domingo, 27 de dezembro de 2015
Feliz Ano Novo Inclusivo!
Minha mensagem de Ano Novo é que em breve não seja mais necessário falar de inclusão, pois ninguém será mais discriminado e colocado fora da sociedade pela sua condição HUMANA DIVERSA E IMPERFEITA DE SER!!!!
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
Leandra escreve para a Agenda Portadora de Eficiência 2016
Sexualidade e deficiência
Um tabu a ser
quebrado!
Eu não
posso engravidar, mas tenho o direito de ser mãe tendo uma deficiência física!
Eu não posso fazer amor com tanta volúpia, e em posições que sempre sonhei; mas
posso ter orgasmos estupendos! Eu não posso sentir meu corpo mudar, ao abrigar
um novo ser em meu ventre, mas posso amar – incondicionalmente – as crianças
que habitam e habitarão o meu coração. Eu não posso amamentar um bebê quentinho
em meus braços, mas tenho muita seiva escorrendo, pelos fios da minha alma,
para alimentar espíritos sedentos.
Antes eu tinha vergonha de assumir que me gostava. Pensava: o que as
pessoas vão dizer? Sabia que não sou mais criança (há muito tempo toquei meu
corpo e senti vida pulsando!), mas ainda tenho tamanho de uma. E me tratam como
se fosse. Sexo? Eu? Como? Não posso, mas quero. Quero tanto! Minha ‘mãe’
(interior?) dizia que eu ficava feia de saia. Meu ‘pai’ (interior?) não queria
que eu usasse batom. Sempre fui olhada, observada, esquartejada,
detalhada... Sempre fui comentada, falada, cochichada, fofocada, julgada...
Poucos se aproximavam para me conhecer. Naquela época foi MUITO duro viver!
Afinal, nasci
em uma sociedade que valoriza o equilíbrio, a beleza perfeita, o linear, a
sincronia, a coerência, a igualdade das formas... Resumindo: o ideal da
perfeição que não existe nesse Planeta. Todos os seres humanos são DIFERENTES.
Todos sem exceção. Hoje assumo que sou diferente sim! Chamo a atenção. Mas quem
não é? Quem não chama? Eu sou um pouquinho diferente do que as outras pessoas.
Só isso. Já chamo a atenção por natureza. Não preciso fazer tatuagens, colocar
piercing, pintar os cabelos de vermelho, usar uma melancia no pescoço...Para
mim a beleza é a forma CALEIDOSCÓPICA que TODAS as pessoas têm. Beleza,
sedução, sensualidade, sexualidade, amor, paixão, tesão e desejo são energias
tão sutis e tão FORTES que estão em tudo que fazemos.
Porém, o senso
comum ainda difunde e expressa um estigma sobre a sexualidade das pessoas com
deficiência como assexuadas, visão esta, envolta por preconceitos e
representações sociais. Ainda é um tema tabu, que pouco se discute e que vem
sendo esclarecido apenas nos últimos anos. Nesse sentido, proporcionar o acesso
à informação sobre o assunto busca contribuir para a construção das relações
sociais.
É por isso, que as fotos e os
depoimentos do projeto “Fantasias Caleidoscópicas”, que iniciei em parceria com
a fotógrafa Vera Albuquerque, vão refletir as DELICIOSAS fantasias – ‘reais’ e
imaginárias - que todos têm de si mesmo. Pessoas com várias deficiências
(física, auditiva, visual, intelectual, múltipla, e surdocegueira), sejam elas:
idosas, gestantes, obesas, casais homossexuais e/ou heterossexuais, de todas as
etnias, e classes sociais, que em um estúdio fotográfico mostrarão sua
sensualidade em poses sensuais.
O objetivo de Vera é questionar o
padrão de beleza – instituído pelos meios de comunicação e pela moral dominante
– ressaltando a possibilidade de uma democratização do prazer, uma igualdade de
direitos sexuais, uma disposição das mentes (e dos corações) contra os juízos
prévios e os preconceitos. E o meu, como jornalista, é dar voz às imagens é tão
importante quanto o registro fotográfico, pois é interessante conhecer as
histórias de vida dessas pessoas, que em sua maioria ainda são bem pouco
ouvidas. O enfoque está na arte e na educação como agentes transformadores da
realidade, aliados à palavra, como testemunha dos fastos e detentora de um
poder de mudança na sociedade. Vale a pena conhecer o blog do projeto: http://fantasiascaleidoscopicas.blogspot.com/ .
Eu creio que mudar é o primeiro passo no sentido de favorecer a inclusão.
A disposição de amar inclui a capacidade de acolher, trazer afetuosamente para
perto de si o mundo e a vida em suas faces mais plurais. É enriquecedor receber
o outro, no caso a pessoa com deficiência, disposto a compreendê-lo dentro de
suas circunstâncias.
Leandra
Migotto Certeza é Jornalista, Palestrante e Consultora em
Inclusão há 15 anos. Trabalhou nas principais mídias sobre deficiência. Foi
premiada em Lima e na Colômbia pelos seus textos. Hoje desenvolve o projeto
Fantasias Caleidoscópicas, atua em universidades, empreas, órgãos públicos e
ONGs, além de manter o blog: http://leandramigottocerteza.blogspot.com/ .
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
Clube da Escrita
A magia da cadeira imaginária
Por Leandra Migotto Certeza
Quando
a semente foi fecundada e o embrião surgiu a magia começa. Com a forma de uma lua
crescente em curva, surgimos sentados. E assim somos carregados dentro do
ventre que habitamos, sentindo a vida mergulhados. Acreditam que ficamos a
maior parte do tempo de frente, mas podemos virar de cabeça para baixo. Sempre
formando uma letra L. Como uma cadeira. Mesmo que demore um pouco para
conseguimos sustentar nossas cabeças, ficamos sentados. Acredito que seja para
conseguirmos ver o mundo por um ângulo melhor. Passear no carinho é bem mais
interessante do que ficarmos deitados no berço. O mundo pode ser explorado e
está ao alcance dos nossos olhos e mãos, sem o esforço de nos sustentarmos em
pé.
A
minha cadeira foi apresentada aos 14 anos. Época em que uma menina, preferiria
se aventurar no mundo com os próprios pés, correndo na beira da praia, sentindo
o frescor da matas e o calor do asfalto, brincando de deixar de ser criança.
Mas não tive escolha. Minhas pernas enfraqueceram, meu corpo ficou bem pesado,
os colos não conseguiram me carregar mais por aí como cadeiras falantes. A
única alternativa foi me sentar nela e sentir sua magia. Mesmo com muito
receio, me adaptei as suas duas rodas grandes e duas menores, e aos olhares de
todos que agora pareciam ser sempre maiores e mais altos do que eu. Só fui
entender a liberdade que esta cadeira me proporcionou, depois que ela começou a
fazer parte do meu corpo, e eu a confundir com minhas pernas e pés.
Hoje
só não a levo comigo quando vou deitar na cama, cochilar no sofá ou me
reconfortar em uma poltrona bem macia. Por que na maioria do tempo, sem ela,
não sou ninguém! É com ela que assumo minha personalidade. Mesmo quando o
taxista pergunta, se ela também vai comigo no carro, porque sem ela não consigo
chegar ou sair dos lugares. É com ela que participo de cursos, escrevo,
trabalho, vou até à natação, viajo, conheço novos lugares, converso com
pessoas, faço palestras, danço, rodopio, carrego mochilas mais pesadas do que
meu corpo, enfrento arreias macias e difíceis de passar até encontrar as ondas
dos mares ou o frescor dos jardins e a beleza dos museus. Quando chego aos
teatros ou salas de cinema, não preciso me preocupar em escolher a melhor
cadeira, porque sempre estou com a minha. E mesmo desviando de buracos, subindo
em guias íngremes, passando por poças de água, descendo rampas desniveladas,
saltitando sobre os pedregulhos, nunca deixo de levar ela comigo porque sem ela
não teria acesso ao desfrutar da vida.
Só
espero que em breve, minha cadeira de rodas ganhe um motor bem forte que
acelere sua capacidade de deslisar em lugares ainda inexplorados com muito mais
conforto, segurança e bem menos esforço físico. Por que não temo mais a prisão
que ela supostamente me colocaria quando a imaginava parada, sozinha em um
cantinho da sala assistindo TV.
Texto que será publicado no livro editado pelo SESC Pinheiros como fechamento da terceira temporada do Clube da Escrita.
sábado, 28 de novembro de 2015
SEMANA INCLUSIVA EM SÃO PAULO EXIBE FILMES E PROMOVE DEBATE
Ações para cidadania
Cine E Debate – Imagem e Estigma -
Um debate acerca de questões fundamentais e urgentes relativas às pessoas com
deficiência. Os filmes fizeram parte do Festival Assim Vivemos deste ano, que
traz produções de todos os continentes que enfatizam a pessoa com deficiência
como protagonista e sujeito para além dos preconceitos e estigmas com os
convidados:
Rosana de Lima Soares, professora no Departamento de
Jornalismo e Editoração e no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos
Audiovisuais da USP, realizou pesquisa sobre políticas da representação e
estigmas sociais presentes nas narrativas do cinema e da televisão.
Leandra Migotto Certeza, jornalista há 15 anos, coordena o
projeto Fantasias Caleidoscópicas sobre sexualidade da pessoa com deficiência,
no endereço: leandramigottocerteza.blogspot.com.
Leonardo Feder, formado em jornalismo pela USP,
Mestre pelo Departamento de Letras Orientais da USP e doutorando pela mesma
universidade. Tem Distrofia Muscular de Duchenne (DMD), uma doença genética
degenerativa.
Filmes: “Mãos Dadas” (Hand in Hand. Dir.: Ignacio
Tatay, dur.: 7’, Espanha, 2014) - Quando uma garota se deixa levar pelo desejo
de beijar um completo estranho no ônibus, não poderia supor de quão estranho
ele é. Após uma reviravolta inesperada, ela terá que tomar uma atitude para
corrigir essa situação embaraçosa.
“O
Entrevistador” (The Interviewer. Dir.: Genevieve Clay-Smith, dur.: 12,
Austrália, 2012) Thomas Howell consegue muito mais do que foi buscar em uma
entrevista de emprego em um importante escritório de advocacia: um insulto sobre
sua gravata, uma rendição de Harry Potter e a chance de mudar as vidas de um
pai e seu filho.
“
A Onda Traz, O Vento Leva” (The Wave Brings It, the Wind Takes It. Dir.:
Gabriel Mascaro, dur.: 25’, Brasil, 2012) Rodrigo é surdo e trabalha instalando
som em carros. O filme é uma jornada sensorial sobre um cotidiano marcado por
ruídos, vibrações, incomunicabilidade, ambiguidade e dúvidas.
LINK para a gravação completa em áudio do evento:
LINK para a gravação completa em áudio do evento:
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
Leandra participa de debate no Centro de Pesquisa e Formação do SESC - SP durante a Semana Inclusiva
Discussão sobre as questões como estigma, imagem, preconceito e aceitação.
A atividade propõe a exibição dos filmes: "Mãos Dadas" (Espanha/2014),
"O Entrevistador" (Australia/ 2012) e "A Onda Traz, O Vento Leva" (Brasil/2012) seguida por debates.
O encontro faz parte da Semana Inclusiva!
Tradução em Libras disponível.
Faça sua solicitação no ato da inscrição,
com no mínimo dois dias de antecedência da atividade.
Sobre os filmes:
"A onda traz, o vento leva"
Diretor: Gabriel Mascaro
Brasil / 2012
Brasil / 2012
Rodrigo é surdo e trabalha numa equipadora instalando som em carros.
O filme é uma jornada sensorial sobre um cotidiano marcado por ruídos,
"mãos dadas"
Diretor: Ignacio Tatay
Espanha / 2014
Espanha / 2014
Quando uma garota se deixa levar pelo desejo de beijar um completo estranho no ônibus,
não poderia supor de quão completamente estranho ele é.
Após uma reviravolta inesperada, ela terá que tomar uma atitude para
corrigir a situação em que colocou os pés pelas mãos.
Tudo isso sob os olhares atentos dos demais passageiros.
Um filme leve e denso ao mesmo tempo, que fala de amor,
"o entrevistador"
Diretor: Genevieve Clay-Smith
Australia / 2012
Australia / 2012
Thomas Howell consegue muito mais do que foi buscar em uma
entrevista de emprego em um importante escritório de advocacia:
um insulto sobre sua gravata, uma rendição de Harry Potter,
e a chance de mudar as vidas de um pai e seu filho.
Palestrantes
Leandra Migotto Certeza
Jornalista, palestrante e consultora em inclusão de cidadãos com deficiência e diversidade. Coordenadora da Caleidoscópio Comunicações - Consultoria em Inclusão e Assessora de Imprensa Voluntária na Associação Brasileira de Síndrome de Williams.
Rosana de Lima Soares
Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. Professora no Departamento de Jornalismo e Editoração e no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da mesma instituição.
Leonardo Feder
Cursou Jornalismo na USP. Mestre, pelo Departamento de Letras Orientais da USP, em uma pesquisa sobre fotógrafos de origem judaica.
Data:
04/12/2015
Dias e Horários:
Sexta-feira das 19hs às 21hs.
Local:
Rua Dr. Plínio Barreto, 285 - 4º andar
Bela Vista - São Paulo.
Bela Vista - São Paulo.
Valores e Inscrições:
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
Leandra faz parte de Trabalho de Conclusão de Curso de Estudante de Jornalismo da PUC - Campinas
Trecho do Livro de Bárbara Garcia Pedroso - "Sobre limão e linhas tortas" - TCC de Jornalismo da PUC Campinas.
Leandra Migotto Certeza
Com ‘ossos de vidro’, trabalhou em revistas para o público com deficiência Leandra possui uma alteração genética que causa fragilidade nos ossos, conhecida como “ossos de vidro” ou “ossos de cristal”. Graduada em Produção Editorial, trabalhou como jornalista em revistas segmentadas para o público com deficiência, como Sentidos, Incluir, Gente Especial. Aos 38 anos, atualmente ministra palestras motivacionais, tem dois blogs e deseja cursar pós-graduação em jornalismo literário para tornar-se escritora.
Uma das reportagens que fiz e mais marcou minha memória foi quando descobri que alguns motoristas de uma empresa de transportes estavam realizando um treinamento de como tratar pessoas com deficiência sem a presença de ninguém nessa condição. Vi que estavam inventando tudo da cabeça deles, sem respeitar norma alguma. Descobri isso através de alguns contatos e avisei muitas pessoas de diversas instituições e organizações representativas sobre a situação. Decidimos aparecer no local do treinamento de surpresa e exigimos acompanhar tudo o que estava sendo feito. Fui com a equipe da revista em que trabalhava na época, e fizemos uma grande reportagem crítica. A matéria foi publicada, mas por conta da repercussão um tanto negativa que a abordagem alcançou e por conta de a revista não possuir este tipo de linha editorial, fui mandada embora. Por isso prefiro não revelar o nome da revista, mas foi uma experiência muito importante por me trazer à tona os problemas relativos ao transporte público para as pessoas com algum tipo de deficiência.
Eu tenho uma alteração genética chamada osteogenesis imperfecta, conhecida como “ossos de vidro” ou “ossos de cristal”, que causa fragilidade nos ossos. Bem por isso, gera algumas alterações no corpo, como, por exemplo, a baixa estatura e formato diferente dos membros e tronco. Meus pais, Nelson Certeza e Cristina Esteves Migotto Certeza, descobriram que eu tinha esta alteração genética quando minha mãe ainda estava grávida, mas não sabiam ao certo o diagnóstico, o que só apareceu após o nascimento. Por causa da fragilidade óssea, é comum que os fetos nessa condição sofram muitas fraturas dentro do útero. E elas não param por ai, nos acompanham ao longo da vida. Tive muitas fraturas espontâneas, principalmente quando criança. Minha mãe me contou que uma vez isso aconteceu enquanto ela trocava minha frauda. Meu quadro físico só começou a estagnar mais ou menos quando eu tinha 14 anos.
Em pessoas com osteogenesis, é comum que a condição motora melhore um pouco no período da adolescência. Durante o ensino fundamental, minha mãe teve dificuldade de me matricular em um colégio regular porque era difícil encontrar escolas que aceitassem crianças com deficiência. Então precisei estudar durante dois anos em uma sala específica para pessoas nessa condição em um colégio tradicional em São Paulo, o Rodrigues Alves, localizado na Avenida Paulista. A sala especial era vinculada à AACD, a Associação de Apoio à Criança Deficiente. Foi uma experiência muito traumática, horrível. Nós não tínhamos contato com os outros alunos e entrávamos pela porta dos fundos, um absurdo. Aquele era um ambiente de segregação dentro da escola. A Direção realmente juntava todos os alunos com deficiência e os jogava em uma turma separada. Na época isso já era um avanço, pois pelo menos havia um espaço para essas pessoas. Como não me adaptei ao local, minha mãe me tirou de lá e passei a frequentar uma escola particular regular, em que eu era a única aluna com deficiência.
No ensino médio também tive colegas de turma que carregavam alguma deficiência. Nessa fase, em 1993 ou 1994, lembro-me de um menino com um tipo de paralisia cerebral que tinha bastante dificuldade para falar. Além dele, um garoto surdo também frequentava o colégio. Acho que a presença de estudantes nessa condição é extremamente importante para que os outros colegas aprendam desde pequenos a conviver com as diferenças. Tive à disposição um bom tratamento. Desde muito pequena, comecei a fazer fisioterapia, hidroterapia, natação em instituições como a AACD e outras clínicas particulares.
Sempre soube que era diferente, desde pequena, mas ao mesmo tempo, queria estar no mundo de forma igual. Gostava muito de brincar com bonecas, conversava com elas e me enxergava naqueles corpos frágeis. Aos cinco anos brincava com demais crianças no chão, na areia e sempre arrastando a bundinha para superar distâncias. Foi nessa época que meu irmão nasceu, o Daniel Migotto Certeza, que não possui deficiência. Nós dois sempre cultivamos um bom relacionamento. Comecei a andar de fato com sete anos com ajuda de duas muletas canadenses. Foi assim até os oito anos, depois tive uma queda e fiquei com muito medo de andar. Por isso comecei a utilizar um carrinho de bebê. Passou a ser uma situação difícil depois de alguns anos, porque eu já estava na adolescência, precisava daquele carrinho mais por uma questão psicológica do que física. Eu não queria usar cadeira de rodas porque na época ela representava limitação, uma imagem muito pesada e estigmatizada. Ficava insegura, por isso usava o carrinho.
Além das dificuldades de locomoção, sempre tive um corpo muito menor do que o das meninas na minha idade e sofria um pouco com isso. Utilizei o carrinho até os 14 anos, quando retomei a hidro e fisioterapias. Aí consegui vivenciar uma fase boa, comecei a andar bem com as muletas novamente. Estava na época do cursinho e tinha bastante autonomia no colégio. Até dava uma volta de um quarteirão para o outro, atravessava a rua, carregava a mochila nas costas. No fundo tinha bastante medo de cair e me machucar, mas a vontade sempre foi maior do que tudo, e fui em frente. Meu interesse pelo jornalismo foi se revelando aos poucos, mas desde muito nova gostava de escrever histórias. Tinha nove anos quando produzi meu primeiro poema, por exemplo. Na escola eu adorava língua portuguesa e me destacava nas disciplinas de Humanas. Em compensação, era péssima em Exatas. Costumo dizer, com bom humor, que não sei contar além de dois mais dois. Porém, modéstia à parte, minhas redações eram ótimas e eu tinha bastante facilidade em me comunicar. Gostava de fazer novas amizades, conversar muito com todo tipo de pessoa.
Comecei a graduação em Produção Editorial, na Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo, no ano de 1996, aos 21 anos. Nessa fase já pensava em investir na carreira de jornalista e logo no segundo ano da faculdade publiquei minha primeira reportagem, na Revista Gente Especial. Procurei a redação da revista por iniciativa própria. Em todos os lugares em que já trabalhei, não entrei por conta de indicações, mas porque eu ia até os locais, deixava meus currículos à disposição e perguntava, na maior cara de pau, se existiam vagas disponíveis. A Revista Sentidos foi uma das que trabalhei por mais tempo e com a qual estive envolvida em sua criação. Fazia muitas coberturas de eventos.
Nessas ocasiões fazia um cadastro prévio nas assessorias de imprensa sem avisar que tinha uma deficiência. Fazia isso de propósito porque queria ver a reação das pessoas ao encontrar uma jornalista na minha condição. Quando eu entrava nesses locais, muitas das pessoas diziam: “Cadê a jornalista que falou que viria?” Quando eu respondia que eu era a jornalista, muitas pessoas ficavam surpresas. Apesar de elas estarem acostumadas a tratar do assunto, na maioria das vezes era um discurso sobre o outro, construído de uma forma assistencialista, estigmatizada e até piegas. Era o discurso de quem não tem deficiência e vê o outro em condição de suposta fragilidade, de desvantagem. Por isso considero tão importante o lema do movimento das pessoas com deficiência a partir da década de 1980, conhecido como “Nada sobre nós sem nós”. Essa frase simples traduz uma necessidade absoluta de qualquer movimento social ou organização que lute por igualdade de oportunidades: a de se garantir representatividade.
Sempre me interessei por reportagens com caráter social, que problematizassem as dificuldades das minorias, das populações que sofrem com preconceito e discriminação. Negros, mulheres, comunidade LGBT, pessoas de baixa renda ou com deficiência. Acho que essa busca por denunciar as desigualdades está no meu sangue e permanecerá sempre comigo. Ainda bem que não vivi na época da ditadura, porque se assim o fosse, certamente sofreria com a repressão. Por conta dessa visão social e engajada que tenho vida, acredito que nunca deixarei de ser jornalista, apesar de hoje ter planos de me tornar escritora e cursar pós- graduação em jornalismo literário. Penso em partir para essa área porque tenho necessidade de desenvolver minha escrita de uma forma mais literária. Quero escrever romances, crônicas, ensaios, que são os tipos de texto dos quais eu mais gosto.
Acho que nunca fui muito atrás de colaborar com jornais impressos justamente porque prefiro de um tipo de escrita mais demorada, com mais tempo para refinamento da linguagem. Ficava apreensiva com o ritmo acelerado das publicações diárias, talvez por isso tenha me focado na produção de revistas.
Uma das reportagens das quais recordo de ter me emocionado foi uma vez em que fui a uma instituição, não me recordo o nome, que era, na verdade, uma espécie de abrigo para pessoas com AIDS, transexuais, travestis e também com deficiência. Um lugar bastante pobre, que não dispunha de nenhum recurso. Aquelas pessoas ficavam jogadas à sua condição. Elas me trataram com muito carinho e demonstraram que necessitavam de aten- ção. O maior desejo delas naquele momento era o de contar suas histórias para mim. Eles ficaram muito felizes por estarmos retratando a realidade em que viviam. Gostei muito do texto que escrevi, com um viés poético. Foi uma experiência que me marcou muito, principalmente pelo sentimento de impotência que tive ao ver o sofrimento deles, porque eu gostaria de fazer mais do que simplesmente contar aquela história. Queria mesmo é que esse tipo de instituição não precisasse existir, e que essas pessoas estivessem de fato inseridas na sociedade.
Em relação aos deficientes que trabalham como jornalistas, eu considero importante reforçar que grande parte da mídia ainda se prende a padrões estéticos de uma maneira forte e, por conta disso, muita gente com deficiência tem dificuldade de se inserir no mercado. Aliás, isso não ocorre apenas com as deficiências, mas ainda hoje vemos pouquíssimos jornalistas negros, orientais, de etnias diversas ou com qualquer outra característica que demonstre diferença ocupando colocações de destaque, exercendo função de apresentadores, mostrando seus rostos e corpos. Até pouco tempo atrás, muitas emissoras de televisão não contratavam pessoas que usassem óculos, para se ter uma ideia. Nos dias atuais, em que temos uma cultura muito visual, a aparência se tornou fundamental, às vezes mais do que a qualificação profissional, infelizmente. Por isso é importante que questionemos, com os instrumentos que temos à disposição, esse tipo de comportamento.
Alguns dos instrumentos que utilizo para problematizar essa e muitas outras questões são meus dois blogs, o Caleidoscópio e o Fantasias Caleidoscópicas. O primeiro, eu uso para contar sobre tudo, meu dia a dia, as entrevistas que tenho feito, alguns textos literários e outros conteúdos de caráter jornalístico. No momento em que estava concedendo a entrevista para este livro, meu marido Marcos, que tem também uma deficiência e utiliza cadeira de rodas, estava filmando a conversa para que eu postasse no blog. O outro site se destina a tratar da sexualidade da pessoa com deficiência, um tema que me é muito caro. Ministro palestras sobre o assunto e já produzi um ensaio fotográfico sensual junto com a fotógrafa e amiga Vera Albuquerque. Além de posar para as fotos, eu acompanhei a Vera enquanto ela fotografou pessoas de diversas etnias, jovens, idosos, gestantes, obesas, casais homo e heterossexuais, enfim, todo tipo de gente. Tínhamos o intuito de questionar, como explico no blog: “o padrão de beleza - instituído pelos meios de comunicação e pela moral dominante – ressaltando a possibilidade de democratização do prazer, de igualdade de direitos sexuais, uma disposi- ção das mentes e dos corações contra os juízos prévios e os preconceitos”
Por ter trabalhado na maior parte do tempo em revistas pequenas, com número reduzido de funcionários, não utilizei a lei de cotas para pessoas com deficiência. Uma das poucas exceções foi quando consegui uma vaga para ser telefonista na Editora Abril. Decidi aceitar o emprego porque tinha a esperança de ser transferida para a área editorial depois de um tempo, mas apesar das minhas muitas solicitações, isso não ocorreu. Mesmo eu formada desde 1999 e com importante experiência como repórter de revista, não tive oportunidade de evoluir dentro da empresa porque estava lá apenas cumprindo cota. Larguei o emprego por esse motivo, mas considero a lei de cotas um importante instrumento de inclusão, apesar de considerar que precisa de aprimoramentos.
Sempre tive paixão pela reportagem e orgulho em ser jornalista. Durante toda a carreira, gostava de cumprir qualquer pauta que me pedissem, exceto nas raras vezes em que tive que fazer matérias pagas, ou seja, somente porque algum anunciante encomendava. Não tinha muita escapatória, apesar de não concordar com a prática, eu precisava trabalhar para me sustentar. Então, acabava fazendo. Em outra ocasião, fui visitar uma escola que tinha alguma acessibilidade, mas também várias inadequações. Não que estivesse maquiando algo, mas precisei olhar para as qualidades da escola, valorizar o quadro de professores, ao invés de mostrar os problemas nos padrões de acessibilidade. Esse tipo de situação me causou um pouco de frustação com a profissão, mas nunca cheguei ao ponto de pensar em desistir.
As revistas em que trabalhei foram locais em que cultivei muitas alegrias, obtive inúmeras conquistas, pude conviver com várias pessoas pelas quais tinha admiração. Alguém que tive a honra de entrevistar foi a Dorina Nowill, já falecida. Essa senhora extremamente inteligente, simpática e cativante foi a principal idealizadora da Fundação Dorina Nowill para Cegos, uma das primeiras instituições do país a produzir livros em Braille e ministrar aulas e cursos destinados às pessoas com cegueira ou restrições visuais. Vou admirá-la para sempre, pelo legado importante que deixou.
Algo importante que preciso salientar é que, infelizmente, a maioria das 45 milhões de pessoas com deficiência no Brasil ainda vivem em situação de pobreza, sem nenhum recurso garantido por parte do Estado. Muitas ainda estão trancadas dentro de suas casas, presas em uma cama, sem possibilidade de conquistar seu direito ao trabalho, marginalizadas. E isso está acontecendo agora, no momento em que estamos falando. Graças à minha família, tive condições de dispor de um bom tratamento, de fazer faculdade, conquistar autonomia. A maior parte dos jornalistas com deficiência também compartilha desta condição financeira mais estável do que a maioria. Por esse motivo é tão difícil encontramos jornalistas com deficiência que são de origem pobre, simplesmente porque as pessoas de classe social mais baixa não tiveram condição de cursar faculdade. Por isso é importante que nós, considerados genericamente como classe média, representemos essa população, mas com consciência dos privilégios que tivemos.
Hoje faço alguns freelances e ministro palestras motivacionais em diversas instituições para as quais sou convidada. Estou me preparando para cursar pós-graduação em jornalismo literário, aqui em São Paulo, capital. Moro com meu marido, o Marcos. Estamos juntos há mais de dez anos e eu sempre digo que ele é meu maior companheiro, o meu grande amor. Durante a minha trajetória profissional, pude contar com o apoio dele e isso fez toda a diferença. Estou muito agradecida por participar deste livro com meu depoimento. Considero-o uma importante contribuição para as pessoas com deficiência e para o próprio jornalismo enquanto área indispensável à construção de uma sociedade mais justa.
LINK original da obra: https://drive.google.com/open?id=0BynodCoWdj6mTDluTDJWV2NvS1U
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
Parabéns, atingimos a burrice máxima
A “baranga” Simone de Beauvoir e a importância de um livro que ensina a conversar com fascistas
A fogueira de Simone de Beauvoir a partir da questão do ENEM mostrou que a burrice se tornou um problema estrutural do Brasil. Se não for enfrentada, não há chance. Hordas e hordas de burros que ocupam espaços institucionais, burros que ocupam bancadas de TV, burros pagos por dinheiro público, burros pagos por dinheiro privado, burros em lugares privilegiados, atacaram a filósofa francesa porque o Exame Nacional de Ensino Médio colocou na prova um trecho de uma de suas obras, O Segundo Sexo, começando pela frase célebre: “Uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. Bastou para os burros levantarem as orelhas e relincharem sua ignorância em volumes constrangedores. Debater com seriedade a burrice nacional é mais urgente do que discutir a crise econômica e o baixo crescimento do país. A burrice está na raiz da crise política mais ampla. A burrice corrompe a vida, a privada e a pública. Dia após dia.
Recapitulando alguns espasmos do mais recente surto de burrice. O verbete de Simone de Beauvoir (1908-1986) na Wikipedia, conforme mostrou uma reportagem da BBC, foi invadido para tachar a escritora de “pedófila” e “nazista”. A Câmara de Vereadores de Campinas, no estado de São Paulo, aprovou uma “moção de repúdio” à filósofa. O deputado Marco Feliciano (PSC-SP), da Bancada da Bíblia, descobriu na frase “uma escolha adrede, ardilosa e discrepante do que se tem decidido sobre o que se deve ensinar aos nossos jovens”. Em sua página no Facebook, o promotor de justiça do município paulista de Sorocaba, Jorge Alberto de Oliveira Marum,chamou Beauvoir de “baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila”. Como o tema da redação do ENEM era “a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, houve gente que estudou em colégios caros afirmando que este era um tema de esquerda, e portanto um sinal inequívoco de uma conspiração ideológica por parte do governo federal. Como sugeriu o crítico de cinema Inácio Araújo em seu blog, se defender que a mulher tenha o direito de andar sem ser perturbada, agredida e chutada é tema de esquerda, isso só pode significar que a direita vai muito mal.
Está cada vez mais difícil fazer humor no Brasil. Como nada do que foi relatado acima é piada, somos submetidos cotidianamente a uma experiência de perversão. Também não tem sido fácil escrever quando não se é humorista, por que o que se pode dizer, seriamente, diante de uma moção de repúdio à Simone de Beauvoir? Mas é preciso tratar com seriedade, porque talvez não exista nada mais sério do que a boçalidade que atravessa o país. Torna-se urgente, prioritário, fazer um esforço coletivo e enfrentar a burrice com o único instrumento capaz de derrotá-la: o pensamento.
Esta é a potência e a generosidade de um livro lançado pela filósofa Marcia Tiburi, escritora e professora universitária. O título vai direto ao ponto, afinal os tempos são graves demais para papinhos de salão: Como conversar com um fascista – reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Record). Nas 194 páginas, Marcia enfrenta as várias faces do cotidiano atual com profundidade, mas de forma acessível a quem não está familiarizado com os conceitos. Faz o mais difícil: escrever simples sem simplificar. É um livro que se pretende para todos, e não para os seus pares. Quem acompanha a trajetória da filósofa conhece a sua coragem. E este é um livro de coragem, já que é tão difícil quanto arriscado escrever sobre o que está em movimento, sem a proteção assegurada pelo distanciamento histórico. Poucos são os intelectuais que se arriscam a sair do conforto de seus feudos para enfrentar o debate público com suas dúvidas. E por isso aqueles que se arriscam de forma honesta, sem ficar arrotando suas certezas e suas credenciais, ou usando-as para massacrar aqueles que já são massacrados, são tão preciosos.
“Eu queria saber por que dialogar é impossível”, conta Marcia Tiburi, sobre a pergunta que a moveu nessa busca. Para enfrentar a ausência do pensamento, a filósofa propõe a resistência pelo diálogo. Este é um esforço de cada um –e de todos. Arriscar-se a deixar o “isolamento em comunidade”, a forma atual da vida social e política, para confrontar o que ela chama de “consumismo da linguagem”. Compreender o confronto atual como um confronto entre direita e esquerda, desenvolvimentistas e ecologistas, governistas e oposicionistas, machistas e feministas é, segundo ela, uma redução. O confronto atual seria mais profundo e também mais dramático: entre os que pensam e os que não pensam.
O exercício que faço, deste parágrafo em diante, é buscar compreender a fogueira em que Simone de Beauvoir foi jogada nos últimos dias, entre outros fatos recentes, a partir das ideias deste livro. Para começar, a seriedade do episódio do ENEM pode ser demonstrada neste trecho tão agudo: “Se levarmos em conta que falar qualquer coisa está muito fácil, que falamos em excesso e falamos coisas desnecessárias, um novo consumismo emerge entre nós, o consumismo da linguagem. O problema é que ele produz, como qualquer consumismo, muito lixo. E o problema de qualquer lixo é que ele não retorna à natureza como se nada tivesse acontecido. Ele altera profundamente nossas vidas em um sentido físico e mental. O que se come, o que se vê, o que se ouve, numa palavra, o que se introjeta, vira corpo, se torna existência”.
Vale perguntar. Num país em que a preocupação com a educação é uma flatulência, em que a não educação é a regra, para onde vai o lixo e que tipo de impacto ele produz na tessitura do cotidiano, nos corações e mentes de quem o consome? O que acontece com a fogueira de Simone de Beauvoir num contexto em que aqueles que a jogaram no fogo possivelmente sequer a leram? Que restos dos discursos vazios sobre a filósofa permanecerão na memória de uma população que não tem seus livros na estante e que tipo de eco produzirão?
Como dimensionar a gravidade de um vereador eleito, pago com dinheiro público para legislar e, portanto, para decidir destinos coletivos, dizer que a escolha da frase de Simone de Beauvoir para uma prova do ENEM é algo “demoníaco”, como afirmou Campos Filho (DEM)? E como enfrentá-la com a seriedade necessária?
Com a palavra, o autor da “moção de repúdio”: “Foram buscar lá Simone de Beauvoir, lá pro ano de mil trocentos e pôco.... (...) A grande maioria é favorável à lei da natureza. Homem é homem. Mulher é mulher. (...) Cuidado com essa pulsão, essa pulsão pode levar à cadeia. O senhor pode passar na frente do caixa eletrônico e ter uma pulsão de vontade de roubar e vai preso. Pode ter uma pulsão de vontade de estuprar e vai preso. Então, tomem cuidado com essa pulsão, ah, hoje de manhã sou menina, agora à noite eu sou homem....”.
O vereador nem sequer sabe em que século Simone de Beauvoir nasceu, viveu e produziu pensamento – “miltrocentos e pôco”. Nem sequer tentou compreender o que a frase citada no ENEM significa. Não é engraçado. É a ruína causando mais ruína. O que interessa é fazer barulho, porque o barulho encobre o vazio de ideias. O que importa é perverter a palavra, usando o que sequer tentou entender para enclausurar o pensamento e reafirmar a certeza em nome de uma suposta “lei da natureza” que jamais existiu. A perversão do fascista é a de acusar o outro de manipulação ideológica quando é ele o manipulador. É acusar o outro de impor um pensamento quando é ele que empreende todo os esforços para barrar qualquer pensamento. É impedir o diálogo denunciando o outro pelo ato que ele próprio cometeu. É nessa repetição de boçalidades que seguem os discursos de outros vereadores, invocando clichês bíblicos, lembrando de Sodoma e Gomorra e Adão e Eva, abusando de Deus.
Para perverter a realidade, o fascista conta com o consumismo da linguagem. Trata-se, como aponta Marcia Tiburi, de um vazio repleto de falas prontas. Não é um vazio silencioso, espaço aberto para buscar o outro, o inusitado, o surpreendente. Mas sim um vazio barulhento, abarrotado de clichês, de frases repetidas e repetitivas, usadas para se proteger do pensamento. Os lugares-comuns, neste caso específico a constante invocação de Deus e de leis bíblicas, são usados como um escudo contra a reflexão. Todo o esforço é empreendido para não existir qualquer chance de pensamento, ainda que um bem pequenino.
Neste vazio, a filósofa acredita que os meios tecnológicos e a mídia desempenham um papel crucial. Repete-se o que é dito na TV, no rádio. Fala-se, muito, sem pensar no que se diz. No gesto do mero “compartilhar” sem ler, tão fácil quanto comprar com um clique pela internet, foge-se do pensamento analítico e crítico, trocando-o pelo vazio consumista da linguagem e da ação repetitiva. É assim que a burrice se multiplica em cliques, propagando-se em rede. O título deste artigo é esperançoso, mas não corresponde à realidade: a burrice não tem limites, ela sempre pode atingir patamares ainda mais extremos.
Episódios semelhantes à “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir ocorriam esporadicamente em rincões afastados, e logo eram ridicularizados. Hoje, acontecem na Câmara de Vereadores de uma das maiores e mais ricas cidades do estado de São Paulo, no sudeste do Brasil, uma cidade que abriga várias universidades, entre elas a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), uma das mais respeitadas do país. E cadê os intelectuais? Rindo dos burros nas cantinas universitárias? Será? Não era de se esperar mais iniciativas de busca do diálogo, de criação de oportunidades para explicar quem é Simone de Beauvoir e refletir sobre sua obra, ou mesmo a ocupação da Câmara, para produzir reação e movimento que permitisse o conhecimento e combatesse a ignorância?
Talvez o polêmico livro Submisssão (Alfaguara), do francês Michel Houellebecq, possa ter alguma ressonância maior por aqui. Nele, só para lembrar, o protagonista é um acadêmico desencantado que se depara com a vitória de um partido islâmico nas eleições da França. Depois de assistir ao desenrolar dos acontecimentos pela TV, já que não se sente motivado a participar de nenhum debate que não seja sobre a sua própria tese acadêmica (ou nem mesmo sobre ela), se choca com o resultado eleitoral. É o protagonista que não protagoniza –ou só protagoniza por omissão (ou submissão). Aos poucos, os novos donos do poder lhe acenam não só com a manutenção dos privilégios, mas com uma considerável ampliação dos privilégios. E ele, afinal, conclui que aderir pode não ser tão ruim assim.
Os burros estão por toda parte e muitos deles estudaram nas melhores escolas e, o pior, muitos ensinam nas melhores escolas. A “moção de repúdio” à Simone de Beauvoir foi aprovada pela Câmara de Campinas por 25 votos a cinco. Assim, os burros são a maioria. É preciso enfrentá-los com pensamento, fazer a resistência pelo diálogo. Ou, como diz Marcia Tiburi: “Sem pensamento não há diálogo possível nem emancipação em nível algum. Se não houver limites para a idiotice, resta isolar-se e estocar alimentos”.
O promotor e professor universitário que reduziu Simone de Beauvoir a “uma baranga”, ao comentar a questão do ENEM em sua página no Facebook, fez o seguinte comentário: “Exame Nacional-Socialista da Doutrinação Sub-Marxista. Aprendam jovens: mulher não nasce mulher, nasce uma baranga francesa que não toma banho, não usa sutiã e não se depila. Só depois é pervertida pelo capitalismo opressor e se torna mulher que toma banho, usa sutiã e se depila”. Depois da repercussão negativa, o que incluiu uma nota de repúdio por parte da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Jorge Alberto de Oliveira Marum apagou os posts e defendeu-se, em outra postagem, alegando que pretendia ter sido irônico: “Ironia, para quem não sabe, é uma figura de linguagem que consiste em afirmar o contrário do que se pensa”. Interprete-se.
“Distorcer é poder” é o título de um dos capítulos do livro em que a filósofa enfrenta a prática amplamente difundida de esvaziar as palavras pela distorção. Como transformar a vítima em culpada, como se faz rotineiramente com as mulheres no falso debate do aborto, por exemplo, ou no tratamento do estupro. Ou distorcer para que aquele que detém os privilégios pareça ser o que têm seus direitos ameaçados: o branco, por exemplo, quando se apresenta como prejudicado pelo sistema de cotas raciais que busca reparar injustiças históricas cometidas contra os negros, ocultando assim que sempre foi o privilegiado; ou quando se invoca um suposto “orgulho heterossexual” na tentativa de mascarar a violência contra os homossexuais, alegando que querem privilégios, quando todos sabem que a heterossexualidade jamais foi contestada ou atacada, nem em sua expressão nem em seus direitos. E também é por essa conversão que os manifestantes de junho de 2013 foram tachados de “vândalos” por parte da mídia e, hoje, uma lei em discussão no Congresso ameaça converter quem protesta em “terrorista”.
A própria “democracia” pode ser vista a partir da prática da distorção, já que há aquela, mais difundida, que é vendida pelo mercado. “De um lado, há uma democracia que deve parecer como realizada, contra outra democracia, que está na ordem do desejo e do sonho e que não teria preço”. O capitalismo sequestra a democracia também como palavra, que passa a ser consumida, junto com outras: felicidade, ética, liberdade, oportunidade, mérito. Palavras que a filósofa chama de “mágicas”, invocadas a serviço do ocultamento da opressão. “Antidemocrático, o capitalismo precisaria ocultar sua única democracia verdadeira: a partilha da miséria e, hoje em dia, cada vez mais, a matabilidade”, afirma Marcia Tiburi.
Quando se invade o verbete de Simone de Beauvoir na Wikipedia é também disso que se trata: distorcer e replicar até virar “verdade”. Aliena-se os fatos de seu contexto histórico para produzir rótulos. Assim, após o ENEM, a filósofa foi tachada de “pedófila” e de “nazista”. Ambas as afirmações já foram retiradas da página pelo responsável, avisando que a manteria fechada até “que o furor acabasse e as pessoas perdessem o interesse em danificar o artigo”. Entre as dezenas de distorções do verbete, segundo a matéria da BBC, um usuário disse que a filósofa havia escrito um "livro de estupro". Outro informou que Beauvoir era uma "antifeminista". Um terceiro disse ainda que ela era "muito conhecida por seu comodismo e pela luta na justiça por uma lei que proibia o trabalho das mulheres fora de casa”.
As distorções servem à reprodutibilidade da burrice. Ao converter a filósofa no que é interpretado como o mais monstruoso – “pedófila” e “nazista” – o objetivo é tornar impossível refletir sobre o que ela escreveu: “uma mulher não nasce mulher, torna-se mulher”. A ampla distorção das palavras serve, de novo, ao vazio do pensamento. Pede-se aos burros que a repliquem à exaustão em cliques histéricos. A linguagem, como escreve Marcia Tiburi, tem sido rebaixada à distribuição da violência – também pelos meios de comunicação e pelas redes sociais. “Vivemos no império da canalhice, onde a burrice, tanto como categoria cognitiva quanto moral, venceu”, afirma. “Ela se transformou no todo do poder.”
Aderir é viver. Esta parece ser a frase deste momento de orgulho da ignorância e exaltação da burrice. Aqui, a pergunta se impõe: “se a linguagem nos tornou seres políticos, a destruição da linguagem nos tornará o quê?”.
Na semana passada, foi divulgado na página da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República um estudo que reuniu pesquisadores de diversas instituições, apresentado como o mais completo já feito no Brasil sobre os efeitos da mudança climática. Refletir seriamente sobre a mudança climática é urgente, mas há muito menos pensamento e ação do que o momento exigiria, apesar de estarmos às vésperas da Conferência do Clima em Paris. Assim, a divulgação de um estudo com as conclusões a que se chegoupoderia ser uma oportunidade excelente para promover participação e diálogo. Mas, entre as tantas previsões que apontaram para um possível drama climático daqui a 25 anos, em 2040 – doenças, calor extremo, falta d’água e de energia etc –, uma foi destacada por diferentes veículos da imprensa: a possível perda de uma área imobiliária avaliada em R$ 109 bilhões no Rio de Janeiro, devido à elevação do nível do mar causada pelo aquecimento global.
Não as perdas humanas, não a corrosão da vida, não o aniquilamento dos mais pobres e dos mais frágeis. Não. O que se destaca é aquilo que se monetariza, é a perda do patrimônio material, no caso imobiliário. O que merece título é o cifrão. O episódio evoca um dos capítulos mais interessantes de Como conversar com um fascista: “O capitalismo é a redução da vida ao plano econômico. (...) O pensamento está minado pela lógica do ‘rendimento’. Viver torna-se uma questão apenas econômica. A economia torna-se uma forma de vida administrada com regras próprias, tais como o consumo, o endividamento, a segurança pela qual se pode pagar. Tudo isso é sistêmico e, ao mesmo tempo, algo histérico. (...) As palavras funcionam como estigmas ou como dogmas que sustentam ideias orientadoras de práticas”. Se a ordem do discurso capitalista é basicamente teológica, é porque ele funciona como uma religião no âmbito das escrituras e das pregações (em geral no púlpito tecnológico da televisão)”. Se depois de tanto calarmos sobre a mudança climática, falarmos dela a partir da lógica monetária, estamos todos (mais) perdidos.
Mas é em outro episódio destes últimos dias que a perversão do Brasil atual se revelou em toda a sua monstruosidade: a Divisão de Homicídios da Polícia Civil do Rio de Janeiro concluiu em inquérito que o policial que matou um menino de dez anos agiu em “legítima defesa”. Eduardo de Jesus brincava na porta da sua casa, numa das favelas do Complexo do Alemão, quando teve a cabeça atingida por um tiro de fuzil. Sua mãe encontrou parte do seu cérebro na sala. O inquérito isentou de qualquer responsabilidade os policiais envolvidos, por estarem supostamente em confronto com narcotraficantes. Eles teriam apenas “errado” o tiro.
Eduardo estava a cinco metros do policial que o matou. Terezinha de Jesus, a mãe do menino, afirma que não havia tiroteio naquele dia. “Eu parti para cima do policial. Gritei que tinha matado meu filho e ele me respondeu, com seu fuzil na minha cabeça, que igual que tinha matado ele poderia também me matar, porque o menino era filho de bandido. Nunca vou esquecer aquilo. Posso estar em qualquer lugar do mundo, que nunca esquecerei a cara daquele policial”. Ao ser informada por jornalistas que a polícia concluiu que seu filho foi morto em legítima defesa, Terezinha disse que sentia vontade “de quebrar tudo”.
Quando a perversão supera tal limite é porque estamos quase no ponto de não retorno. “Não acabaremos com o ódio pregando o amor”, diz Marcia Tiburi. “Mas agindo em nome de um diálogo que não apenas mostre que o ódio é impotente, mas que o torne impotente.”
Em Como conversar com um fascista, a filósofa defende a necessidade de começar a tentar falar de outro modo. O diálogo não como salvação, mas como experimento, como ativismo filosófico para enfrentar a antipolítica. A política, lembra a autora, “é laço amoroso entre pessoas que podem falar e se escutar não porque sejam iguais, mas porque deixaram de lado suas carapaças de ódio e quebraram o muro de cimento onde suas subjetividades estão enterradas”.
Num país de antipolítica e antieducação generalizada como o Brasil é preciso se mover. É urgente aprender a conversar com um fascista, mesmo que pareça impossível. Expor ao outro aquele que não suporta a diferença. Revelar suas contradições e confrontá-lo pelo diálogo é um ato de resistência. Enfrentar a burrice com a única arma que ela teme: o pensamento.
É isso ou não vai adiantar nem estocar alimentos.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dos livros de não ficçãoColuna Prestes - o Avesso da Lenda, A Vida Que Ninguém vê, O Olho da Rua, A Menina Quebrada, Meus Desacontecimentos, e do romance Uma Duas. Site:desacontecimentos.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter:@brumelianebru
Fonte: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/11/09/opinion/1447075142_888033.html
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Postado por
Leandra Migotto Certeza - escritora, jornalista e consultora
às
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