A Gentileza e a Felicidade Comum
Para além do sentido semântico da palavra gentileza, que significa delicadeza, amabilidade e cortesia, ser gentil compreende a capacidade de ser empático. A pessoa gentil, portanto, é aquela que trata aos outros com respeito não apenas porque aprendeu que isso é sinal de boa educação, mas porque é capaz de reconhecer no outro um igual. Quando somos empáticos tendemos a nos colocar no lugar da outra pessoa, a ver o outro como um ser humano como nós: com sonhos, problemas, necessidades, dúvidas, medos, qualidades, defeitos, etc. Assim, resistimos à tentação de julgar o outro nos baseando em impressões momentâneas. Digo isso porque ser gentil é antes de tudo ser capaz de perceber as necessidades dos outros. Quando dizemos bom dia a alguém estamos não apenas sendo corteses, mas também estamos atendendo a uma necessidade humana de ser visto e percebido por seus iguais. Quem tem a consciência de que há necessidades humanas comuns a todos nós, independentemente de classe social, etnia, religião, etc., consegue ser gentil.
A relação entre ser gentil e ser capaz de reconhecer o outro como igual pode ser sustentada pela teoria da “sobrevivência do mais gentil”. Segundo essa teoria a gentileza foi um fator preponderante para a evolução da espécie humana, e um dos seus principais defensores é o cientista comportamental Sam Bowles. Bowles é professor do Instituto Santa Fé, nos Estados Unidos, e passou boa parte da vida acadêmica estudando as características socioeconômicas de sociedades antigas. Em seus estudos ele verificou que a gentileza foi um componente fundamental para o bom funcionamento das comunidades e para sua manutenção no longo prazo. Para ele, as pessoas gentis contribuem para o bem-estar do grupo favorecendo a sobrevivência de todos, incluindo a delas.
Se no passado a gentileza foi tão importante para a sobrevivência humana, em nossa época diz-se que tem se tornado um bem raro. Compartilho desta percepção. Penso que várias razões podem explicar o porquê de estarmos abandonando as atitudes gentis. Em parte isso reflete um modo de vida que aparentemente leva à perda da capacidade de prestar atenção em nós mesmos e ao outro. Diferentemente da vida em uma pequena tribo ou em uma vila da antiguidade, o ritmo no qual vivemos atualmente nos dá a sensação de fragmentação, seja do tempo, das experiências ou das relações que estabelecemos. Até há bem pouco tempo, uns 30/50 anos atrás, o comum era a pessoa nascer, crescer, casar, ter filhos e morrer na mesma cidade, ou pelo menos no mesmo estado.
Estudava-se todo o ensino fundamental e médio na mesma escola, que geralmente ficava no bairro em que se morava, no qual os professores eram os vizinhos. No bairro em que se morava também era onde se conhecia “o amor da vida” frequentando a praça, a igreja ou o clube. As férias eram passadas na casa de alguém da família, no máximo na mesma praia de sempre. Os amigos da infância e os primos se tornavam os padrinhos de casamento e dos filhos tidos. Ainda, no passado bem recente, um profissional costumava se aposentar na mesma empresa em que teve o primeiro emprego, e a profissão escolhida no vestibular garantia emprego e boa renda com apenas a graduação.
Podemos ver, assim, que o ritmo das nossas vidas mudou muito. Hoje, mesmo quem vive em pequenas cidades é afetado pela organização do espaço geográfico em grandes regiões urbanas industrializadas e habitadas por pessoas de origens diversas. Recebemos notícias, nos comunicamos e temos contato com modelos de vida de habitantes do mundo todo. Passamos por vários espaços educacionais entre a creche e a pós-graduação. Trabalhamos em diferentes empresas e em diferentes funções ao longo da vida. Moramos em diferentes bairros, cidades e até países. Quando não moramos, nos deslocamos em viagens, seja a passeio ou a trabalho. Resumindo, o universo das nossas relações ampliou-se consideravelmente, tal qual o uso que fazemos do tempo, seja estudando, trabalhando, se deslocando, se comunicando, etc.
Essa “pulverização” do tempo e do espaço vividos nos leva a estabelecer relações superficiais, ficamos sem muita condição de aprofundar o contato com as outras pessoas, e até mesmo de nos observarmos mais atentamente. A correria diária nos leva a ouvir e a ver mal, os outros ou a nós mesmos. Temos vizinhos dos quais não sabemos sequer o nome, colegas de estudo e de trabalho que não fazemos ideia de onde moram, nos envolvemos afetivamente com várias pessoas e raramente visitamos os parentes.
Ao mesmo tempo em que nos aproximamos fisicamente das pessoas, morando e trabalhando em espaços cada vez menores e mais lotados, nos distanciamos emocionalmente. Não nos conhecemos mais. Uma das formas de aprendermos a respeitar outra pessoa é conhecê-la, é saber quem ela é, o que viveu, o que pensa, o que sofreu, o que conquistou. A história de uma pessoa a humaniza, a aproxima de todos nós porque na história de vida do outro acabamos por reconhecer aspectos da nossa. Isso nos permite olhar o outro como igual, e esse reconhecimento nos leva a ser mais respeitosos, a ter mais consideração, a ser mais gentis.
A gentileza torna a vida em geral mais aprazível, proporciona a criação de vínculos com maior qualidade e melhora os contatos superficiais tornando-os menos estressantes e mais significativos, ou seja, com maior valor pessoal. Além disso, a gentileza é um instrumento relacional que ajuda a abrir portas, a facilitar processos de negociação de forma mais igualitária sem que prevaleça os interesses de um lado em função da autoridade ou da força puramente. Ao sermos gentis conseguimos adicionar valor às ações cotidianas, dotando-as de um caráter mais espontâneo e menos mecânico. Quando agimos com gentileza percebemos com maior clareza que nossas ações exercem efeitos sobre as outras pessoas. Como esses efeitos são positivos tendemos a nos sentir melhor.
Essa melhora exerce influência tanto ao nível subjetivo (emocional e cognitivo) quanto ao objetivo (fisiológico). Pelo menos é o que relata o médico e pesquisador Stephen Post. Post, que é professor da Stony Brook University, também nos EUA, realizou um estudo envolvendo mais de 2000 pessoas, no qual encontrou indícios de que ser gentil faz bem à saúde. O que faz sentido, uma vez que as sensações positivas que temos quando somos gentis geram reações químicas em nosso cérebro que liberam neurotransmissores associados ao prazer, ao relaxamento e à alegria, como é o caso dos hormônios serotonina e ocitocina. Esse efeito físico e emocional da gentileza seria válido tanto para quem é gentil quanto para quem é beneficiado pela gentileza.
Dito de outra forma, há indícios de que a gentileza pode contribuir para uma vida mais feliz. A psicóloga Sonja Lyubomirsky, da Universidade da Califórnia, tem se dedicado a investigar a felicidade, e em um de seus estudos pediu aos participantes que praticassem ações gentis durante dez semanas. O que ela averiguou foi que a percepção de felicidade dos participantes aumentou durante o período no qual estavam envolvidos no estudo. O mais interessante em relação aos resultados encontrados por Lyubomirsky foi quanto à natureza das ações gentis. A pesquisadora encontrou uma correlação entre variedade das atitudes gentis e níveis de felicidade. Os participantes que foram gentis de diferentes formas – por exemplo: dizendo bom dia a estranhos, dando lugar a alguém no metrô, dando preferência aos pedestres no trânsito, etc., – registraram níveis bem mais altos de felicidade do que quem sempre repetia um único gesto de gentileza. Ainda, mais relevante, passado um mês depois do fim do estudo, os mais felizes continuavam pontuando alto nos testes para medição dos índices de felicidade.
Assim como os efeitos positivos da gentileza parecem ser potencializados quando somos gentis de diferentes formas, a prática da gentileza não diz respeito a apenas um conjunto de regras de conduta e de etiqueta. Aparentemente, a gentileza expressa uma forma de se relacionar com as outras pessoas que é pautada no respeito e na consideração. Pode-se dizer que ela é também um sinônimo de postura ética. Melhor dizendo, a gentileza ou a falta dela pode ser a expressão mais visível do caráter de uma pessoa e de seus valores. Nesse sentido, o exercício ou não da gentileza pode sinalizar o quanto uma pessoa está comprometida com a produção de vivências cotidianas melhores. Uma vez que a melhoria do que vivemos no dia-a-dia passa necessariamente pela qualidade das relações estabelecidas entre as pessoas. Sendo assim, a gentileza, como está sendo abordada aqui , pode contribuir para que as relações humanas de forma geral sejam mais justas, mais éticas e mais prazerosas. Seja num ambiente de trabalho, social ou íntimo, o exercício da gentileza pode nos ajudar a entender o posicionamentos do outro, sua forma de agir, pensar e sentir, ou pelo menos nos tornar mais tolerantes para lidar com as diferenças e os conflitos.
Ser gentil, portanto, tem mais a ver com o desejo de contribuir para uma vida melhor para todos do que com querer agradar a todos. A gentileza seria, então, tanto fruto da nossa capacidade de observar e respeitar o outro quanto a nós mesmos. Não dá para ser gentil quando negligenciamos e anulamos a nós mesmos em função das necessidades de outra pessoa. Quando ignoramos nossas próprias necessidades nos tornamos reféns da mágoa e do ressentimento, e nesse estado dificilmente somos capazes de sermos gentis. Fazemos “papel de bobo” quando nos sujeitamos ao lugar de perfeitos, certinhos, bonzinhos, etc. Nesses papeis tendemos a nos esforçar para satisfazer os interesses alheios. Isso não tem nada a ver com ser gentil. Quando desenvolvemos consideração e respeito por nós e pelos outros aprendemos a reconhecer os sinais de exploração, de abuso, etc.
Enfim, ser gentil não é ser bonzinho, mas atuar no sentido de tornar a vida melhor, ou pelo menos mais palatável. O bonzinho que assume as responsabilidades de outro, e nunca diz não, não é gentil. Quando assumimos as responsabilidades de outra pessoa estamos permitindo que alguns paguem pelos erros de outros, ou que alguns lucrem com o trabalho e a dedicação alheia, e isso de forma alguma pode ser confundido com gentileza. Ao agirmos assim não estamos sendo éticos e, ao mesmo tempo, reforçamos valores como preguiça, egoísmo, acomodação e outros que não contribuem para um mundo melhor. Similarmente, quando nunca dizemos “não” estamos reforçando em alguém a ideia de que tudo é permitido, de que não há limites, de que a vontade dela é soberana o suficiente para passar por cima de tudo e de todos e isso, definitivamente, não é ser gentil!
Em resumo, a gentileza verdadeira pode ser reconhecida quando o resultado do seu exercício gera uma condição que é percebida como boa para os dois lados, para quem faz a gentileza e para quem a recebe. Quase sempre, quando se é gentil tem-se como retorno apenas um sorriso, um “obrigado”, ou a simples sensação de ter feito o que é correto. Para muitos esse retorno tão “pequeno” pode não parecer o suficiente para fazer do mundo um lugar melhor para todos… Mas pergunte a alguém que costuma exercer a gentileza. Ousaria assegurar-lhe que a resposta comprovaria uma feliz percepção: a de que o que a princípio parece tão pouco é capaz de transformar o dia de uma pessoa, e até mesmo a forma como ela encara a si mesma, os outros e a própria vida. Experimente!
Fonte:
https://www.psicologiasdobrasil.com.br/gentileza-e-felicidade-comum/
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