Por Leandra Migotto Certeza*
Comecei a graduação em Produção Editorial, na Universidade
Anhembi Morumbi em São Paulo, no ano de 1996, aos 19 anos. Sempre tive paixão
pela reportagem e o sonho em ser jornalista. A
vocação e o talento sempre foram mais fortes; e eu segui os passos que o meu
coração trilhou. Aprendi a fazer reportagens, entrevistar, e editar os meus
próprios textos, na marra e sozinha! Nunca tive aulas técnicas sobre como
redigir um bom texto. Mas modéstia parte, sempre sabia onde queria chegar e
conseguia bons resultados porque estudava bastante, lia mais ainda, e metia a
cara com muita coragem e determinação. Logo no terceiro ano da faculdade
publiquei minha primeira reportagem, em uma das primeiras revistas segmentadas
voltadas para as pessoas com deficiência.
Procurei a redação da revista por
iniciativa própria. Primeiro telefonei para o número que estava na publicado e
pedi para falar com o editor. Ele mesmo atendeu e disse que ficava contente com
a participação dos leitores. Então, eu expliquei que não queria ser apenas uma
leitora, e sim uma das jornalistas. Ele sorriu e disse que a equipe era bem
reduzida e a revista era feita na própria casa dele. Eu insisti que precisava
conhecer a redação e apresentar uma proposta de reportagem. Ele aceitou na hora
e foi muito simpático.
Lembro que no dia da visita eu estava bem nervosa. Fui toda arrumada e
com a minha melhor roupa. Minha mãe me levou de carro, como sempre fez durante
todas as minhas primeiras atividades, antes de eu perder o medo de sair sozinha
de táxi pelas ruas da cidade. Quando cheguei onde a revista era feita, levei um
susto: havia degraus bem na entrada! Pensei: “como uma revista que fala
sobre inclusão pode ser assim”... É como diz o ditado: “em casa de ferreiro
o espeto é de pau”. Ainda bem que eu ainda andava de muletas e consegui com
dificuldade subir os degraus.
Naquela tarde de 1998, que passei ao lado do editor das primeiras
revistas de São Paulo, voltadas para o público com deficiência, percebi o
quanto o processo de inclusão ainda caminhava e quantos degraus seria preciso
subir para alcançarmos a visibilidade do potencial de profissionais de
comunicação com deficiência. Ainda vivíamos uma época em que muitos dos
projetos voltados às pessoas com deficiência ainda estavam intimamente ligados
às instituições, que em sua grande maioria tinha uma visão extremamente
assistencialista, ou às experiências de familiares dessas pessoas, o que era o
caso desta revista.
O editor tinha um filho com deficiência e sua esposa era dentista. Mas
lembro também da linha editorial inovadora da publicação, que vinha do
envolvimento político e do ativismo social dele em outros movimentos. Esse foi
o lado que mais me apaixonou e despertou em mim a chama forte de luta por um
mundo mais justo e solidário, em que todas as pessoas conseguissem mostrar o
tamanho do seu potencial, independente de sua deficiência e condição social.
É claro que também fiquei encantada com a produção de uma revista de
verdade! Nossa... Como meus olhos brilharam quando vi as telas dos computadores
com cada página da revista sendo diagramada. Quantas cores… Quantas imagens…
Emocionante… Era isso o que eu sonhava em fazer: trabalhar em um lugar
exatamente como esse, cheirando a criação! Fechei os olhos
e fiquei me imaginando ali, dando pitaco em tudo… E depois chegando até a
redação com a minha pastinha nas mãos, gravador e a máquina fotográfica com
notícias quentinhas dos vários eventos em que iria estar para contar aos
meninos e meninas colegas de trabalho sobre as minhas aventuras, os fatos e as
histórias que eu havia encontrado… Um novo mundo se abriu para mim, e como era
bom sonhar…
Bom, mas infelizmente, como o editor havia dito, a sua equipe era muito
pequena e não havia dinheiro para novas contratações. E o pior de tudo, a
revista estava passando por graves dificuldades econômicas, afinal, não era
financiada por governos e não tinha rabo preso com alguma instituição.
Confesso que fiquei bem triste e preocupada, mas o que fez meus olhos
brilharem foi saber que o sonho em criar uma publicação totalmente isenta de
pressões políticas, ou visões retrógradas que colocavam às pessoas com
deficiência como meros fins para se ganhar dinheiro, era o que sustentava cada
palavra, foto ou imagem da revista. Pena que esta publicação conseguiu ter uma
vida curta, mas a qualidade de suas reportagens e o pioneirismo em isenção
marcou a história das mídias voltadas para esse público, como uma das mais
conceituadas e inesquecíveis.
Em todos os lugares em que já
trabalhei, não entrei por conta de indicações, mas porque eu ia até os locais,
deixava meus currículos à disposição, oferecia uma cobertura gratuita de um
evento e perguntava - na maior cara de pau - se eu poderia fazer parte da
equipe. Até que finalmente, no ano 2000, eu comecei a escrever para outra
importante revista mensal segmentada, voltada para a inclusão de pessoas com deficiência.
Uma das reportagens que fiz,
nesta época, e mais me marcou foi quando descobri que alguns motoristas de uma
empresa de transportes estavam realizando um treinamento de como auxiliar no
embarque e desembarque de pessoas com deficiência sem a presença de ninguém
nessa condição. Vi que estavam inventando tudo da cabeça deles, sem respeitar
norma alguma. Descobri isso através de alguns contatos e avisei muitas pessoas
de diversas instituições e organizações representativas sobre a situação. Decidimos
aparecer no local do treinamento de surpresa e exigimos acompanhar tudo o que
estava sendo feito. Fui com a equipe da revista em que trabalhava na época, e
fizemos uma grande reportagem bem crítica e de denúncia.
Ter trabalhado nesta revista, foi
uma experiência mais significativa da minha carreira, e os anos da minha vida
em mais produzi com muita paixão e gigantesca dedicação. Realizei mais 50
coberturas de eventos em apenas 2 anos. Às vezes
perguntava antes se o local era acessível, em outras, aproveitava para dar uma
de fiscal. Fazia um cadastro prévio nas assessorias de
imprensa sem avisar que tinha uma deficiência. Isso era de propósito porque
queria ver a reação das pessoas ao encontrar uma jornalista na minha condição.
Quando eu entrava nesses locais, muitas das pessoas diziam: “Cadê a
jornalista que falou que viria?” E quando eu respondia que eu era a
jornalista, muitas pessoas ficavam bem surpresas.
Apesar dos profissionais da mídia parecer
estar acostumados a tratar do assunto, na maioria das vezes era um discurso
sobre o outro, construído de uma forma assistencialista, estigmatizada e até
piegas. Era o discurso de quem não tem deficiência e vê o outro em condição de
suposta fragilidade, de desvantagem. Por isso considero tão importante o lema
do movimento das pessoas com deficiência a partir da década de 1980, conhecido
como “Nada sobre nós sem nós”. Essa frase simples traduz uma necessidade
absoluta de qualquer movimento social ou organização que lute por igualdade de
oportunidades: a de se garantir representatividade.
Já em 2010, fui Jornalista Responsável por outra publicação em uma nova editora.
Desta vez era voltada para Educação Inclusiva. Tive que visitar uma escola que
tinha alguma acessibilidade, mas também várias inadequações. Não que estivesse
maquiando algo, mas precisei olhar para as qualidades da escola, valorizar os
alunos com deficiência que estudavam lá, ao invés de mostrar os problemas nos
padrões de acessibilidade. Esse tipo de situação me causou um pouco de
frustração com a profissão, mas nunca cheguei ao ponto de pensar em desistir. Durante
toda a carreira, gostava de cumprir qualquer pauta que me pedissem, exceto nas
raras vezes em que tive que fazer matérias pagas, ou seja, somente porque algum
anunciante encomendava. Não tinha muita escapatória, apesar de não concordar
com a prática, eu precisava trabalhar.
Por ter trabalhado na maior parte
do tempo em revistas pequenas, com número reduzido de funcionários, não
utilizei a lei de cotas para pessoas com deficiência. Uma das poucas exceções
foi quando consegui uma vaga para Atendimento ao Leitor em uma das maiores
editoras de revistas do Brasil, em 2006. Decidi aceitar o emprego porque tinha
a esperança de ser transferida para a área editorial depois de um tempo, mas
apesar das minhas muitas solicitações, isso não ocorreu. Mesmo eu formada desde
1999, e com importante experiência como repórter de revista, não tive
oportunidade de evoluir dentro da empresa porque estava lá apenas cumprindo
cota. Larguei o emprego por esse motivo, mas considero a lei de cotas um
importante instrumento de inclusão, apesar de considerar que precisa de
aprimoramentos.
Em relação às pessoas com
deficiência que trabalham como jornalistas, eu considero importante reforçar
que grande parte da mídia ainda se prende a padrões estéticos de uma maneira
forte e, por conta disso, muita gente com deficiência tem dificuldade de se
inserir no mercado. Aliás, isso não ocorre apenas com as deficiências, mas
ainda hoje vemos pouquíssimos jornalistas negros, orientais, de etnias diversas
ou com qualquer outra característica que demonstre diferença ocupando
colocações de destaque, exercendo função de apresentadores, mostrando seus
rostos e corpos.
Até pouco tempo atrás, muitas
emissoras de televisão não contratavam pessoas que usassem óculos, para se ter
uma ideia. Nos dias atuais, em que temos uma cultura muito visual, a aparência
se tornou fundamental, às vezes mais do que a qualificação profissional,
infelizmente. Por isso é importante que questionemos, com os instrumentos que
temos à disposição, esse tipo de comportamento. Alguns
dos instrumentos que utilizo para problematizar essa e muitas outras questões
são meus dois blogs, o Caleidoscópio
e o Fantasias Caleidoscópicas. O
primeiro, eu uso para contar sobre tudo, meu dia a dia, as entrevistas que
fizeram comigo, alguns textos literários e outros conteúdos de caráter
jornalístico. O outro blog se destina a tratar da sexualidade da pessoa com deficiência,
um tema que é muito importante. Faço palestras sobre o assunto e já produzi um
ensaio fotográfico sensual junto com a fotógrafa e amiga Vera Albuquerque.
Acho que nunca fui muito atrás de
colaborar com jornais impressos justamente porque prefiro de um tipo de escrita
mais demorada, com mais tempo para refinamento da linguagem. Ficava apreensiva
com o ritmo acelerado das publicações diárias, talvez por isso tenha me focado
na produção de revistas. Sempre me interessei por
reportagens com caráter social, que problematizassem as dificuldades das
minorias, das populações que sofrem com preconceito e discriminação. Negros,
mulheres, comunidade LGBT, pessoas de baixa renda ou com deficiência. Acredito
que essa busca por denunciar as desigualdades está no meu sangue e permanecerá
sempre comigo. Por conta dessa visão social e engajada que tenho da vida,
acredito que nunca deixarei de ser jornalista, apesar de hoje ter planos de me
tornar escritora e cursar pós-graduação em jornalismo literário. Hoje faço freelances de jornalismo, trabalho como
consultora na área da inclusão; e ministro palestras motivacionais em diversas
instituições e empresas para as quais sou convidada.
Algo importante que preciso
salientar também é que, infelizmente, a maioria das 45 milhões de pessoas com
deficiência no Brasil ainda vivem em situação de pobreza, sem nenhum recurso
garantido por parte do Estado. Muitas ainda estão trancadas dentro de suas
casas, presas em uma cama, sem possibilidade de conquistar seu direito ao
trabalho, totalmente marginalizadas. E isso está acontecendo agora. Graças à
minha família, tive condições de dispor de um bom tratamento, de fazer
faculdade, conquistar autonomia. A maior parte dos jornalistas com deficiência
também compartilha desta condição financeira mais estável do que a maioria. Por
esse motivo é tão difícil encontramos jornalistas com deficiência que são de
origem pobre, simplesmente porque as pessoas de classe social mais baixa ainda não
tiveram condição de cursar faculdade. Ou quando tem a oportunidade ainda são
barrados nas redações de emissoras de TV, revistas, jornais e rádios, por puro
preconceito e discriminação.
*Leandra Migotto Certeza
é jornalista por formação, consultora por profissão, e escritora por paixão.
Recebeu o Prêmio de Classificação de
Excelência no Concurso de "Periodismo y Comunicación Sociedad para
Todos" na Colômbia em 2003, pelo artigo sobre educação: "Ser e
Estar" (publicado em diversos portais); e o prêmio na categoria pôster
sobre o projeto: “Fantasias Caleidoscópicas” (relativo à sexualidade da pessoa
com deficiência) durante o "Sexto Congresso Internacional - Prazeres
Dês-Organizados Corpos, Direitos e Culturas em Transformação",
realizado pela Universidad Cayetano Heredia, em Lima em 2007.
Seus blogs são: http://leandramigottocerteza.blogspot.com/ e http://fantasiascaleidoscopicas.blogspot.com/.
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