domingo, 4 de dezembro de 2022

Dia Internacional da Pessoa com Deficiência - Resistir para Existir

 


DIA INTERNACIONAL DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA - RESISTIR PARA EXISTIR!

LEANDRA MIGOTTO CERTEZA

Publicado originalmente:

https://fondoaccionurgente.org.co/pt/noticias/dia-internacional-das-pessoas-com-deficiencia-resistir-para-existir/

Descrição da imagem: foto colorida de Leandra, de 22 anos, quando fazia uma de suas primeiras reportagens como jornalista no ano de 2000. A reportagem tratava de uma denúncia sobre a total falta de acessibilidade física no transporte público (ônibus) da cidade de São Paulo. Na imagem, Leandra está de costas tentando subir os degraus de um ônibus com a porta da frente aberta e estacionado na garagem. Ela está com uma mão levantada colocando a muleta em um degrau e a outra muleta apoiada no chão. O tamanho do ônibus e principalmente os degraus (que são maiores que a metade do corpo de Leandra), mostram a óbvia dificuldade de uma pessoa com deficiência como ela (que mede 96 centímetros) usar o veículo de transporte público. Leandra usa blusa vermelha, calça preta, tem pele branca e olhos e cabelos castanhos. (Foto: arquivo pessoal)

As pessoas com deficiência representam 15% da população mundial; ou seja, um bilhão de habitantes, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) no Relatório Mundial sobre Deficiência. É a maior população dita minoritária do planeta que sobrevive em extrema desigualdade social, devido ao índice de analfabetismo, desemprego e baixa renda, já que 80% das pessoas que passam por essas situações vivem em países em desenvolvimento. Além disso, dados fornecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que 46% das pessoas com 60 anos ou mais têm alguma deficiência, sendo que uma em cada cinco mulheres de qualquer faixa etária tem deficiência, e uma em cada dez meninas também. No Brasil, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 23,9% da população tem alguma deficiência; existem 45 milhões de pessoas (25 milhões de mulheres) que podem ter nascido ou adquirido condições incapacitantes. E esses números são bem maiores após dois anos de pandemia!

A ONU trabalha desde 1992 (ano em que se instituiu o dia 3 de dezembro como o Dia Internacional da Pessoa com Deficiência) e mais ativamente a partir de 2006 (ano em que a Assembleia Geral da ONU adotou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência). ) para a criação de um mundo acessível, sustentável e que respeite os Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência. Em total oposição a esse esforço global, o governo federal brasileiro (governo do presidente Jair Bolsonaro) tem, desde 2018, um histórico de gigantescos e sucessivos decretos autoritários, segregacionistas, assistenciais e medidas retrógradas que quase acabaram com leis e políticas públicas, conquistado! há mais de três décadas!

O estrago só não foi maior porque os movimentos sociais que lutam pelos direitos das pessoas com deficiência se manifestaram e continuam resistindo - corajosa e ativamente - juntamente com organizações que defendem os direitos das pessoas com deficiência para avançar na consolidação dos direitos adquiridos. Não há espaço para retrocesso! Por isso, a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, formada por dezoito entidades da sociedade civil e/ou grupos ligados à defesa da pessoa com deficiência, lançou em 2022 o documento: "Plano de Inclusão - Vida Independente, Inclusão na Comunidade e Participação Política das Pessoas com Deficiência". É um conjunto de propostas para uma vida digna e autônoma para os brasileiros com deficiência, tais como:

No Brasil, é urgente o cumprimento efetivo da legislação, em especial da Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI 13.146 de 2015). Não há dúvidas de que as pessoas com deficiência no Brasil possuem uma extensa legislação, que é diariamente quebrada. Portanto, não é por falta de leis que as mulheres com deficiência são maltratadas, pisoteadas. E sim, por total descumprimento da legislação vigente!


Feminismos plurais não podem excluir mulheres com deficiência!

Pare e pense: onde estão as mulheres com deficiência hoje nos países onde você está? Eles vivem autonomamente dentro de suas capacidades? Quando eles começaram a falar? Ou outras pessoas ainda falam por eles? Eles são ouvidos? Seus direitos humanos são respeitados? Eles são protagonistas de suas histórias? Qual é a primeira imagem de uma mulher com deficiência que vem à mente ainda hoje? É aquele que é completamente dependente física e emocionalmente da família ou dos relacionamentos amorosos? Ou aquela que pode escolher ser protagonista de sua história, tendo uma rede de cuidado e políticas públicas inclusivas? A resposta pode ser a da imagem da mulher 'frágil' e 'incapaz' com deficiência, sabe por quê? Porque a sociedade brasileira ainda é muito CAPACITISTA!

Infelizmente, para as mulheres brasileiras com deficiência que frequentam ou permanecem em instituições, seu lugar de fala ainda não é ouvido! A esmagadora maioria delas também está completamente excluída dos feminismos plurais no mundo. São infantilizados, vistos de forma assistencial e capaz, sem direito de decisão sobre suas vidas e/ou respeito às suas particularidades e necessidades de acessibilidade. Além disso, há muitos em situação de pobreza, que não são ouvidos, vivem amarrados em suas camas e não conseguem denunciar seus agressores físicos e sexuais, principalmente mulheres com deficiência negras, obesas, indígenas, bissexuais, lésbicas, queer e/ou trans, já que são triplamente discriminados.

O relatório da organização não governamental internacional Human Rights Watch intitulado: "ficam até morrerem", realizado no Brasil entre 2016 e 2018, documenta uma série de abusos (incluindo abuso sexual) contra crianças e adultos com deficiência em instituições de acolhimento . Infelizmente, abuso, violência sexual e estupro também são recorrentes dentro dessas instituições. E essas mulheres não podem nem gritar, pois são silenciadas por funcionários e familiares. E embora tenham conseguido denunciar, a Lei Maria da Penha (documento contra crimes de feminicídio no Brasil) só incluiu mulheres com deficiência 13 anos depois de sua existência, por meio da Lei 13.836 de 2019. Uma demora gigantesca, que inviabilizou a lei. de aumento de reclamações, agravando ainda mais a situação de violência contra pessoas com deficiência no Brasil. E também, mulheres trans, LGBTQIAP+ e queer não foram contempladas nessa lei. Justamente os que mais precisam de proteção contra os gigantescos casos de violência e morte dessa população!

Vejam como são alarmantes os números da violência! O Atlas da Violência 2018, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), indicou que dos 22.918 casos de estupro verificados no Brasil em 2016, 10,3% das vítimas apresentavam algum tipo de deficiência. Desse total, 31,1% apresentavam deficiência intelectual e 29,6% apresentavam transtorno mental. Outro fato chocante é que, entre os casos de estupro coletivo, 12,2% são contra vítimas que possuem algum tipo de deficiência. E de 649 pessoas com deficiência mental estupradas, 275 foram estupradas mais de uma vez.

Qual é o lugar de fala da mulher com deficiência em uma sociedade capaz?

Como jornalista e escritora desde 1998, minha voz é um alerta à sociedade sobre a realidade da mulher com deficiência no Brasil. Meu lugar de fala é o de uma mulher com deficiência física, branca, cisgênero, heterossexual, classe média, com nível superior de escolaridade, na capital paulista. Posso dizer que fui e continuo sendo privilegiado em vários aspectos. Porém, em vários momentos da vida, fui silenciada por mim mesma (por internalizar estigmas) e também por outras pessoas por preconceito e discriminação.

Vivi o capacitismo no dia a dia, numa época em que ele nem existia no Brasil como conceito acadêmico. Foi uma exclusão direta ou velada. Nos anos 2000, minha colega de trabalho simplesmente arrancou uma lista da minha mesa onde ela estava olhando os endereços das unidades (para as quais ela precisava ligar e repassar informações) e começou a refazer tudo! Ele já havia finalizado o serviço e conferido três vezes para ver se estava tudo bem. Apenas o gerente do departamento tinha o direito de corrigir alguma coisa; não um colega de trabalho que estava no mesmo papel que eu. Ela simplesmente duvidou da minha capacidade! Uma total falta de respeito e capacitação, afinal eu já era formada em Comunicação Social, e havia sido selecionada para preencher aquela vaga, justamente por ter condições técnicas e acadêmicas para exercer essas atividades. E, de fato, você teria competência e qualificação para desempenhar outras funções além de atender o telefone. Mas isso é assunto para outro texto sobre a desvalorização profissional aliada ao capacitismo.

Outra situação capacitadora pela qual passei foi bem mais forte: quando já trabalhava como jornalista em uma pequena editora, sofri assédio moral ao voltar de uma grande cobertura jornalística de um evento importante. Eu estava bastante cansado e comecei a conversar com um colega sobre assuntos pessoais. Quando comentei sobre relacionamentos amorosos, outro profissional começou a rir alto de mim. Ele chegou ao ponto de colocar um objeto pontiagudo no meu rosto e insinuar que eu queria ser 'amado'. Infelizmente, fiquei totalmente paralisado e não consegui reagir.

Hoje tenho consciência de que minha história não difere muito das histórias de várias mulheres com deficiência, sejam elas de nascença ou adquiridas. Todos eles precisavam “matar um leão por dia”, justamente para dizer que não deveria ser necessário “matar um leão por dia”. Porque não eram eles que estavam no lugar errado. Nunca o foram, embora seus familiares, amigos e sociedade em geral sempre apontassem o dedo primeiro para suas diferenças, ao invés de verificar sua igualdade humana, respeitando seus limites e estimulando potencialidades, sem prejulgar ou oprimir sua plena participação social.

Como a maioria das mulheres brasileiras com deficiência, demorei mais de 30 anos para entender que nunca saí do lugar que sempre quis estar. O machismo e o sexismo arraigados na sociedade, a discriminação aberta ou velada e o preconceito em relação à minha condição de deficiência, sempre estiveram presentes em minha vida por muito tempo. O mais terrível é que ele não conseguia ver cada um como monstros para lutar. Fui na maioria das vezes enganado e dominado por esses fatores, sem perceber. As leituras e estudos sobre feminismo que venho fazendo livremente como autodidata, além das sessões de terapia, estão me libertando e me aproximando de um verdadeiro empoderamento interno.

Como quebrar os ciclos de violência contra mulheres com deficiência?

Para quebrar os ciclos de violência contra as mulheres com deficiência é necessária uma participação urgente, ativa e eficaz nos movimentos feministas! As mulheres com deficiência têm necessidades específicas e formam coletivos e movimentos sociais próprios, como o coletivo Helen Keller @coletivohelenkeller, mas não podem ser dissociadas das pautas de outros movimentos feministas, como o das mulheres negras, entre outros. E para que essa união aconteça, as mídias que abordam conteúdos feministas precisam incluir a questão da mulher com deficiência de forma transversal; Por exemplo, quando se fala em racismo, não se esqueça que existem mulheres negras com deficiência.

Alerto também que a participação de mulheres com deficiência só será efetiva se todas as mídias feministas respeitarem as leis de acessibilidade digital e física. Afinal, como as mulheres com deficiência auditiva e visual podem participar das discussões sobre violência nos portais feministas se não têm acesso aos conteúdos, por falta de intérprete de língua de sinais, legendas ou audiodescrições? E como as mulheres com deficiência física podem estar nas reuniões se os locais só têm escadas?

Por isso, a necessidade de todos os movimentos feministas ouvirem, darem acesso e incluirem todas as mulheres com deficiência também é gigantesca e urgente, agora! Não podemos esperar mais um minuto pois JUNTAS somos mais fortes na luta contra o feminicídio, machismo, misoginia, discriminação e preconceito de gênero. Afinal, absolutamente todas as mulheres podem adquirir uma deficiência a qualquer momento (por violência, acidentes de trânsito e outras situações). E para vocês, pessoas sem deficiência, serem aliadas e aliadas dos Feminismos de Mulheres com Deficiência, o Coletivo Helen Keller oferece o conselho:

  1. Reconheça seus privilégios como mulheres que não vivenciam a deficiência;
  2. Apoie os holofotes! Existem muitas mulheres com deficiência que são protagonistas na luta, mas raramente encontram espaço para trazer suas orientações;
  3. Reflita sobre suas atitudes capacitistas;
  4. Lembre-se da acessibilidade em seus eventos, reuniões, redes sociais, em tudo! Juntos vamos construir uma cultura de acesso;
  5. Fale sobre deficiência, porque não é uma “obrigação” só para nós (pessoas com deficiência), mas quando for falar, lembre-se de nos convidar. Afinal, como diz o lema dos Movimentos Sociais e Políticos das Pessoas com Deficiência no Brasil: “Nada sobre nós, sem nós”;
  6. Amplie a voz da mulher com deficiência e não invalide o que ela diz;
  7. Assine alianças com o movimento de mulheres com deficiência, assim como precisamos de aliadas e aliadas, também queremos nos tornar aliadas na luta delas;
  8. E lembre-se que nós, mulheres com deficiência, estamos fazendo a nossa parte para dar mais visibilidade às nossas diretrizes. Mas também precisamos de muitos aliados e aliadas. Podemos contar com você?

Referências:
Coluna: "Ser mulher com deficiência é lutar para manter direitos":
https://azmina.com.br/colunas/ser-mulher-com-deficiencia-e-lutar-para-manter-direitos/
Rede Brasileira para Inclusão de Pessoas com Deficiência:
http://ampid.org.br/site2020/wp-content/uploads/2022/08/Plano-Inclus%C3%A3o-2022-Completo.pdf
Atlas da Violência 2018:
https:/ / www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=33410&Itemid=432
Relatório de Direitos Humanos Assista: https://www.hrw.org/pt/report/2018/05/23/318010

Autora do artigo: Leandra Migotto Seguro é uma brasileira com deficiência física nascida em 1977, poetisa, escritora, editora e jornalista. Graduada em Comunicação Social pela Universidade Anhembi Morumbi; Formou-se nos Cursos Livres de Jornalismo Literário-Narrativas Biográficas e Dias de Heróis e Heroínas da Escola EPL - Edvaldo Pereira Lima (São Paulo). Atua como ativista nos Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência desde 1998; É colunista do portal Sem Barreiras e do Observatório Internacional da Sexualidade das Pessoas com Deficiência (Peru); Mediadora Cultural no Museu das Diversas Vozes; e Professora do Curso "Diversidade-Aspectos da Deficiência na Prática" do Instituto de Psicologia Sedes Sapientiae (SP). Ele idealizou e coordena o " Coletivo Girasol – Protagonismo de Escritores com Deficiência" editando biografias de mulheres com deficiência através da Coleção Ventanas. Leandra foi premiada pela Associação Internacional para o Estudo da Sexualidade, Cultura e Sociedade no Peru em 2007, por seu projeto: "Fantasias Caleidoscópicas"; e Premiada pela organização não-governamental Sociedade para Todos na Colômbia em 2003, por sua crônica sobre Educação Inclusiva no "Concurso de Jornalismo e Comunicação".  Contato: @leandracaleidoscopica. portfólio:https://www.linkedin.com/in/leandra-migotto-certeza.