quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Leandra faz parte de Trabalho de Conclusão de Curso de Estudante de Jornalismo da PUC - Campinas





Trecho do Livro de Bárbara Garcia Pedroso - "Sobre limão e linhas tortas" - TCC de Jornalismo da PUC Campinas. 

Leandra Migotto Certeza

Com ‘ossos de vidro’, trabalhou em revistas para o público com deficiência Leandra possui uma alteração genética que causa fragilidade nos ossos, conhecida como “ossos de vidro” ou “ossos de cristal”. Graduada em Produção Editorial, trabalhou como jornalista em revistas segmentadas para o público com deficiência, como Sentidos, Incluir, Gente Especial. Aos 38 anos, atualmente ministra palestras motivacionais, tem dois blogs e deseja cursar pós-graduação em jornalismo literário para tornar-se escritora.  

Uma das reportagens que fiz e mais marcou minha memória foi quando descobri que alguns motoristas de uma empresa de transportes estavam realizando um treinamento de como tratar pessoas com deficiência sem a presença de ninguém nessa condição. Vi que estavam inventando tudo da cabeça deles, sem respeitar norma alguma. Descobri isso através de alguns contatos e avisei muitas pessoas de diversas instituições e organizações representativas sobre a situação. Decidimos aparecer no local do treinamento de surpresa e exigimos acompanhar tudo o que estava sendo feito. Fui com a equipe da revista em que trabalhava na época, e fizemos uma grande reportagem crítica. A matéria foi publicada, mas por conta da repercussão um tanto negativa que a abordagem alcançou e por conta de a revista não possuir este tipo de linha editorial, fui mandada embora. Por isso prefiro não revelar o nome da revista, mas foi uma experiência muito importante por me trazer à tona os problemas relativos ao transporte público para as pessoas com algum tipo de deficiência. 

Eu tenho uma alteração genética chamada osteogenesis imperfecta, conhecida como “ossos de vidro” ou “ossos de cristal”, que causa fragilidade nos ossos. Bem por isso, gera algumas alterações no corpo, como, por exemplo, a baixa estatura e formato diferente dos membros e tronco. Meus pais, Nelson Certeza e Cristina Esteves Migotto Certeza, descobriram que eu tinha esta alteração genética quando minha mãe ainda estava grávida, mas não sabiam ao certo o diagnóstico, o que só apareceu após o nascimento. Por causa da fragilidade óssea, é comum que os fetos nessa condição sofram muitas fraturas dentro do útero. E elas não param por ai, nos acompanham ao longo da vida. Tive muitas fraturas espontâneas, principalmente quando criança. Minha mãe me contou que uma vez isso aconteceu enquanto ela trocava minha frauda. Meu quadro físico só começou a estagnar mais ou menos quando eu tinha 14 anos. 

Em pessoas com osteogenesis, é comum que a condição motora melhore um pouco no período da adolescência. Durante o ensino fundamental, minha mãe teve dificuldade de me matricular em um colégio regular porque era difícil encontrar escolas que aceitassem crianças com deficiência. Então precisei estudar durante dois anos em uma sala específica para pessoas nessa condição em um colégio tradicional em São Paulo, o Rodrigues Alves, localizado na Avenida Paulista. A sala especial era vinculada à AACD, a Associação de Apoio à Criança Deficiente. Foi uma experiência muito traumática, horrível. Nós não tínhamos contato com os outros alunos e entrávamos pela porta dos fundos, um absurdo. Aquele era um ambiente de segregação dentro da escola. A Direção realmente juntava todos os alunos com deficiência e os jogava em uma turma separada. Na época isso já era um avanço, pois pelo menos havia um espaço para essas pessoas. Como não me adaptei ao local, minha mãe me tirou de lá e passei a frequentar uma escola particular regular, em que eu era a única aluna com deficiência. 

No ensino médio também tive colegas de turma que carregavam alguma deficiência. Nessa fase, em 1993 ou 1994, lembro-me de um menino com um tipo de paralisia cerebral que tinha bastante dificuldade para falar. Além dele, um garoto surdo também frequentava o colégio. Acho que a presença de estudantes nessa condição é extremamente importante para que os outros colegas aprendam desde pequenos a conviver com as diferenças. Tive à disposição um bom tratamento. Desde muito pequena, comecei a fazer fisioterapia, hidroterapia, natação em instituições como a AACD e outras clínicas particulares. 

Sempre soube que era diferente, desde pequena, mas ao mesmo tempo, queria estar no mundo de forma igual. Gostava muito de brincar com bonecas, conversava com elas e me enxergava naqueles corpos frágeis. Aos cinco anos brincava com demais crianças no chão, na areia e sempre arrastando a bundinha para superar distâncias. Foi nessa época que meu irmão nasceu, o Daniel Migotto Certeza, que não possui deficiência. Nós dois sempre cultivamos um bom relacionamento. Comecei a andar de fato com sete anos com ajuda de duas muletas canadenses. Foi assim até os oito anos, depois tive uma queda e fiquei com muito medo de andar. Por isso comecei a utilizar um carrinho de bebê. Passou a ser uma situação difícil depois de alguns anos, porque eu já estava na adolescência, precisava daquele carrinho mais por uma questão psicológica do que física. Eu não queria usar cadeira de rodas porque na época ela representava limitação, uma imagem muito pesada e estigmatizada. Ficava insegura, por isso usava o carrinho. 

Além das dificuldades de locomoção, sempre tive um corpo muito menor do que o das meninas na minha idade e sofria um pouco com isso. Utilizei o carrinho até os 14 anos, quando retomei a hidro e fisioterapias. Aí consegui vivenciar uma fase boa, comecei a andar bem com as muletas novamente. Estava na época do cursinho e tinha bastante autonomia no colégio. Até dava uma volta de um quarteirão para o outro, atravessava a rua, carregava a mochila nas costas. No fundo tinha bastante medo de cair e me machucar, mas a vontade sempre foi maior do que tudo, e fui em frente. Meu interesse pelo jornalismo foi se revelando aos poucos, mas desde muito nova gostava de escrever histórias. Tinha nove anos quando produzi meu primeiro poema, por exemplo. Na escola eu adorava língua portuguesa e me destacava nas disciplinas de Humanas. Em compensação, era péssima em Exatas. Costumo dizer, com bom humor, que não sei contar além de dois mais dois. Porém, modéstia à parte, minhas redações eram ótimas e eu tinha bastante facilidade em me comunicar. Gostava de fazer novas amizades, conversar muito com todo tipo de pessoa. 




Comecei a graduação em Produção Editorial, na Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo, no ano de 1996, aos 21 anos. Nessa fase já pensava em investir na carreira de jornalista e logo no segundo ano da faculdade publiquei minha primeira reportagem, na Revista Gente Especial. Procurei a redação da revista por iniciativa própria. Em todos os lugares em que já trabalhei, não entrei por conta de indicações, mas porque eu ia até os locais, deixava meus currículos à disposição e perguntava, na maior cara de pau, se existiam vagas disponíveis. A Revista Sentidos foi uma das que trabalhei por mais tempo e com a qual estive envolvida em sua criação. Fazia muitas coberturas de eventos. 

Nessas ocasiões fazia um cadastro prévio nas assessorias de imprensa sem avisar que tinha uma deficiência. Fazia isso de propósito porque queria ver a reação das pessoas ao encontrar uma jornalista na minha condição. Quando eu entrava nesses locais, muitas das pessoas diziam: “Cadê a jornalista que falou que viria?” Quando eu respondia que eu era a jornalista, muitas pessoas ficavam surpresas. Apesar de elas estarem acostumadas a tratar do assunto, na maioria das vezes era um discurso sobre o outro, construído de uma forma assistencialista, estigmatizada e até piegas. Era o discurso de quem não tem deficiência e vê o outro em condição de suposta fragilidade, de desvantagem. Por isso considero tão importante o lema do movimento das pessoas com deficiência a partir da década de 1980, conhecido como “Nada sobre nós sem nós”. Essa frase simples traduz uma necessidade absoluta de qualquer movimento social ou organização que lute por igualdade de oportunidades: a de se garantir representatividade.   

Sempre me interessei por reportagens com caráter social, que problematizassem as dificuldades das minorias, das populações que sofrem com preconceito e discriminação. Negros, mulheres, comunidade LGBT, pessoas de baixa renda ou com deficiência. Acho que essa busca por denunciar as desigualdades está no meu sangue e permanecerá sempre comigo. Ainda bem que não vivi na época da ditadura, porque se assim o fosse, certamente sofreria com a repressão. Por conta dessa visão social e engajada que tenho vida, acredito que nunca deixarei de ser jornalista, apesar de hoje ter planos de me tornar escritora e cursar pós- graduação em jornalismo literário. Penso em partir para essa área porque tenho necessidade de desenvolver minha escrita de uma forma mais literária. Quero escrever romances, crônicas, ensaios, que são os tipos de texto dos quais eu mais gosto. 
Acho que nunca fui muito atrás de colaborar com jornais impressos justamente porque prefiro de um tipo de escrita mais demorada, com mais tempo para refinamento da linguagem. Ficava apreensiva com o ritmo acelerado das publicações diárias, talvez por isso tenha me focado na produção de revistas. 

Uma das reportagens das quais recordo de ter me emocionado foi uma vez em que fui a uma instituição, não me recordo o nome, que era, na verdade, uma espécie de abrigo para pessoas com AIDS, transexuais, travestis e também com deficiência. Um lugar bastante pobre, que não dispunha de nenhum recurso. Aquelas pessoas ficavam jogadas à sua condição. Elas me trataram com muito carinho e demonstraram que necessitavam de aten- ção. O maior desejo delas naquele momento era o de contar suas histórias para mim. Eles ficaram muito felizes por estarmos retratando a realidade em que viviam. Gostei muito do texto que escrevi, com um viés poético. Foi uma experiência que me marcou muito, principalmente pelo sentimento de impotência que tive ao ver o sofrimento deles, porque eu gostaria de fazer mais do que simplesmente contar aquela história. Queria mesmo é que esse tipo de instituição não precisasse existir, e que essas pessoas estivessem de fato inseridas na sociedade. 

Em relação aos deficientes que trabalham como jornalistas, eu considero importante reforçar que grande parte da mídia ainda se prende a padrões estéticos de uma maneira forte e, por conta disso, muita gente com deficiência tem dificuldade de se inserir no mercado. Aliás, isso não ocorre apenas com as deficiências, mas ainda hoje vemos pouquíssimos jornalistas negros, orientais, de etnias diversas ou com qualquer outra característica que demonstre diferença ocupando colocações de destaque, exercendo função de apresentadores, mostrando seus rostos e corpos. Até pouco tempo atrás, muitas emissoras de televisão não contratavam pessoas que usassem óculos, para se ter uma ideia. Nos dias atuais, em que temos uma cultura muito visual, a aparência se tornou fundamental, às vezes mais do que a qualificação profissional, infelizmente. Por isso é importante que questionemos, com os instrumentos que temos à disposição, esse tipo de comportamento. 

Alguns dos instrumentos que utilizo para problematizar essa e muitas outras questões são meus dois blogs, o Caleidoscópio e o Fantasias Caleidoscópicas. O primeiro, eu uso para contar sobre tudo, meu dia a dia, as entrevistas que tenho feito, alguns textos literários e outros conteúdos de caráter jornalístico. No momento em que estava concedendo a entrevista para este livro, meu marido Marcos, que tem também uma deficiência e utiliza cadeira de rodas, estava filmando a conversa para que eu postasse no blog. O outro site se destina a tratar da sexualidade da pessoa com deficiência, um tema que me é muito caro. Ministro palestras sobre o assunto e já produzi um ensaio fotográfico sensual junto com a fotógrafa e amiga Vera Albuquerque. Além de posar para as fotos, eu acompanhei a Vera enquanto ela fotografou pessoas de diversas etnias, jovens, idosos, gestantes, obesas, casais homo e heterossexuais, enfim, todo tipo de gente. Tínhamos o intuito de questionar, como explico no blog: “o padrão de beleza - instituído pelos meios de comunicação e pela moral dominante – ressaltando a possibilidade de democratização do prazer, de igualdade de direitos sexuais, uma disposi- ção das mentes e dos corações contra os juízos prévios e os preconceitos” 

Por ter trabalhado na maior parte do tempo em revistas pequenas, com número reduzido de funcionários, não utilizei a lei de cotas para pessoas com deficiência. Uma das poucas exceções foi quando consegui uma vaga para ser telefonista na Editora Abril. Decidi aceitar o emprego porque tinha a esperança de ser transferida para a área editorial depois de um tempo, mas apesar das minhas muitas solicitações, isso não ocorreu. Mesmo eu formada desde 1999 e com importante experiência como repórter de revista, não tive oportunidade de evoluir dentro da empresa porque estava lá apenas cumprindo cota. Larguei o emprego por esse motivo, mas considero a lei de cotas um importante instrumento de inclusão, apesar de considerar que precisa de aprimoramentos. 

Sempre tive paixão pela reportagem e orgulho em ser jornalista. Durante toda a carreira, gostava de cumprir qualquer pauta que me pedissem, exceto nas raras vezes em que tive que fazer matérias pagas, ou seja, somente porque algum anunciante encomendava. Não tinha muita escapatória, apesar de não concordar com a prática, eu precisava trabalhar para me sustentar. Então, acabava fazendo. Em outra ocasião, fui visitar uma escola que tinha alguma acessibilidade, mas também várias inadequações. Não que estivesse  maquiando algo, mas precisei olhar para as qualidades da escola, valorizar o quadro de professores, ao invés de mostrar os problemas nos padrões de acessibilidade. Esse tipo de situação me causou um pouco de frustação com a profissão, mas nunca cheguei ao ponto de pensar em desistir.

As revistas em que trabalhei foram locais em que cultivei muitas alegrias, obtive inúmeras conquistas, pude conviver com várias pessoas pelas quais tinha admiração. Alguém que tive a honra de entrevistar foi a Dorina Nowill, já falecida. Essa senhora extremamente inteligente, simpática e cativante foi a principal idealizadora da Fundação Dorina Nowill para Cegos, uma das primeiras instituições do país a produzir livros em Braille e ministrar aulas e cursos destinados às pessoas com cegueira ou restrições visuais. Vou admirá-la para sempre, pelo legado importante que deixou. 

Algo importante que preciso salientar é que, infelizmente, a maioria das 45 milhões de pessoas com deficiência no Brasil ainda vivem em situação de pobreza, sem nenhum recurso garantido por parte do Estado. Muitas ainda estão trancadas dentro de suas casas, presas em uma cama, sem possibilidade de conquistar seu direito ao trabalho, marginalizadas. E isso está acontecendo agora, no momento em que estamos falando. Graças à minha família, tive condições de dispor de um bom tratamento, de fazer faculdade, conquistar autonomia. A maior parte dos jornalistas com deficiência também compartilha desta condição financeira mais estável do que a maioria. Por esse motivo é tão difícil encontramos jornalistas com deficiência que são de origem pobre, simplesmente porque as pessoas de classe social mais baixa não tiveram condição de cursar faculdade. Por isso é importante que nós, considerados genericamente como classe média, representemos essa população, mas com consciência dos privilégios que tivemos. 



Hoje faço alguns freelances e ministro palestras motivacionais em diversas instituições para as quais sou convidada. Estou me preparando para cursar pós-graduação em jornalismo literário, aqui em São Paulo, capital. Moro com meu marido, o Marcos. Estamos juntos há mais de dez anos e eu sempre digo que ele é meu maior companheiro, o meu grande amor. Durante a minha trajetória profissional, pude contar com o apoio dele e isso fez toda a diferença. Estou muito agradecida por participar deste livro com meu depoimento. Considero-o uma importante contribuição para as pessoas com deficiência e para o próprio jornalismo enquanto área indispensável à construção de uma sociedade mais justa.

LINK original da obra: https://drive.google.com/open?id=0BynodCoWdj6mTDluTDJWV2NvS1U




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