quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Cadê a jornalista?




Por Leandra Migotto Certeza*

Comecei a graduação em Produção Editorial, na Universidade Anhembi Morumbi em São Paulo, no ano de 1996, aos 19 anos. Sempre tive paixão pela reportagem e o sonho em ser jornalista. A vocação e o talento sempre foram mais fortes; e eu segui os passos que o meu coração trilhou. Aprendi a fazer reportagens, entrevistar, e editar os meus próprios textos, na marra e sozinha! Nunca tive aulas técnicas sobre como redigir um bom texto. Mas modéstia parte, sempre sabia onde queria chegar e conseguia bons resultados porque estudava bastante, lia mais ainda, e metia a cara com muita coragem e determinação. Logo no terceiro ano da faculdade publiquei minha primeira reportagem, em uma das primeiras revistas segmentadas voltadas para as pessoas com deficiência.
Procurei a redação da revista por iniciativa própria. Primeiro telefonei para o número que estava na publicado e pedi para falar com o editor. Ele mesmo atendeu e disse que ficava contente com a participação dos leitores. Então, eu expliquei que não queria ser apenas uma leitora, e sim uma das jornalistas. Ele sorriu e disse que a equipe era bem reduzida e a revista era feita na própria casa dele. Eu insisti que precisava conhecer a redação e apresentar uma proposta de reportagem. Ele aceitou na hora e foi muito simpático.  

Lembro que no dia da visita eu estava bem nervosa. Fui toda arrumada e com a minha melhor roupa. Minha mãe me levou de carro, como sempre fez durante todas as minhas primeiras atividades, antes de eu perder o medo de sair sozinha de táxi pelas ruas da cidade. Quando cheguei onde a revista era feita, levei um susto: havia degraus bem na entrada! Pensei: “como uma revista que fala sobre inclusão pode ser assim”... É como diz o ditado: “em casa de ferreiro o espeto é de pau”. Ainda bem que eu ainda andava de muletas e consegui com dificuldade subir os degraus.
Naquela tarde de 1998, que passei ao lado do editor das primeiras revistas de São Paulo, voltadas para o público com deficiência, percebi o quanto o processo de inclusão ainda caminhava e quantos degraus seria preciso subir para alcançarmos a visibilidade do potencial de profissionais de comunicação com deficiência. Ainda vivíamos uma época em que muitos dos projetos voltados às pessoas com deficiência ainda estavam intimamente ligados às instituições, que em sua grande maioria tinha uma visão extremamente assistencialista, ou às experiências de familiares dessas pessoas, o que era o caso desta revista.
O editor tinha um filho com deficiência e sua esposa era dentista. Mas lembro também da linha editorial inovadora da publicação, que vinha do envolvimento político e do ativismo social dele em outros movimentos. Esse foi o lado que mais me apaixonou e despertou em mim a chama forte de luta por um mundo mais justo e solidário, em que todas as pessoas conseguissem mostrar o tamanho do seu potencial, independente de sua deficiência e condição social.         
É claro que também fiquei encantada com a produção de uma revista de verdade! Nossa... Como meus olhos brilharam quando vi as telas dos computadores com cada página da revista sendo diagramada. Quantas cores… Quantas imagens… Emocionante… Era isso o que eu sonhava em fazer: trabalhar em um lugar exatamente como esse, cheirando a criação! Fechei os olhos e fiquei me imaginando ali, dando pitaco em tudo… E depois chegando até a redação com a minha pastinha nas mãos, gravador e a máquina fotográfica com notícias quentinhas dos vários eventos em que iria estar para contar aos meninos e meninas colegas de trabalho sobre as minhas aventuras, os fatos e as histórias que eu havia encontrado… Um novo mundo se abriu para mim, e como era bom sonhar…
Bom, mas infelizmente, como o editor havia dito, a sua equipe era muito pequena e não havia dinheiro para novas contratações. E o pior de tudo, a revista estava passando por graves dificuldades econômicas, afinal, não era financiada por governos e não tinha rabo preso com alguma instituição.
Confesso que fiquei bem triste e preocupada, mas o que fez meus olhos brilharem foi saber que o sonho em criar uma publicação totalmente isenta de pressões políticas, ou visões retrógradas que colocavam às pessoas com deficiência como meros fins para se ganhar dinheiro, era o que sustentava cada palavra, foto ou imagem da revista. Pena que esta publicação conseguiu ter uma vida curta, mas a qualidade de suas reportagens e o pioneirismo em isenção marcou a história das mídias voltadas para esse público, como uma das mais conceituadas e inesquecíveis.
Em todos os lugares em que já trabalhei, não entrei por conta de indicações, mas porque eu ia até os locais, deixava meus currículos à disposição, oferecia uma cobertura gratuita de um evento e perguntava - na maior cara de pau - se eu poderia fazer parte da equipe. Até que finalmente, no ano 2000, eu comecei a escrever para outra importante revista mensal segmentada, voltada para a inclusão de pessoas com deficiência.

Uma das reportagens que fiz, nesta época, e mais me marcou foi quando descobri que alguns motoristas de uma empresa de transportes estavam realizando um treinamento de como auxiliar no embarque e desembarque de pessoas com deficiência sem a presença de ninguém nessa condição. Vi que estavam inventando tudo da cabeça deles, sem respei­tar norma alguma. Descobri isso através de alguns contatos e avisei muitas pessoas de diversas instituições e organizações representativas sobre a situ­ação. Decidimos aparecer no local do treinamento de surpresa e exigimos acompanhar tudo o que estava sendo feito. Fui com a equipe da revista em que trabalhava na época, e fizemos uma grande reportagem bem crítica e de denúncia.

Ter trabalhado nesta revista, foi uma experiência mais significativa da minha carreira, e os anos da minha vida em mais produzi com muita paixão e gigantesca dedicação. Realizei mais 50 coberturas de eventos em apenas 2 anos. Às vezes perguntava antes se o local era acessível, em outras, aproveitava para dar uma de fiscal. Fazia um cadastro prévio nas assessorias de imprensa sem avisar que tinha uma deficiência. Isso era de propósito porque queria ver a reação das pessoas ao encontrar uma jornalista na minha condição. Quando eu entrava nesses locais, muitas das pessoas diziam: “Cadê a jornalista que falou que viria?” E quando eu respondia que eu era a jornalista, muitas pessoas ficavam bem surpresas.

Apesar dos profissionais da mídia parecer estar acostumados a tratar do assunto, na maioria das vezes era um discurso sobre o outro, construído de uma forma assistencialista, estigmatizada e até piegas. Era o discurso de quem não tem deficiência e vê o outro em condição de suposta fragilidade, de desvantagem. Por isso considero tão importante o lema do movimento das pessoas com deficiência a partir da década de 1980, conhecido como “Nada sobre nós sem nós”. Essa frase simples traduz uma necessidade absoluta de qualquer movimento social ou organização que lute por igualdade de oportunidades: a de se garantir representatividade.   

Já em 2010, fui Jornalista Responsável por outra publicação em uma nova editora. Desta vez era voltada para Educação Inclusiva. Tive que visitar uma escola que tinha alguma acessibilidade, mas também várias inadequações. Não que estivesse maquiando algo, mas precisei olhar para as qualidades da escola, valorizar os alunos com deficiência que estudavam lá, ao invés de mostrar os problemas nos padrões de acessibilidade. Esse tipo de situação me causou um pouco de frustração com a profissão, mas nunca cheguei ao ponto de pensar em desistir. Durante toda a carreira, gostava de cumprir qualquer pauta que me pedissem, exceto nas raras vezes em que tive que fazer matérias pagas, ou seja, somente porque algum anunciante encomendava. Não tinha muita escapatória, apesar de não concordar com a prática, eu precisava trabalhar.

Por ter trabalhado na maior parte do tempo em revistas pequenas, com número reduzido de funcionários, não utilizei a lei de cotas para pessoas com deficiência. Uma das poucas exceções foi quando consegui uma vaga para Atendimento ao Leitor em uma das maiores editoras de revistas do Brasil, em 2006. Decidi aceitar o emprego porque tinha a esperança de ser transferida para a área editorial depois de um tempo, mas apesar das minhas muitas solicitações, isso não ocorreu. Mesmo eu formada desde 1999, e com importante experiência como repórter de revista, não tive oportunidade de evoluir dentro da empresa porque estava lá apenas cumprindo cota. Larguei o emprego por esse motivo, mas considero a lei de cotas um importante instrumento de inclusão, apesar de considerar que precisa de aprimoramentos.

Em relação às pessoas com deficiência que trabalham como jornalistas, eu considero importante reforçar que grande parte da mídia ainda se prende a padrões estéticos de uma maneira forte e, por conta disso, muita gente com deficiência tem dificuldade de se inserir no mercado. Aliás, isso não ocorre apenas com as deficiências, mas ainda hoje vemos pouquíssimos jornalistas negros, orientais, de etnias diversas ou com qualquer outra característica que demonstre diferença ocupando colocações de destaque, exercendo função de apresentadores, mostrando seus rostos e corpos.

Até pouco tempo atrás, muitas emissoras de televisão não contratavam pessoas que usassem óculos, para se ter uma ideia. Nos dias atuais, em que temos uma cultura muito visual, a aparência se tornou fundamental, às vezes mais do que a qualificação profissional, infelizmente. Por isso é importante que questionemos, com os instrumentos que temos à disposição, esse tipo de comportamento. Alguns dos instrumentos que utilizo para problematizar essa e muitas outras questões são meus dois blogs, o Caleidoscópio e o Fantasias Calei­doscópicas. O primeiro, eu uso para contar sobre tudo, meu dia a dia, as entrevistas que fizeram comigo, alguns textos literários e outros conteúdos de caráter jornalístico. O outro blog se destina a tratar da sexualidade da pessoa com deficiên­cia, um tema que é muito importante. Faço palestras sobre o assunto e já produzi um ensaio fotográfico sensual junto com a fotógrafa e amiga Vera Albuquerque.

Acho que nunca fui muito atrás de colaborar com jornais impressos justamente porque prefiro de um tipo de escrita mais demorada, com mais tempo para refinamento da linguagem. Ficava apreensiva com o ritmo acelerado das publicações diárias, talvez por isso tenha me focado na produção de revistas. Sempre me interessei por reportagens com caráter social, que proble­matizassem as dificuldades das minorias, das populações que sofrem com preconceito e discriminação. Negros, mulheres, comunidade LGBT, pesso­as de baixa renda ou com deficiência. Acredito que essa busca por denunciar as desigualdades está no meu sangue e permanecerá sempre comigo. Por conta dessa visão social e engajada que tenho da vida, acredito que nunca deixarei de ser jornalista, apesar de hoje ter planos de me tornar escritora e cursar pós-graduação em jornalismo literário. Hoje faço freelances de jornalismo, trabalho como consultora na área da inclusão; e ministro palestras motivacionais em di­versas instituições e empresas para as quais sou convidada.


Algo importante que preciso salientar também é que, infelizmente, a maioria das 45 milhões de pessoas com deficiência no Brasil ainda vivem em situação de pobreza, sem nenhum recurso garantido por parte do Estado. Muitas ainda estão trancadas dentro de suas casas, presas em uma cama, sem possibilidade de conquistar seu direito ao trabalho, totalmente marginalizadas. E isso está acontecendo agora. Graças à minha família, tive condições de dispor de um bom tratamento, de fazer faculdade, conquistar autonomia. A maior parte dos jornalistas com deficiência também compartilha desta condição financeira mais estável do que a maioria. Por esse motivo é tão difícil encontramos jornalistas com deficiência que são de origem pobre, simplesmente porque as pessoas de classe social mais baixa ainda não tiveram condição de cursar faculdade. Ou quando tem a oportunidade ainda são barrados nas redações de emissoras de TV, revistas, jornais e rádios, por puro preconceito e discriminação.


*Leandra Migotto Certeza é jornalista por formação, consultora por profissão, e escritora por paixão. Recebeu o Prêmio de Classificação de Excelência no Concurso de "Periodismo y Comunicación Sociedad para Todos" na Colômbia em 2003, pelo artigo sobre educação: "Ser e Estar" (publicado em diversos portais); e o prêmio na categoria pôster sobre o projeto: “Fantasias Caleidoscópicas” (relativo à sexualidade da pessoa com deficiência) durante o "Sexto Congresso Internacional - Prazeres Dês-Organizados Corpos, Direitos e Culturas em Transformação", realizado pela Universidad Cayetano Heredia, em Lima em 2007. Seus blogs são: http://leandramigottocerteza.blogspot.com/ e http://fantasiascaleidoscopicas.blogspot.com/. 

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