quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Crônicas de Mafalda Ribeiro

Fonte: http://mulher.sapo.pt/cronicas/thank-god-i-m-a-wheels-woman/os-ais-que-ninguem-diz-1220010.html

Os “ais” que ninguém diz

Os “ais” que ninguém diz

Encontrar na dor uma aprendizagem é rejeitar sofrer nela. O povo deixou na boca do povo a expressão: "ninguém diz ai que não lhe doa." Não é bem assim. Dizer "ai" é uma coisa; doer é outra. A segunda não pressupõe a primeira, e vice-versa.


Texto de Mafalda Ribeiro *


A propósito, lembrei-me que já há uns anos Carlos Drummond de Andrade tinha pensado sobre isto. Ele escreveu que: "A dor é inevitável. O sofrimento é opcional". Eu assino por baixo. Será que o nosso primeiro ministro pensou no mesmo quando nos chamou (aos que enfiaram a carapuça) "piegas", esta semana? O dicionário diz que este adjetivo significa " aquele que apela excessivamente para o sentimento, é assustadiço, muito sensível" ou pode ainda ser "aquele que se prende com pequenas coisas".

Resumindo: "ai porque chove"; "ai porque está sol"; "ai porque está frio"; "ai porque está calor"; "ai porque nos cortam os feriados"; ai porque temos pontes e dias de descanso a mais e por isso é que o país não anda para a frente"... Discursos políticos à parte, pergunto: não seremos nós todos um bocadinho assim no dia-a-dia, com ou sem austeridade? Ou seja, não fazemos nós, no nosso quotidiano, de pequenas situações grandes crises? Não teremos nós queda para o drama e para a tragédia, quando ainda nem passámos da primeira página do guião?
Há os que dizem "ais" apenas por duas coisas: é por tudo e por nada; porque gostam de se ouvir a si mesmos. Mas há os que não abrem a boca para um "ai" sequer, ainda que por dentro a dor doa, doa muito, e não seja tão efémera quanto isso. Só que estes "ais", que ninguém diz, não significam ausência da dor. Ela está lá, a forma como é encarada é que altera tudo. Existem os que têm queda para o sofrimento, com ou sem dor; preferem sofrer por contradições e antagonismos.
"Ais" atrás de "ais", que depois evoluem para "uis", mudam o tom para mais ou menos agudo, mas não encerram a dor, nem tão-pouco o sofrimento. São quase crónicos. Aí nasce a queixa cíclica. Queixar-se da dor, sim, é sofrer, e não deixar espaço para que a dor doa. Ela é necessária ao crescimento. Ninguém pode fugir dela; recebê-la com um sorriso é um ato generoso. Agradecê-la, é um dever. Agora, sofrer nela é uma porta que podemos ou não abrir. É uma escolha e um processo que não a cura, pelo contrário, prolonga-a no tempo.
Passos Coelho falou de respeito e de credibilidade nesse mesmo discurso: "Se queremos que nos olhem com respeito temos de nos olhar com respeito", disse, criticando ainda discursos que consideram que há "demasiada austeridade"; que as medidas adoptadas para corrigir os défices do país são "muito difíceis". Falou de luta, de determinação e da importância de olharmos para a frente, com a cabeça levantada e sem o chamado espirito de calimero: "Devemos persistir, ser exigentes, não sermos piegas e ter pena dos alunos, coitadinhos, que sofrem tanto para aprender" enfatizou, sublinhando que só com "persistência", "exigência" e "intransigência", o país terá "credibilidade". Conclusão, depois da laranja espremida, com que sumo ficámos? O primeiro ministro chamou-nos piegas! Pois eu, enfio a carapuça nesse adjetivo e em todos os outros.
Thank God i'm a (wheels) woman, e assumidamente piegas. Não porque me queixo da minha condição de vida; mesmo tendo dores diárias, nem todos os dias digo "ai". Elas não se vêem nunca, sejam do corpo ou da alma, é certo, mas convivem comigo. Sou piegas porque assumo que sou sensível (muitas vezes a atingir os píncaros da lamechice) e apelo em doses industriais para o sentimento, só que de positivismo, de fé e de gratidão. É o que tento exigir de mim própria a cada manhã. Mesmo a doer, não falar somente, fazer. Desta forma persisto, na dor. E sou cada vez mais intransigente com aqueles que insistem em ter pena de mim. Penas têm os édredons!
Os "ais" silenciosos são afirmações reais da nossa condição humana. Evitáveis são os "ais" ruidosos, que nos confundem no percurso e nos ensurdecem o espírito. A dor é caminhar na vida. O sofrimento é caminhar para a morte.  

Mafalda Ribeiro

Mafalda Ribeiro*


Biografia


Mafalda Ribeiro tem 28 anos de uma vida invulgar.
Estudou Jornalismo, mas é Técnica de Comunicação.
Não é jornalista na prática, mas é o gosto pelo jornalismo e pelas letras que fazem mover a sua cabeça, ainda que as pernas não lhe obedeçam. Convive com a Osteogénese Imperfeita e desloca-se em cadeira de rodas desde sempre.
Há três anos publicou o seu primeiro livro "Mafaldisses - Crónicas sobre rodas" (Papiro Editora, 4ª edição).
É voluntária em projectos de solidariedade social, tem uma visão humanista e aguçada do mundo e por isso dá a cara pela inclusão e pela igualdade de oportunidades, sempre que lhe dão tempo de antena, tal como a personagem de banda desenhada do argentino Quino. Dessa Mafalda herdou também o não gostar de sopa, o tom protestante quando é preciso e o ar inconformado perante o comodismo e o queixume redundante da maioria.
Mafalda Ribeiro não vê limites diante das suas limitações. Acima de tudo, é uma uma mulher de palmo e meio grata por poder continuar a viajar dentro desta que é a viagem da vida.

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