensão histórica do negro na construção da sociedade podemos pensar em mais espaço e, disso, consolidar a conquista da cidadania”.


Leia a matéria completa em: Aparição distorcida do negro na literatura reforça preconceito - Geledés http://www.geledes.org.br/aparicao-distorcida-do-negro-na-literatura-reforca-preconceito/#ixzz3s2UrrB8I 
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INCLUSÃO, RACISMO E DIFERENÇA

Fonte: http://infoativodefnet.blogspot.com.br/2011/05/inclusao-racismo-e-diferenca.html

INCLUSÃO, RACISMO E DIFERENÇA


imagem publicada - um cartaz da Unicef que é parte da campanha contra o Racismo nas Escolas. Ele traz a imagem de uma jovem menina negra, tendo escrito ao lado: "Quézia Silva, aos 29 anos, advogada e o futuro todo pela frente", ela tem os cabelos à moda rastafari, bem negros e um olhar que confirma a frase abaixo: "Em um mundo de diferenças enxergue a igualdade", e solicita o acesso e participação desta campanha em: www.unicef.org.br.

"Era uma vez...", na antiga Iugoslávia, entre tiros reais e dentro da Terra de Ninguém de uma guerra entre sérvios e croatas estabeleceu-se uma comunicação, quase surreal, via rádio, de dentro destas trincheiras. O diálogo, segundo artigo de Kathryn Woodward (sobre aspectos téoricos e conceituais sobre Identidade e Diferença) são um exemplo magnífico de nossas construções de identidade sustentadas pela exclusão do Outro. Nessas conversas de trincheira ficava claro, no meio da escuridão do conflito étnico-racial, que todos estavam perdidos na mesma escuridão.

Assim falavam os que guerreavam pertencentes a uma pequena cidade, segundo a autora, sobre uma história do radialista Michael Ignatieff: "... Todos mundo conhece todo mundo, eles foram, todos, à escola juntos; antes da guerra trabalhavam na mesma oficina; namoravam as mesmas garotas. Toda a noite, eles se comunicam pelo rádio "faixa do cidadão" e trocam insultos - tratando-se por seus respectivos nomes. Depois saem dali para tentar se matar uns aos outros...". O radialista indaga, por não conseguir distinguir entre os sérvios dos croatas: "O que faz vocês pensarem que são diferentes?"

Eis a pergunta que poderíamos ter feito ao jovem Welligton, após sua triste matança na escola onde estudou, caso ele tivesse sobrevivido à sua guerra particular. Mas também é uma pergunta indispensável para que nos façamos agora, nesse momento, quando comemoramos uma histórica data. O que fez pensarem, aos colonialistas, que havia seres que não eram seres. Por essa razão ocidental e eurocêntrica eles foram tratados com ''diferentes'', e por uma longa jornada na História, escravizados, açoitados, torturados e mortos.

O que fez, eugenicamente, pensar que os negros eram de uma outra espécie?. Uma categoria sub-humana e, portanto, uma sub-raça que poderiam colocar no tronco, no pelourinho e na senzala. E depois nos "libertarem" pela metade com uma alforria comprada.

Imaginemos uma outra trans-história, ou melhor "estória", onde os habitantes de uma pequena vila chamada Palmares, situada em um imaginário estado separatista de Saint Paul, na fronteira com Higienópolis. Lá, uma guerra pela diferença social esportista e espartana, faz com que os territorialistas palmeirenses estejam em conflito com os quilombolas corintios. Neste diálogo real vivenciado por Michael, lá na Iugoslávia, substituimos os personagens reais da Sérvia e da Croácia por nossos concidadãos armados e intolerantes. Eles e elas são habitantes comuns e não skinheads radicais.

Teremos, então, o seguinte diálogo, ou seja um metadiálogo: "O soldado coríntio (croata) com o qual estou falando pega um maço de cigarros, feitos em palha e fumo de rolo. '-Vê isto? São cigarros verdes (sérvios) . Do outro lado da trincheira e do estádio, eles fumam cigarros palmeirenses". Ignatieff, agora um brasilguaio chamado Marciano, sentindo-se um ET, indagará: " Mas não são, ambos, cigarros?". 'Vocês estrangeiros e intelectuais não entendem nada' - o soldado coríntio dá os ombros e começa a limpar o seu rifle AR 15 (versão latina da metralhadora Zostoco).

Mas a pergunta do brasilguaio o incomoda, e após alguns silenciosos minutos na trincheira entre Higienópolis e a Zona Leste, ele deposita o rifle em um canto e diz:"Olha , a coisa é assim . Aqueles palmeirenses (sérvios) pensam que são melhores que nós (croatas). Eles (nós) pensam (os) que são europeus finos e tudo mais. Vou lhe dizer uma coisa. Somos todos lixo de Itaquaquecetubas (dos Balcãs)".

Hoje, 13 de maio, data comemorativa da Abolição ouso invocar a Potência Zumbi para desafiar o Capitão do Mato Bolsonada para que me prove a diferença que justificará sua resposta racista a uma indagação sobre a ''miscigenação" no seio de sua eugênica família ariana. E sei que mais um panfleto ou bravata, tipica de quem como ele, acredita que a menor diferença de hábitos, escolhas ou modos de viver, por si só, já justificam a sua exclusão ou extermínio.

Na essência dos temores dos muitos capitães de mato, herdeiros dos Anos de Chumbo, na Terra Brasilis, ainda circulam os mesmos princípios fascistas que circularam nos nossos vizinhos torturadores, para além das semelhanças, dos que frequentaram a Escola da Armada em Buenos Aires. A diferença é que lá na Argentina eles vão para o banco dos réus.

Por isso os sérvios e croatas tiveram e terão de passar a limpo os genocídios cometidos em nome dos "narcisismos das pequenas diferenças", como a marca ou tipo de cigarros que do outro lado são fumados. Na fumaça de seus cachimbos de boca torta sai um pouco de seus ódios étnicos e raciais. Os capitães, coronéis e generais dos campos de exceção não podem ser esquecidos, muito menos impunes.

Mas para além de combater o esquecimento e reforçar nossas memórias é preciso ir em busca de soluções para nossas pequenas guerras particulares ou coletivas. Não podemos continuar estimulando processos de segregação, discriminação ou de exclusão, seja nos bancos de escola ou nos espaços sociais coletivizados.

Entra aí a necessidade de um estímulo ao re-conhecimento das diferenças, sem negar as identidades culturais, buscando a convivência criativa com todas as diversidades, entra em ação, por exemplo, uma educação baseada em direitos humanos e de projeto/processo inclusivo.

Entre 13 de maio e 20 de novembro temos uma data esquecida: 16 de novembro. Uma data ainda fora do calendário escolar. Esta é data internacional para a Tolerância, promulgada pela ONU em Paris (1995). Entretanto, sabemos que a Tolerância é um desejo universalista ainda distante da erradicação das formações de novos ódios raciais/étnicos ou de cunho fundamentalista no mundo hipercapitalista. Tolerar, apesar do sentido etimológico de sofrimentos, é também a possibilidade de ir além das nossas mesquinharias narcisisticas.

O seu Artigo 26 : "A educação deve promover a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações, grupos raciais e religiosos" , precisa de consolidação por ações micro e macropolíticas que possam produzir novas subjetividades, novas identidades. Precisam de um re-conhecimento da urgência de uma educação anti-racista, anti-xenófoba, anti-homofobias, anti-fascista, anti-machismos, anti-escravidão no trabalho, anti-pedofilias, anti-imperialistas, enfim anti-homogeneização das diferenças.

Vamos, então, fazer um tratado, um pacto na Terra de Ninguém, aquela fronteira entre Eugenianópolis e Espartonópolis. Vamos dar o primeiro passo para que a inclusão, através do ato de educar ao Outro e si próprio, seja o melhor antídoto para o veneno do Ovo da Serpente de Vidas Nuas que habita o âmago de nossos corpos em serialização e controle biopolítico.

Mesmo sendo um antitabagista, convicto e militante, lhes pergunto: qual é a marca (estigma) da fumaça que sai de seus cigarros, cachimbos ou cigarros, sejam eles reais ou imaginários?


copyright jorgemarciopereiradeandrade (favor citar o Autor e as referências no texto em republicações livres pela Internet e veículos de comunicação de massa)

Referências bibliográficas no texto:

- Identidade e Diferença: uma introdução teórica e conceitual - Kathryn Woodward - in Identidade e Diferença - a perspectiva dos Estudos Culturais, Tomaz Tadeu da Silva (Org.) , Editora Vozes, Petrópolis, RJ, 2000.

Indicações para Leitura e utilização para reflexão sobre o Racismo:

Superando o Racismo na Escola - Kabengele Munanga (org.) - Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
Discriminação Racial nas Escolas (entre a Lei e as práticas sociais) - Hédio Silva Jr., UNESCO, Brasília, 2002.
-Tornar-se Negro - Neusa Santos Sousa - Ed. Graal, Rio de Janeiro, RJ, 1983
Racismos e Anti-racismos no Brasil - Ed. Pallas, Rio de Janeiro, RJ, 2001.
Raça Pura (uma história da Eugenia no Brasil e no mundo) - Pietra Diwan, Ed. Contexto, São Paulo, SP, 2007.

13 de maio - Data comemora a assinatura da Lei Áurea
http://educacao.uol.com.br/datas-comemorativas/ult1688u11.jhtm

Dia Internacional da Tolerância - 16 de novembro
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_Internacional_para_a_Toler%C3%A2ncia

Dia da Consciência Negra - Dia de Zumbi dos Palmares - 20 de Novembro
http://pt.wikipedia.org/wiki/Dia_da_Consci%C3%AAncia_Negra

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Como o Parlamento de Ruanda se tornou o mais feminino do mundo


Fonte: http://www.geledes.org.br/como-o-parlamento-de-ruanda-se-tornou-o-mais-feminino-do-mundo/#gs.MaQbXaI

WITH STORY RWANDA GENOCIDE POLITICS - In this photo of Monday, May, 17 , 2010, Rwandan President Paul Kagame, centre, takes part in a group photo at a conference on the role of women at the nation's parliament, Rwandan officials say the country's parliament has a higher percentage of women than any other parliament in the world. More than 50 percent of the parliament's lower house are women. (AP Photo/ Jason Straziuso)









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Qual o paí­s com maior número de mulheres no Parlamento? 
Nada de Noruega, Finlândia ou Dinamarca. Esse (lindo) recorde pertence a Ruanda, um país africano de pouco mais de 11 milhões de habitantes e que traz na história recente terríveis marcas de um genocídio, ocorrido há pouco mais de 20 anos.

por Gabriela Bazzo no Brasil Post

“É num contexto extremamente adverso que as mulheres lutam para se manter vivas e, na maioria das vezes, têm de se reconstituir a partir de violações de direitos, inclusive num novo país onde começam suas vidas com escassez de recursos sociais e econômicos”, conta Nadine Gasman, representante da ONU Mulheres, em entrevista ao HuffPost Brasil.

De acordo com o The Guardian, durante o genocídio, em 1994, entre 250 mil e 500 mil mulheres foram estupradas.

Após esse trauma, as ruandesas vêm unindo forças em prol de seus direitos e de sua liberdade. E o resultado enche o mundo de esperança:

  • Os direitos das mulheres foram incluídos na Constituição de Ruanda;
  • E a cereja do bolo: o país ostenta o título de possuir o Parlamento mais feminino do planeta: 63,8% da câmara baixa de Ruanda é composta por mulheres. Já no Senado, elas ocupam quase 40% das vagas.

Segundo Nadine, “a participação das mulheres na política de Ruanda é um caso concreto de que é possível elas ocuparem os postos de decisão e fazerem a diferença positiva na política nacional”.
No segundo lugar da lista, está a Bolívia, com 53% dos assentos. Logo atrás, vêm Andorra, com 50%, e Cuba, com 49%.

Os primeiros países da lista implementaram cotas para mulheres no Parlamento: em Ruanda, por exemplo, a Constituição de 2003 instituiu vagas para mulheres, além de 30% de cotas no serviço público e igualdade de gênero na educação e na compra de terras.
Desconsiderando ações afirmativas, o primeiro lugar ficaria com a Suécia, que tem 44% dos assentos ocupados por mulheres.

No mundo todo, de acordo com a ONU Mulheres, há 37 países onde as mulheres ocupam menos de 10% dos assentos parlamentares.
A situação é pior em Palau, na Micronésia, Tonga, Vanuatu, no Qatar e no Iêmen, com ZERO mulheres atuando como parlamentares.
Segundo dados de setembro deste ano, o Brasil ocupa o número 118 na lista, com 9,9% de participação feminina na Câmara e 16% no Senado.

De acordo com a ONU Mulheres, uma maior representação feminina no Estado faz, sim, muita diferença.
Pesquisas em conselhos locais indianos comprovam que o número de projetos envolvendo água potável em áreas com conselhos liderados por mulheres era 62% maior do que em locais onde os homens estavam no comando. Já na Noruega, pesquisas encontraram uma relação direta entre a presença de mulheres nos conselhos municipais e a criação de creches.
O Banco Mundial afirma que, em termos globais, as mulheres ocupam cerca de 20% dos assentos parlamentares.

E como Ruanda se tornou a número 1? 

Uma série de mecanismos legais, como o estabelecimento de cotas para mulheres no Parlamento (e em todos os órgãos tomadores de decisão) e a criação de conselhos locais exclusivamente femininos, foi fundamental para que, no ano passado, as mulheres atingissem uma fatia superior a 60% do Parlamento do país.

Além disso, o genocídio também mudou o papel das mulheres na sociedade de Ruanda: dois anos depois das mortes, cerca de 70% da população adulta do país era composta por mulheres.
Nesse contexto, elas assumiram papéis de liderança, tanto em termos econômicos quanto sociais.

A diretora-executiva da Aliança Internacional Heartland, Elizabeth Powley, trabalha com a proteção e promoção de direitos de populações extremamente vulneráveis no mundo.
Ela relatou em um estudo de caso a crescente participação feminina na política ruandesa:
“O genocídio [em Ruanda] forçou as mulheres a pensarem nelas mesmas de forma diferente e, em muitos casos, a desenvolver habilidades que elas não teriam adquirido em outra situação.”
Até o genocídio, que vitimou 800 mil pessoas (um décimo da população), em 1994, as mulheres nunca haviam ocupado mais de 18% dos assentos no Parlamento.
Após as mortes, milhares delas ficaram viúvas e tiveram que criar seus filhos sozinhas, sem nenhuma presença masculina.

Muitos desses homens, criados pelas mães viúvas, violentadas ou soropositivas (infectadas em estupros), ocupam hoje importantes cargos políticos e lutam por uma sociedade mais inclusiva.
Nadine Gasman, da ONU Mulheres, explica o processo de mudança em Ruanda:
“A área de educação incorporou a igualdade de gênero nas suas matrizes de formação. Houve aumento no acesso da população à saúde e queda significativa da mortalidade infantil. As mulheres estão mais presentes no serviço público e também passaram a ser titulares de terras. Em amplos setores, as mulheres alargaram a sua participação, conquistando voz e poder de decisão que colaboraram para o país se reconstituir num dos casos mais trágicos de guerra no mundo.”
O papel dos conselhos femininos

Segundo Swanee Hunt, fundadora e diretora do Instituto for Inclusive Security, a criação de conselhos locais femininos foi imprescindível para aumentar a participação política feminina e para dar voz às mulheres em uma sociedade bastante patriarcal. “Havia milhares deles, mesmo nesse pequeno paí­s”, contou ela ao Daily Beast.

Os conselhos femininos foram criados após o genocídio. Até então, as mulheres praticamente não tinham participação na vida política em âmbito local. Essas instituições funcionam de forma paralela aos conselhos locais e se encarregam de assuntos como educação, saúde e segurança pessoal, segundo a Foreign Affairs.

“As mulheres foram muito estratégicas. Afinal, esses conselhos, que empoderaram as mulheres para falar e lutar pelos seus direitos, para liderar, foram criados em 1996. Mas as mulheres não estão confinadas aos conselhos femininos; elas também podem lutar pelo seu lugar nos conselhos locais, onde homens participam”, conta a embaixadora Fatuma Ndangiza, que aponta o empoderamento das mulheres como o empoderamento da sociedade.
A diretora do conselho feminino tem um assento reservado no conselho local, servindo como um “elo” entre os dois sistemas.

A questão de gênero também virou bandeira partidária e questão nacional. 
O RPF, partido da situação no país, compromete-se a aumentar a participação política feminina em Ruanda.

“O gênero agora é parte do nosso pensamento político. Nós admiramos todos aqueles que compõem nossa população, pois nosso país já viu o que significa excluir um grupo”, afirma John Mutamba, do Ministério de Desenvolvimento de Gênero e Mulheres de Ruanda.

Os avanços da sociedade ruandesa

Entre 1994 e 2003, período em que o país foi comandado por um governo de transição, a representação feminina no Parlamento — por indicação — chegou a 27,5%. Mas foi em 2003, nas primeiras eleições parlamentares, que as mulheres conquistaram quase 50% dos assentos.
“A questão não é o sexo. A questão é a igualdade de oportunidades, de direitos humanos e dos cidadãos, algo fundamental para qualquer cidadão”, afirmou a parlamentar ruandesa Connie Bwiza Sekemana ao Banco Mundial.

Em 2008, o país se tornou o primeiro do mundo a ter maioria feminina em um parlamento. Foi naquele mesmo ano, segundo a National Geographic, que foram adotadas leis que tornavam a violência doméstica ilegal e que previam punições severas para casos de estupro.
Em um artigo publicado na Foreign Affairs, Swanee Hunt cita mais alguns avanços do país: com uma economia aquecida, Ruanda se junta ao Mali no primeiro lugar entre as nações africanas no que se trata de progressos para alcançar as metas dos Objetivos do Milênio da ONU.
Além disso, a expectativa de vida no país aumentou dez anos na última década e um programa de educação compulsória fez que meninos e meninas tivessem a mesma presença nas escolas primárias e secundárias do país.

“O empoderamento efetivo das mulheres e a capacidade delas de gerar benefícios para a comunidade foram medidas decisivas para promover a reconstrução do país, o que propiciou mudanças de rumo na gestão política, econômica e social por meio da valorização da colaboração das mulheres para a nação”, ressalta Nadine Gasman, da ONU Mulheres.
Para a especialista, Ruanda é um exemplo mundial de que as mulheres são determinantes nos processos de construção da paz.

As dificuldades de hoje

Se a constituição de Ruanda é, por um lado, progressista em termos de direitos das mulheres, há muito o que avançar em áreas como a liberdade de discurso e o respeito às minorias étnicas, segundo Elizabeth Powley.

A pesquisadora também relata preconceito e inexperiência de algumas parlamentares, que acabam precisando “provar” sua competência como líderes.
“Há também uma óbvia diferença de status entre as mulheres que conquistaram seus assentos em competição aberta com os homens e entre aquelas que estão no Parlamento por causa das cotas”, conta.

Mesmo diante de uma melhora, as mulheres do país ainda saem perdendo dos homens em termos de educação, direitos legais, acesso à saúde a outros recursos.
Outro aspecto que preocupa no país são os índices de violência doméstica, que ainda é algo “aceito” pela sociedade. Uma frase comum no país é “niko zubakwa” ou “é assim que os casamentos são construídos”.

Os índices de violência contra a mulher em Ruanda ainda são bastante altos: em uma pesquisa de 2010, 40% das mulheres afirmaram que haviam sofrido violência física pelo menos uma vez desde os 15 anos. Além disso, um relatório de 2011 mostrou que 57% das entrevistadas já foram agredidas pelo parceiro e 32% estupradas pelos maridos.

Os conselhos femininos sofrem com a ausência de recursos, segundo Elizabeth Powley. Por isso, eles são menos eficazes do que poderiam ser, tendo em visto que suas integrantes são voluntárias e têm que conciliar os afazeres políticos com outros papéis sociais.
Será preciso ainda mais esforço para levar a Ruanda do Parlamento para as ruas e para todas as mulheres do país.

Leia a matéria completa em: Como o Parlamento de Ruanda se tornou o mais feminino do mundo - Geledés http://www.geledes.org.br/como-o-parlamento-de-ruanda-se-tornou-o-mais-feminino-do-mundo/#ixzz3s2Mydg7h 
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