Autora: Leandra Migotto Certeza
Ao assistir na internet um vídeo desses que todo mundo acha ‘fofinho’, me questionei: amar é tentar modificar o outro, ou aceitá-lo exatamente como ele, sem cometer um CRIME DE DISCRIMINAÇÃO? Antes que vocês conheçam o vídeo, vou contar o roteiro e as minhas impressões sobre ele.
Um porco espinho (que, obviamente, tem o corpo inteiro formado por espinhos!) está muito triste e chorando. Ele tenta participar da turma dos animais como qualquer um deles, mas nunca é aceito! Na hora em que está na escola, todos os bichinhos se afastam quando ele passa no meio das carteiras. O mesmo acontece dentro do ônibus que os leva para a escola, ninguém quer se sentar ao lado dele nos bancos.
Quando o porco espinho vai tentar brincar no parque de diversões, os outros animaizinhos também saem de perto dele com medo de esbarrar em seus espinhos. Depois a bola jogada em uma brincadeira é furada, o que o deixa mais triste ainda, além de MUITO culpado por ter espinhos!
Até que em um dia, um esquilo ‘bonzinho’, acha que encontrou uma ‘brilhante’ forma de ‘incluir’ o porco espinho na turma. Ele lhe dá uma caixa por meio de ‘presente especial’. Quando o porco espinho abre a bonita caixa, encontra pedacinhos pequenos de isopor em forma de rolinhos, e não sabe o que fazer com aquilo… Mas a turma de ‘amigos’ mostra como é a ‘solução perfeita’ para ele ser aceito entre os demais animais.
Então, os ‘amigos’ colocam os pedacinhos de isopor para encobrir cada um dos seus espinhos! Assim, o porco espinho deixa de ter pedaços do seu corpo (que nasceram com ele!) para se adaptar a uma forma de viver entre seus ‘amigos’.
E desta forma, o porco espinho esconde a sua própria natureza para fazer parte da turma. Afinal, ninguém gosta de estar ao lado de um ser vivo como ele com espinhos, né? Então, ele é quem precisa mudar?
No final do vídeo ainda está escrito: “Acredite no AMOR!”. Eu novamente me questiono: que amor é este que só aceita o porco espinho se ele colocar um ‘disfarce’? Ele vai deixar de ser diferente dos demais animais por causa dos isopores? Ou só será incluído na escola, nas brincadeiras e na turma se mudar a sua aparência?
Eu nasci com uma deficiência física, e hoje uso uma cadeira de rodas durante o tempo todo da minha vida. Ela faz parte do meu corpo porque é somente com ela que eu consigo realizar as atividades cotidianas com segurança, autonomia e conforto. E é por meio dela que eu respeito as minhas dificuldades e valorizo as capacidades.
Então, quando alguém me convida para ir a algum lugar, eu simplesmente, não posso deixar a minha cadeira de rodas do lado de fora! Eu não existo sem ela, não apenas porque me traz mobilidade (o que já é uma grande condição), mas também porque a minha auto-imagem – como mulher e ser humano – passa por ela.
Carregar-me no colo para subir uma escada, por exemplo, não é uma forma ‘inclusiva’ de fazer com que eu me sinta parte da turma! Sabe por quê? Além de me deixar muito desconfortável por ser levada igual a um bebê, a minha condição de deficiência, não irá desaparecer ou ser minimizada.
E ao chegar ao local, todas as pessoas continuarão convivendo com a minha imagem e as características físicas específicas da minha condição de deficiência (como ter 96cm de altura, pernas menores do que os braços, cabeça com formas retangulares, quadril arrebitado, coxas roliças…). Eu simplesmente, não posso apagar ou disfarçar que não tenho estas características!
Da mesma forma que eu, todas as pessoas com deficiência (física, auditiva, visual, intelectual, múltipla, mental e surdocegueira), adquirida ou não, nunca deixarão de ser quem são. E por mais que sejam ‘amadas’ por pessoas que supostamente, acreditam que as incluíram no seu cotidiano, sempre serão alvos de atitudes preconceituosas e discriminatórias, disfarçadas de inclusão. Vejam…
Você acha que ao dar uma aula sem intérprete de LIBRAS – Língua Brasileira de Sinais, ou virado de costas para um aluno com surdez (que faz leitura labial), o professor está sendo inclusivo apenas por ‘aceitar’ que este aluno faça parte da turma?
Exigir que este aluno mude sua forma de estar no mundo (no caso com a deficiência auditiva, como parte da sua existência) para aprender o conteúdo, é amá-lo e aceitá-lo exatamente como ele é?
Assim como, produzir filmes sem áudio-descrição (recurso de acessibilidade), e dizer que quem não enxerga se sentirá incluído, desde que ele peça ajuda para o seu acompanhante ‘amorosamente’ descrever cada cena?
Ou dizer que não exclui o aluno com deficiência visual de suas aulas, mas não indicar livros acessíveis, é aceitar e amar o aluno exatamente como ele é?
Eu poderia descrever várias outros exemplos de falsas ações inclusivas, mas voltemos à estória do porco espinho. Você pode estar pensando: “nossa como esta escritora (no caso eu mesma!), não vê que os amiguinhos do porco espinho foram solidários e amáveis com ele?”
Eu lhe pergunto: que amor é esse que não respeita a existência individual do porco espinho? Não seria mais justo, os amiguinhos do porco espinho aprenderem novas brincadeiras em que as qualidades dele fossem valorizadas? Ao invés de tentarem mudar a sua forma de estar no mundo?
Eu também me pergunto: encobrir partes do corpo do porco espinho para que ele se ajuste a um modelo padrão de sociedade é uma atitude amorosa? Eu acredito que não! Sabe por quê?
ACEITAR OS SERES HUMANOS EXATAMENTE COMO ELES SÃO É SABER RESPEITAR SUAS DIFERENÇAS, E NÃO IMPOR UM FALSO AMOR QUE ATENDA AOS SEUS PADRÕES SOCIAIS!
Eu também acredito que atitudes aparentemente ‘inofensivas’, e sutis de preconceito, como essa história de exclusão do porco espinho, em que as pessoas acham que estão incluindo um ser diferente, por meio de um suposto amor; naturalizam sentimentos de discriminação arraigados na nossa cultura!
Infelizmente, ainda existem MUITAS pessoas que preferem dizer que amam quem é diferente dela (e aí encontram-se diversas diferenças: como deficiência, etnia, idade, gênero, entre outras), mas preferem que elas VIVAM BEM LONGE, ISOLADAS EM REDUTOS E GUETOS EXCLUDENTES!
E são estas mesmas pessoas que também fazem uso do suposto ‘amor’ para praticar CRIMES de DISCRIMINAÇÃO, PRECONCEITO E TOTAL EXCLUSÃO contra as pessoas com deficiência. Vejam…
Dia 21 de agosto de 2019 de um grupo de moradoras do bairro do Cabo Branco (área em que fica o metro quadrado mais caro da Paraíba) procurou a vereadora Helena Holanda para pedir que ela IMPEDISSE a presença de pessoas com deficiência na orla da capital paraibana!
Sabe qual a alegação destes moradores que se auto-declararam ‘pessoas ilustres e de renome’? Que a IMAGEM DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA RETIRAVA A BELEZA NATURAL DA PRAIA!!!
A vereadora Helena informou à imprensa que, diante de sua recusa em acabar com o Projeto Acesso Cidadão - que leva as pessoas com deficiência ao banho de mar e a esportes aquáticos - o grupo de moradores sugeriram que ela CERCASSE a área utilizada pelos usuários e colocassem um portão separando, os supostos SERES HUMANOS ‘ILUSTRES’ (as pessoas sem deficiência), DOS ‘MENOS HUMANOS’ (os cidadãos com deficiência)! Inacreditável, né? Mas infelizmente, casos como este ainda são bem frequentes em pleno século 21.
O capítulo 2 da Lei Brasileira da Inclusão (Lei 13.146 de 2015) define muito bem quais foram os CRIMES que essas pessoas cometeram ao exigir a exclusão das pessoas com deficiência das praias da Paraíba. Segundo o Art. 4º Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação.
1º Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas.
Além desta lei nacional, no Artigo 5 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (adotada como Emenda Constitucional pelo Brasil em 2007), está escrito que:
Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.
Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
Portanto, essas pessoas que exigiram a retirada dos cidadãos com deficiência das praias da Paraíba cometeram CRIME DE DISCRIMINAÇÃO tipificado em duas leis, uma nacional e outra internacional. E sabe o que aconteceu com elas? ABSOLUTAMENTE NADA!!
Eu acredito, que além da completa falta de seriedade em se fazer cumprir as leis (por meio da fiscalização inexistente); um dos principais motivos pelos quais, a maioria das pessoas afirma ser desnecessário RESPONSABILIZAR quem praticou este CRIME é a errônea visão de que CUIDAR DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA COM O SUPOSTO AMOR não é excluí-la. Mas desde que este ‘cuidado’ seja feito bem longe do convívio cotidiano daqueles que se declaram ‘seres humanos ilustres’!!!
Exatamente por causa de atitudes discriminatórias como essa que é preciso MUDAR esta errônea visão de ‘amor solidário’ que ainda está muito arraigada na cultura brasileira de assistencialismo com viés religioso de caridade.
Também é preciso COMPROVAR POR MEIO DE ATITUDES (como a da veredora, que não permitiu o encerramento do Projeto Acesso Cidadão) que todas as pessoas com deficiência têm o direito de FAZER PARTE DA SOCIEDADE POR MEIO DE SUAS PRÓPRIAS ESCOLHAS, COM AUTONOMIA, LUGAR DE FALA E PROTAGONISMO.
É PRECISO LUTAR POR UMA SOCIEDADE QUE AS RESPEITA E AS AMAM EXATAMENTE COMO ELAS SÃO!
Assista ao vídeo do porco espinho que tem com áudio-descrição (recurso de acessibilidade para pessoas com cegueira):
Fonte original da crônica:
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