Por Leandra Migotto Certeza*
Quem sou?
Mistério doce
Forma diferente por ser igual
Humana,
Calma,
Intensa,
Densa,
Ardente
Exatamente como deve ser
Se um dia aparecerei?
Não sei...
Sigo o destino de não saber se existe
destino
Vivo cada minuto como se fosse o
último porque ele é
Carrego comigo todas as dores e
delícias de ser mulher
Imperfeita / perfeita
Por simplesmente ser
Sem medo de existir
Certo dia, eu tive a felicidade de ouvir,
que quando fazemos alguma coisa é porque simplesmente precisamos fazer. O ato
de compor uma música, pintar um quadro, tocar um instrumento, esculpir uma
peça, escrever um poema ou um singelo texto, assim como outras inúmeras ações
podem ser considerados ‘divinos dons artísticos’ ou não. Porém, a beleza está
em se fazer por fazer. Pelo simples fato de exprimir uma necessidade interior
que transcende a qualquer norma, conceito ou objetivo pré estabelecido.
Por isso eu escrevo! Escrevo pela paz
que sinto ao colocar no papel todos os sentimentos e experiências vividas até
agora. Sem se ‘pré ocupar’ com o que as pessoas irão pensar; com o que
realmente se tornará um dia o meu caderno, e com o que o meu espírito tanto
sonhara. Mas será que serei lida?
A escritora Virginia Woolf
brilhantemente descreveu a saga das mulheres do século XVI, não apenas para
existir e sobreviver, mas principalmente para viver e se sentir realizada, como
ser humano, e não propriedade e/ou ‘saco de pancada’, literalmente. Eu constato
que, infelizmente, pouca coisa ou quase nada mudou desde aquela época até hoje.
Atualmente, eu ainda luto para
sobreviver em uma sociedade que valoriza a força física como a principal e mais
rentável forma de trabalhar; e consequentemente descarta a maioria daquelas
mulheres que possuem alguma deficiência, como eu. Não tenho um “Teto Todo Meu”,
mas resisto e busco a cada novo amanhecer, uma luz para continuar seguindo o
que sinto ânsia em fazer: ESCREVER minhas histórias...
Histórias
Tenho que contá-las
Vim pela palavra e para ela servirei
As palavras são meu ar
Tomei coragem de encontrar a minha
alma refletida...
Nas palavras, nas histórias, nas
pessoas...
Como conseguiremos viver em dois
mundos?
Mas
em que mundo eu vivo? Totalmente excludente ainda! Não sou apenas eu quem
afirmo isso, mas Kenny Fries, autor americano premiado com uma bolsa de estudos
Arts and Literary Arts do Rockefeller
Foundation Bellagio em 2019. As autoras com deficiência, Adrienne Rich e Lucy Grealy, fazem
parte do livro: Staring Back: The
Disability Experience de Inside Out (Olhando para trás: a experiência de deficiência de dentro para fora),
editado por Kenny e publicado pela Plume. É a primeira antologia multi-gênero
de escritores e escritoras com deficiência do Planeta!
Escritoras brasileiras com deficiência. Você sabe que existem?
Escritoras brasileiras com deficiência. Você sabe que existem?
No
Brasil eu arrisco a dizer que a situação de abandono entre as escritoras com
deficiência ainda é bem pior! Vejamos… Quem de vocês conhece a escritora com
deficiência visual Bartyra Soares que tomou posse na Academia Pernambucana de
Letras em 2015? O primeiro livro de Bartyra, “Enigma” foi publicado em 1976,
seguido por “Sombras consolidadas”, em 1980. A autora publicou, posteriormente,
outras nove obras. Bartyra também tem poemas publicados em diversas antologias,
revistas e jornais. Como contista e poeta, já recebeu quinze prêmios
literários!
Creio
que vocês também não saibam que outra autora com deficiência visual, Lídia
Maria Cardia lançou seu primeiro livro de poesias: “Apenas Um Minuto”, durante
a abertura da 36ª Semana Literária & Feira do Livro do SESC SP em 2017?
Sobre seu livro, ela diz que os poemas são baseados em personagens comuns à
nossa sociedade: “nem todos os
personagens sou eu, muitas vezes eu narro histórias sobre as mulheres, o que
elas vivem, o que passam, os mendigos, as crianças, mãe solteira, os namorados”.
E seu processo criativo não espera hora nem lugar: “escrevo no ônibus rascunhando, nas madrugadas, se eu acordo com aquela
intenção, levanto escrevendo e vejo o sol nascer”.
Outra importante jornalista que
escreveu um livro e fez história, foi a saudosa Ana Beatriz Pierre Paiva. Junto com outros seis jovens com
deficiência intelectual, publicou em 2011 a obra: “Mude o Seu Falar Que Eu Mudo
Meu Ouvir”? Foi o primeiro livro sobre acessibilidade atitudinal escrito por
jovens com deficiência intelectual no Brasil. Um grande marco lançado na sede
da ONU - Organização das Nações Unidas, em Nova York, em versões em inglês e
português.
Já
a escritora e poetisa surda Emiliana Faria Rosa, doutora em linguística, mestra
em educação e professora de Língua Brasileira de Sinais na UFRGS - Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, também contou sobre a experiência de escrever o
seu livro de poesias "Borboletas Poéticas", em 2018 no Programa
Especial da TV Brasil. Ela ficou surda aos onze anos, e assim se define: “sobre ser surda? Sim, sou surda. Bilíngue,
ou seja, tenho duas línguas: a Libras (Língua Brasileira de Sinais) e o
português. Sortuda, eu… Duas línguas para ser, viver, criar. O Português é a
minha língua de escrita; a libras é minha língua de liberdade. E borboletas?
Também. Eu aprendi a gostar quando percebi que sou, somos borboletas…” O
livro de Emiliana apresenta três fases, que segundo a autora refletem o
amadurecimento e florescimento poético; e cada pétala do casulo cai junto a uma
nova fase de um novo poema.
E
quem de vocês também sabe que a Biblioteca Braille Dorina Nowill, em Taguatinga
(DF), lançou a primeira Academia Inclusiva de Autores Brasilienses? Ela foi
fundada com o intuito de promover a obra literária de pessoas com deficiência
visual no Brasil e no mundo. E as autoras lançaram em 2010 a obra: “Revelando
Autores em Braille”, que traz um compilado de histórias e poemas escritos de
forma inclusiva.
Kátia
Iuriko Ito e Luciana Scotti (escritoras com deficiência física), Joana
Belarmino (escritora com cegueira) são outras renomadas escritoras brasileiras
que provavelmente você não sabia que existiam! Por qual motivo? Por que as
mulheres com deficiência ainda são invisíveis aos olhos da sociedade, e as
escritoras mais ainda!
Dentro
dos próprios cursos, grupos ou clubes de escrita, elas são excluídas, por não
conseguirem ter acesso aos locais das reuniões, (que em sua maioria possuem
escadas), não têm intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (para pessoas com
surdez e/ou com deficiência auditiva), ou escritos e impressos em Braille ou
com áudio-descrição (para pessoas com
cegueira e/ou deficiência visual), por exemplo, entre outros recursos de
acessibilidade comunicacional e atitudinal.
Quando
eu conheci o Clube de Escrita para
Mulheres na internet, encontrei uma oportunidade de compartilhar meus
tesouros literários com outras escritoras. E por isso, me inscrevi no edital da
Coletiva Mamoreira, uma rede formada
por um grupo de mulheres que se uniram com o objetivo de valorizar, promover e
intermediar a literatura criada por escritoras por meio da preparação, da
revisão e da elaboração de projetos gráficos.
Porém,
eu fui a única escritora com deficiência física em uma seleção de mais de 15
autoras. Sendo que nenhuma escritora com deficiência visual, auditiva,
intelectual ou múltipla sequer se inscreveu. Sinal de que existe um grande
caminho a ser percorrido para conectar o mercado editorial, as editoras
independentes com as autoras com e sem deficiência e suas produções literárias.
Um caminho para as escritoras com deficiência serem ouvidas!
Oficinas de Escrita Inclusivas podem ser um caminho interessante para promover cada vez mais a aproximação das escritoras, os centros culturais e as editoras. Falar sobre nossas Memórias de forma livre foi o que um grupo de pessoas com e sem deficiência fizeram dia 13 de abril no Centro de Cultura do Butantã em SP.
Naquela manhã foi possível exercitar o LUGAR DE FALA e compartilhar lembranças, seja por meio de textos escritos ou contados em Língua Portuguesa ou Língua Brasileira de Sinais. A atividade mediada por mim aconteceu através de dinâmicas de sensações, onde quem participou teve vendas nos olhos para sentir objetos e frutas; além de ouvir músicas e ver imagens.
O
objetivo da atividade inclusiva foi desenvolver a criatividade e alguns dos potenciais de relatos
verbais, pictórios e/ou escritos dos participantes da oficina por meio de
leituras de textos curtos como exemplo para demonstrar certos aspectos
das técnicas de “Cena” e “Memórias”, existentes nas Narrativas Biográficas do
gênero do Jornalismo Literário. A oficina terá intérprete de LIBRAS.
Descrição da imagem: eu estou sentada em minha cadeira de rodas na frente de uma mesa com livros e um telão onde está escrito: Histórias de Vida - Narrativas Autobiográficas - Textos de Memórias. Atrás de mim está o intérprete de LIBRAS. Estamos em uma sala com janelas ao fundo e paredes branca.
Descrição da imagem: eu estou sentada em minha cadeira de rodas na frente de uma mesa com livros e um telão onde está escrito: Histórias de Vida - Narrativas Autobiográficas - Textos de Memórias. Atrás de mim está o intérprete de LIBRAS. Estamos em uma sala com janelas ao fundo e paredes branca.
Um novo olhar da sociedade sobre as escritoras com deficiência.
Para Graziela C. Drago, (a Zeligara),
escritora e revisora de textos da Coletiva Mamoeira: “são muitos os fatores que dificultam a participação das pessoas com
deficiência nos espaços culturais, dificuldades causadas principalmente pelo
descaso com a sua condição específica e a falta de acesso físico e
comunicacional. E nos casos de deficiência intelectual, embora a estrutura
física não seja tão impeditiva, falta formação especializada para o trabalho
comunicativo e afetivo necessário”.
A escritora comentou que antes de me
conhecer não havia tido contato com escritoras com deficiência. Para ela ter
trabalhado comigo foi essencial para que tivesse mais interesse para esta
questão, valorizando as produções em LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais. Como
por exemplo, da escritora que conheceu durante o projeto da Coletiva Mamoeira,
a poeta Gabriela Grigolom Silva, surda que compõe poemas em LIBRAS e em Língua
Portuguesa.
“Assim como o lugar das mulheres na literatura seja importante em razão do
padrão estabelecido ser o masculino, também para as pessoas com deficiência é
importante a sua expressão, uma vez que a expressão padrão é a de pessoas sem
deficiência. Por isso, apresentar outra perspectiva, histórica ou pessoal,
sobre a condição de um outro olhar na sociedade, um outro olhar sobre a poesia
do mundo, é completamente fértil, tanto para a pluralidade literária quanto
para a identidade do grupo identificado”, comentou Zeligara.
Já para Raphaela da Costa Crispim,
educadora que faz parte da Coletiva Mamoeira: “as escritoras com deficiência quase não aparecem pela falta de
inclusão nos espaços. Elas precisam se sentir convidadas a frequentar os
espaços, isso é feito com um trabalho contínuo de investimento em inclusão. Por
isso, é importante que sempre tenha acessibilidade, para que o público de
pessoas com deficiência aumente e
exerçam seus direitos de cidadãos, de acesso à cultura, arte e educação.
O lugar de fala destas escritoras é de extrema importância, para garantir
legitimidade e propriedade aos discursos. E também para entendermos as
peculiaridades da produção de uma escritora com deficiência.
Camila Honorato de Barros é
jornalista, educadora, escritora, e foi selecionada pelo projeto da Coletiva
Mamoeira. Ela com comentou que ter me
conhecido despertou a
sua responsabilidade de, enquanto escritora que apoia outras mulheres, também
pesquisar mais sobre o assunto e procurar formas de dar visibilidade às suas
colegas escritoras com deficiência. “Já
que o mercado editorial não impulsiona, temos que nos amparar. É nossa responsabilidade procurar formas de
proporcionar recursos acessíveis para que todos tenham acesso. Eu visito muito
o Itaú Cultural, o Museu da Imagem e do Som e a Pinacoteca do Estado de São
Paulo. Em todos eles, vi muita estrutura para acolher pessoas com deficiência,
inclusive com atividades específicas em braile e conteúdos com áudio descrição,
bem como experiências sensoriais e intérpretes em vídeos explicativos sobre
exposições”.
Para Camila a importância do lugar de
fala para as escritoras com deficiência é sobrevivência, resistência,
acolhimento e um meio importantíssimo de se ter voz. A literatura é um ambiente
e tanto pro grito de: “estou aqui,
existo, você também pode olhar pra mim”.
Eu,
Leandra Migotto Certeza que escrevo desde os 9 anos de idade, sinto na pele a
urgente necessidade de um LUGAR DE FALA DAS ESCRITORAS COM DEFICIÊNCIA. Pois,
ainda hoje com 42 anos eu não conquistei um espaço no mundo literário. Acredito
que seja porque as barreiras são muitas e precisam ser derrubadas
imediatamente!
Para
que isso aconteça é preciso que os portais e as redes sociais tenham recursos
de acessibilidade virtual, como textos compatíveis com os sintetizadores de voz
e descrição de todo o conteúdo publicado para que pessoas com cegueira,
consigam ler. Além disso, também é necessário que os vídeos sejam publicados
com legendas e janelas de Língua Brasileira de Sinais para que pessoas com
surdez compreendam.
Junto
com estes recursos, os espaços onde acontecem os encontros e eventos culturais
e literários precisam ser totalmente acessíveis para pessoas que andam em
cadeira de rodas ou tenham qualquer deficiência física e/ou mobilidade
reduzida.
E
para que isso ocorra todas as pessoas responsáveis por organizar estes
encontros devem ter como premissa o conceito de Desenho Universal, e não apenas
pensem no assunto quando uma escritora com deficiência se inscreve. Afinal, a
verdadeira inclusão só acontece quando todas e todos conseguem ter acesso às
informações, e aos locais com autonomia, segurança e conforto.
É
necessário também permitir que as ESCRITORAS BRASILEIRAS COM DEFICIÊNCIA
produzam, publiquem e sejam divulgadas! Só assim, elas não se sentirão mais
TRANCADAS DO LADO DE DENTRO!
Escritoras com deficiência, livros e movimentos:
Obras de Bartyra Soares:
Obras de Lídia Maria Cardia:
Emiliana Faria Rosa:
Slam Resistência Surda:
Livro: “Olhando para trás: a
experiência de deficiência de dentro para fora”:
https://www.amazon.com/Staring-Back-Disability-Experience-Inside/
Escritoras sem deficiência:
Escritoras sem deficiência:
Blog da escritora Zeligara - https://exscretos.blogspot.com/
Blog da escritora
Camila - http://meninadaestrada.com.br
Coletiva Mamoeira - https://www.facebook.com/coletivamamoeira/
Clube de Escrita para
Mulheres - http://clubedaescrita.com.br/
*Leandra Migotto Certeza é jornalista (MTb 40546), consultora e
palestrante em Inclusão e Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência desde
1998. É escritora, poeta e faz cursos de Jornalismo Literário e Escrita
Criativa. Criadora da Coleção Janelas do Selo Caleidoscópio – Biografias e Autobiografias
de Mulheres com Deficiência.
Perfil profissional: http://www.linkedin.com/pub/leandra-migotto-certeza/41/121/a
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