Descrição da imagem: foto em preto e branco (fotógrafa Vera Albuquerque) de Leandra em pé de lado. Ela está apoiada em uma muleta, e com a outra mão na cintura. O olhar - direto para a câmera, mas de lado - é sedutor. O sorriso maroto no rosto é provacativo. A roupa de renda preta sensual e transparente, completam a 'produção' .
No Dia Nacional de Luta das Pessoas com deficiência, muitas
mulheres com deficiência ainda vivem isoladas em instituições, sofrem assédio moral, e são violentadas e
estupradas?
Eu falo
Para quem?
Ou com quem?
Falo?
Não! Nunca falei.
O que fiz foi reproduzir
o que falaram.
Ou não falaram.
E quando falaram não
foram para mim.
Talvez tenha sido para
quem pensaram que eu era.
E agora eu mesma descobri
que na verdade nunca
FALEI.
Por isso ESCREVO
Nem que seja só para
ouvir o que eu mesma tenha para falar sobre esse lugar de fala da mulher que
deveria ter morrido em 7 dias e vingou!
Hoje eu VINGO quem nunca
pensou que eu pudesse FALAR!
O meu lugar de fala é o
de uma mulher com deficiência física, branca, heterossexual, de classe média,
graduada em Comunicação, que nasceu em 1977, na cidade de São Paulo. Posso
dizer que fui e ainda sou privilegiada em vários aspectos. Mas também passei (e ainda enfrento) situações terríveis de
infantilização, capacitismo (preconceito contra quem tem deficiência) e
discriminações, tanto por parte da família e amigos, como na escola,
universidade, trabalho e sociedade em geral.
E em diversos momentos da
vida, eu fui silenciada, por mim mesma (por internalizar estigmas) e pelos os
outros! Mas, hoje eu consigo e posso falar, mesmo que ainda seja bem arriscado… Ainda mais nestes tempos
tão reacionários em que vivemos! Como jornalista e escritora, a minha voz é um
alerta para a sociedade sobre a realidade das mulheres com deficiência em nosso
país.
Você sabia que segundo o
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), uma a cada quatro mulheres
brasileiras vivem com alguma deficiência, seja: física, auditiva, visual,
intelectual, múltipla (união de uma ou mais deficiências), mental, ou
sudocegueira (deficiência única em que a pessoa possui cegueira e surdez
juntas)? Eu me pergunto onde estão estas mulheres hoje? Elas vivem com
autonomia? Quando elas começaram a falar? Ou outras pessoas ainda falam por
elas? Elas são ouvidas? Seus direitos humanos são respeitados? São
protagonistas de suas histórias? Infelizmente, para as mulheres com deficiência
que frequentam ou ficam internas em instituições, o seu lugar de fala ainda não
é ouvido. Foi o que eu constatei ao ler a obra de Rosana Glat: “Somos Iguais a
Vocês”, escrita em 1989.
Os depoimentos de
mulheres com deficiência intelectual e mental, relatados no livro, são um
retrato fiel da marginalização, discriminação e violência psicológica, que é
ainda recorrente hoje. Em 2016, segundo o então Ministério do Desenvolvimento Social, havia 5.078 crianças
e 5.037 adultos com deficiência vivendo em instituições no Brasil. E este
número provavelmente não reflete o número real, pois os dados são obtidos por
meio de questionário preenchido pelas próprias instituições, sem posterior
checagem ou supervisão por autoridade competente.
O mais terrível é que esta parcela da população
ainda vive isolada da sociedade e tem pouco mais do que suas necessidades mais
básicas atendidas, como alimentação e higiene. A maioria não possui qualquer
controle relevante sobre suas vidas, são limitadas pelo cronograma de
atividades das instituições e pela vontade dos funcionários. Desde 2006, eu
conheço uma grande instituição na cidade de São Paulo que está servindo comida
fria e em pouca quantidade aos internos, além de deixá-los o dia todo
literalmente olhando para o teto sem fazer nada!
Em pleno
século 21, muitas pessoas com deficiência ainda ficam confinadas em suas camas
ou quartos por longos períodos ou, em alguns casos, o dia inteiro. Elas não podem fazer escolhas simples do dia a
dia que a maioria das pessoas faz sem sequer
perceber, como quando e o que comer; com quem se relacionar; qual programa de
televisão assistir; ou se vai sair e participar de uma atividade de lazer. Não
tem acesso à reabilitação física e psicológica, e na maioria das vezes, nunca
saem da instituição para ter contato com a sociedade.
Você sabe que hoje ainda existem muitas mulheres com
deficiência que vivem em grandes alas ou quartos com camas colocadas lado a
lado, sem uma cortina ou qualquer outra separação? A maioria dos adultos e
crianças com deficiência institucionalizadas possui poucos itens pessoais, ou
nenhum, e, em alguns casos, são forçados a compartilhar roupas – em um caso até
mesmo escovas de dentes – com outras pessoas da instituição?
E você sabe que funcionários de diversas instituições não
fornecem absorventes higiênicos às mulheres durante o período menstrual, e sim
fraldas? E outros não auxiliavam alguns adultos a se vestirem totalmente, de
modo eles usavam apenas camisas ou blusas e fraldas? Os abusos, violências
sexuais e estupros também infelizmente são recorrentes dentro destas
instituições. E estas mulheres sequer conseguem gritar, pois são silenciadas
pelos funcionários e familiares!
E mesmo que conseguissem denunciar: você sabia que a Lei Maria da Penha só incluiu as mulheres com
deficiência 13 anos após a sua existência? Um gigantesco atraso que
inviabilizou a possibilidade de denúncias, agravando ainda mais a situação de
violência no Brasil. Pois, o Atlas da
Violência 2018, desenvolvido pelo IPEA, indicou que dos 22.918 casos de estupro
apurados em 2016, 10,3% das vítimas tinham alguma deficiência. Desse total,
31,1% tinham deficiência intelectual e 29,6% possuíam transtorno mental.
Outro dado chocante é que,
entre os casos de estupro coletivo, 12,2% são contra vítimas que têm algum tipo
de deficiência. E de 649 pessoas com deficiência mental estupradas, 275 foram
violentadas mais de uma vez. Exatamente como ocorreu no Rio Grande do Sul na
noite de 7 de setembro deste ano, no município de Santa Maria.
A vítima foi uma menina de 5
anos com paralisia cerebral, que morreu após ter sido estuprada pelo filho de
seu padrasto, de 18 anos. Roberta Trevisan, da Delegacia de Polícia de Proteção
à Criança e ao Adolescente, disse que a menina era extremamente vulnerável
devido à paralisia cerebral, não caminhava, e sempre precisava de cuidados. O
estupro ocorreu dentro do berço da menina, durante a madrugada e, de acordo com
o culpado, todos estavam em casa, dormindo. Para delegada é inacreditável que
ninguém tenha visto, ainda mais com a gravidade dos ferimentos.
Hoje a Lei n° 13.836, sancionada em junho de 2019 prevê que no registro policial deve constar se a
violência sofrida resultou em sequela, deixando a vítima com algum tipo de
deficiência ou com agravamento de deficiência preexistente. Porém, as mulheres
trans com deficiência, infelizmente, foram totalmente excluídas desta lei. Mais
uma vez um caso típico de exclusão dentro da própria ‘inclusão’. Eu me questiono: quando absolutamente TODAS
as mulheres com deficiência farão parte das políticas públicas e legislações?
A Convenção sobre os Direitos
das Pessoas com Deficiência é o único Tratado Internacional de Direitos Humanos
com status de Emenda Constitucional desde 2008 e, ainda assim, é absurdamente
desprezado.
A proteção de mulheres e meninas com deficiência também está cristalina desde o
Preâmbulo, como se vê abaixo:
“q) Reconhecendo que mulheres e meninas com deficiência estão
freqüentemente expostas a maiores riscos, tanto no lar como fora dele, de
sofrer violência, lesões ou abuso, descaso ou tratamento negligente,
maus-tratos ou exploração,”
Não resta a menor dúvida de que as pessoas com deficiência no
Brasil possuem uma ampla legislação, a qual é, diariamente, descumprida. Logo,
não é por falta de leis que a mulher com deficiência é maltratada, espezinhada.
Além dos terríveis
índices de violência, você sabia que os casos de assédio no ambiente de
trabalho sofridos por pessoas com deficiência ainda são totalmente
invisibilizados na sociedade? Em agosto deste ano, o Ministério Público do Trabalho moveu ação civil
pública contra as Lojas Americanas S.A., em Barueri (São Paulo), após receber
vários relatos de discriminação e humilhações diárias. Segundo os
ex-funcionários, os casos de assédio moral teriam ocorrido entre 2016 e 2018.
Porém, funcionários com deficiência foram demitidos em retaliação, na busca por
acionar a procuradoria.
Funcionários foram colocados em funções incompatíveis com
o contrato e ao relatar dificuldades em realizar as tarefas eram chamados de
preguiçosos. Em um dos casos, um trabalhador com problemas nas pernas relata
ter sido designado a descer da plataforma de descarga sem a ajuda de escadas.
Outro, com deficiência auditiva, era frequentemente questionado se era surdo,
como forma de chacota. Os insultos vinham de superiores e até dos próprios
colegas.
Segundo a procuradora do Trabalho Damaris Salvioni, os
trabalhadores com deficiência eram frequentemente humilhados, desrespeitados
por gritos, xingamentos, chacotas, gesticulações vexatórias, constrangimentos,
ironias, inclusive em público, e discriminados por meio de rebaixamento de
funções.
A deficiência é um
fenômeno histórico que passou por transformações ao longo do tempo e em
diferentes culturas. Da ideia de uma atribuição divina ou demoníaca, passando
pela concepção de que se tratava de uma anomalia orgânica. Hoje, a concepção
vigente de deficiência é vista como um fenômeno que ocorre na relação do
indivíduo com o meio físico, social e político. Portanto, toda a sociedade é responsável, tanto pelo abandono e invisibilidade de
grande parte das pessoas com deficiência, assim como por sua autonomia e
independência. Daí a gigantesca importância de se FALAR e ESCREVER sobre
como vivem as mulheres com deficiência hoje! Por que juntas, sempre somos mais
fortes!
Para se
aprofundar sobre os temas, sugiro algumas leituras:
Mais informações
sobre institucionalização das pessoas com deficiência:
O relatório da Human Rights Watch, realizado entre
2016 e 2018, documenta uma série de abusos (incluindo sexuais) contra crianças
e adultos com deficiência em instituições de acolhimento no Brasil.
Os dados do Atlas
da Violência 2018 estão aqui:
Este artigo tem referências de pesquisas importantes sobre
violência:
A Convenção da
ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência:
Para saber mais
sobre o Lugar de Fala das Mulheres com Deficiência leiam:
Sobre o livro de
Rosana Glat: “Somos Iguais a Vocês”:
https://azmina.com.br/colunas/dia-nacional-de-luta-das-pessoas-com-deficiencia/
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