terça-feira, 19 de julho de 2016

Lei de cotas está ameaçada

Dr. José Carlos do Carmo, mais conhecido como Dr. Kal, é Auditor Fiscal do Trabalho da SRTE/SP (Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado de São Paulo) e coordenador do Programa de Inclusão da Pessoa com Deficiência. Quando o assunto é cumprimento da Lei de Cotas, seu nome aparece como uma das principais referências, não apenas pelo fato de ser o responsável pela fiscalização junto às empresas de São Paulo, mas também por ser um ferrenho defensor da inclusão e da política de cotas.
Na entrevista abaixo, realizada por Jaques Haber, sócio-diretor da i.Social, Dr. Kal destaca a importância da Lei de Cotas e afirma que os auditores fiscais estão cada vez mais preocupados com a qualidade das contratações. “A principal barreira que nós enfrentamos é a do preconceito; a barreira atitudinal”, afirma.
Leia abaixo:
1 – Nos explique como funciona o procedimento de fiscalização, passo a passo, até a empresa cumprir a Cota ou ser autuada.
Dr. Kal: A dinâmica da fiscalização inicia-se com a identificação das empresas. Em nosso caso, na SRTE/SP, daquelas que possuem matrizes no estado de São Paulo. As empresas que têm 100 ou mais funcionários (somando-se a matriz mais suas filiais) estão sujeitas ao cumprimento das cotas de funcionários com deficiência e, consequentemente, à fiscalização.
A primeira etapa da fiscalização é o que chamamos de fiscalização indireta, ou seja, é quando convocamos a empresa para comparecimento na SRTE/SP para demonstrar as informações referentes aos seus funcionários com deficiência. No caso da empresa não estar cumprindo o número de funcionários com deficiência de acordo com sua cota, emitimos uma notificação para que se cumpra a cota em até 90 dias.
Durante este período a empresa deve retornar a SRTE/SP para prestar contas sobre a evolução das contratações que estão sendo realizadas. No caso dela não cumprir sua cota durante este período, executamos a lavratura do auto de infração, ou seja, multamos a empresa. Importante salientar que a multa não é o objetivo da fiscalização, mas apenas a ferramenta que temos para pressioná-la a incluir pessoas com deficiência em seu quadro de funcionários.
Em determinados casos, quando enxergamos boa vontade da empresa em cumprir sua cota, mas percebemos que, mesmo com ações afirmativas, ela encontra sérias dificuldades para contratar, podemos abrir uma mesa de entendimento tripartite, ou seja, envolvendo a empresa, o sindicato dos funcionários e o sindicato patronal para a assinatura de um termo de compromisso com prazo maior para cumprimento da cota e com etapas bem definidas para a realização de ações de inclusão e metas de contratação. Durante este período, a qualidade da inclusão é fiscalizada.
2 – Quais são os principais desafios enfrentados na fiscalização da Lei de Cotas? Cito, por exemplo, uma decisão recente de um colegiado do TST isentando uma empresa do pagamento de multa, com base no argumento de que a empresa procurou de todas as formas contratar pessoas com deficiência, mas que não encontrou candidatos. Qual é a sua opinião sobre isso e o que essa decisão do TST acarreta para a Lei de Cotas?
Dr. Kal: Sim, talvez nosso desafio da fiscalização seja fazer a Lei ser cumprida e fazer com que esse cumprimento não se limite a simples contratação, mas que inclua também a oferta de condições de trabalho que sejam adequadas para as características do trabalhador com deficiência, assim como qualquer posto de trabalho deveria ser adaptado às características de qualquer colaborador.
Agora, sem dúvida, um dos principais argumentos que nós ouvimos das empresas para tentar justificar, ou não, o cumprimento da Cota é: procuramos e não encontramos. E algumas questões, de tanto serem repetidas, acabam sendo assumidas como verdadeiras; entretanto, se buscarmos um olhar científico baseados nos dados e na realidade, vamos verificar que, ao olhar os dados do IBGE, essa informação não procede.
Nós temos, segundo o IBGE, 23,9% da população brasileira com algum tipo de deficiência. Sabemos que, em quase 1/3 ou 1/4 desse percentual, estão incluídas as deficiências ditas leves, que não seriam suficientes para caracterizar a elegibilidade da pessoa para a Cota. Sabemos, também, que devemos fazer uma redução, tirando as pessoas que não estão em idade de trabalhar, mas ainda assim nós temos um contingente de pessoas que é muitíssimo superior ao potencial de vagas previstas pela Cota.
Então o argumento de que não existem pessoas não procede. O próprio IBGE mostra que, dentre as pessoas com deficiência, o percentual daquelas que estão trabalhando é bem maior do que aquelas que trabalham com registro em carteira, o que demonstra inclusive que muitas PCDs estão submetidas a condições ilegais de contratação no trabalho.

O percentual das pessoas com deficiência que estão trabalhando é bem maior do que aquelas que trabalham com registro em carteira, o que demonstra que muitas PCDs estão submetidas a condições ilegais de contratação no trabalho.

Respeitamos, no entanto, quando a empresa nos coloca essa informação. E o que a gente busca discutir é: o problema não está na inexistência de pessoas com deficiência em condições de trabalhar, mas sim em outros fatores. Dentre esses outros fatores, eu citaria uma visão preconceituosa. Aliás, acho que a principal barreira que nós enfrentamos é a do preconceito. A barreira atitudinal. E as empresas que não investiram minimamente na melhoria das condições de acessibilidade, não fizeram uma revisão profunda dos seus valores – inclusive no que se refere à aptidão das pessoas para o trabalho, continuarão tendo dificuldades para cumprir a Lei de Cotas e, muitas vezes, até de maneira sincera. Vão achar que essa dificuldade decorre da inexistência dessas pessoas, quando isso não é verdadeiro.
Em relação ao judiciário, não é a primeira vez que nós temos decisões que, em minha opinião, contrariam inclusive a Constituição Federal. Lembrando que a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência, que foi aprovada e promulgada no nosso país, possui status de emenda constitucional. E lá deixa bem claro que essas atitudes discriminatórias não devem ser aceitas.
Nós temos buscado ter uma aproximação maior com o poder judiciário, temos juízes e desembargadores bastante preocupados em utilizar os princípios da Convenção, bem como da recentemente aprovada Lei Brasileira de Inclusão, mas acho que ainda é um processo que exige das pessoas melhorarem a realidade da inclusão da pessoa com deficiência na sociedade – e em particular no trabalho, algo que se deve passar, inclusive, pela cabeça dos membros do judiciário. Nós continuamos a fiscalizar, isso não nos impede. Essas decisões não nos impedem de continuar fiscalizando.
3 – O eSocial (sistema que unifica o envio dos dados das empresas sobre seus trabalhadores para o governo federal) facilitará a fiscalização do Ministério do Trabalho em relação ao cumprimento da Lei de Cotas? De que forma?
Dr. Kal: Acredito que sim. O eSocial é um grande banco de dados que está sendo feito com a participação de diferentes entes do Governo Federal. A coordenação é da Receita Federal, o que significa que ela será tratada com bastante seriedade, porque tudo o que implica em arrecadação é tratada de forma diferenciada ou privilegiada. Nós temos aí um grande banco de dados em que a sonegação de informações será mais difícil. Sobre todos os aspectos, acredito na questão do cumprimento da Lei de Cotas.
O eSocial está em fase de implantação e dependerá de uma série de ajustes – inclusive, eventualmente, na própria legislação que regulamenta hoje esse processo de autuação. O que eu posso dizer é que nós do Ministério do Trabalho, independentemente do eSocial que poderá nos auxiliar, já estamos trabalhando na perspectiva de virmos a desenvolver mecanismos de fiscalização via internet.
Nós já sabemos, com base nos dados da RAIS e do CAGED, quais são as empresas que cumprem e quais são as empresas que não cumprem a Lei de Cotas. E a ideia é que não tenhamos que, necessariamente, convocar essas empresas a comparecer no Ministério, mas que possamos à distância, via internet, fazer a notificação, conceder prazos e, eventualmente (se esses prazos não forem respeitados), autuar a empresa.

Na segunda parte da entrevista, Dr. Kal comenta sobre a importância da Lei de Cotas para a contratação de pessoas com deficiência e o papel da Lei Brasileira de Inclusão para o desenvolvimento desses profissionais. Acompanhe:
1 – Qual é o papel da Lei de Cotas na inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho?
Dr. Kal: O papel é da mais alta importância. Estou sinceramente convencido de que se não fosse pela Lei de Cotas, certamente nós não teríamos avançado o tanto que avançamos. Aliás, nós sempre destacamos o cumprimento da Lei de Cotas, sem deixar de reconhecer que se trata de uma questão complexa, principalmente quando a gente pensa que não basta contratar – há de se ter qualidade nesse processo de inclusão. Mas a gente sempre lembra de que estamos falando de responsabilidade legal. As empresas tem que cumprir a reserva legal de vagas para pessoas com deficiência, assim como são obrigadas a cumprir outras tantas questões legais.

Nós sempre destacamos o cumprimento da Lei de Cotas, sem deixar de reconhecer que se trata de uma questão complexa, principalmente quando a gente pensa que não basta contratar – há de se ter qualidade nesse processo de inclusão.

2 – De que forma a Lei Brasileira de Inclusão contribui para inclusão de pessoas com deficiência no mercado de trabalho? Por exemplo, o novo conceito sobre o que é deficiência, sob o prisma da CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade), ao invés da CID (Classificação Internacional de Doença) contribui para ampliar as possibilidades de inclusão?
Dr. Kal: A questão da classificação de funcionalidade nós já vínhamos buscando utilizá-la porque ela já está colocada para nós desde que a Convenção da ONU passou a vigorar como emenda constitucional em nosso país. Do ponto de vista prático, ainda utilizamos pouco porque estamos desenvolvendo ferramentas e buscando entendimento de como se utilizar paradigmas propostos pela Convenção – e agora pela Lei Brasileira de Inclusão. Acredito que, sobretudo, essa questão da classificação vai tornar o processo mais justo. Nós conseguiremos, de fato, mais justiça na definição de quem deve e quem tem direito (ou não) a ser incluído na Lei de Cotas.
Agora há outras questões e outros artigos da Lei Brasileira de Inclusão que eu considero que contribuirão para o avanço do processo de cumprimento da Lei de Cotas. Sem ter uma visão persecutória, mas, dentre outros artigos, tem um que diz que as empresas e as pessoas que agirem de forma discriminatória em relação às pessoas com deficiência estão passíveis de serem condenados de um a três anos de prisão. Portanto, objetivamente, alguém que se recusar a contratar um profissional só porque ele tem uma deficiência estará sujeito a ser preso. Isto é um avanço memorável e, certamente, contribuirá para diminuição do preconceito.
3 – Pesquisa recente realizada pela i.Social junto a profissionais de RH apontou que 90% das empresas contratam pessoas com deficiência motivadas pela Lei de Cotas, o que demonstra a importância da cota para a contratação de pessoas com deficiência. Por outro lado, temos visto sucessivas tentativas de boicote corporativo e legislativo contra essa legislação. A Lei de Cotas está ameaçada?
Dr. Kal: Primeiro eu reafirmo que a Lei de Cotas é das ferramentas mais importantes no processo de inclusão. Vocês não imaginam a quantidade de tentativas que houve junto ao Congresso Nacional paraacabar com a Lei de Cotas (e que continuam acontecendo). A maioria delas não diz algo como “vamos acabar com a Lei de Cotas”, mas busca subterfúgios que, no fundo, tirariam a responsabilidade dessas empresas em contratar pessoas com deficiência.
Isso tem acontecido e é importante que a gente esteja atento. Felizmente, até agora nenhuma dessas tentativas foi bem sucedida. A gente se mantém firme e forte, e isso é fundamental. Com isso, eu me lembro da história do cinto de segurança: o uso do cinto começou a ser obrigatório há alguns anos e quem não o utiliza está sujeito a multa. Em minha opinião, a multa foi fundamental para que as pessoas passassem a usá-lo. Hoje em dia, nós colocamos o cinto de segurança porque entendemos que ele é fundamental para nossa própria segurança. No começo não foi assim, isso foi incorporado. Eu tenho esperança de que, na medida em que as empresas forem contratando as pessoas, habituando a sua convivência, elas perceberão que isso é bom para todos.

A maioria delas não diz algo como “vamos acabar com a Lei de Cotas”, mas busca subterfúgios que, no fundo, tirariam a responsabilidade dessas empresas em contratar pessoas com deficiência.

Como já foi dito aqui no início e, sem nenhuma visão romântica a respeito das pessoas com deficiência (pois temos profissionais de todos os perfis – entre eles, bons e ruins), eu percebo e entendo que a presença da pessoa com deficiência no ambiente de trabalho é um fator de estímulo aos demais colegas em termos de melhorar a sua produtividade. Sobretudo porque contribui para humanizar o ambiente de trabalho.
Ao longo dos últimos tempos, principalmente com essa questão do neoidealismo, foi se perdendo o que os livros de história chamam de “solidariedade operária” na relação entre os trabalhadores. E a presença da pessoa com deficiência mostra que essa solidariedade, esse humanismo nas relações, tem sido recuperada de acordo com diversos relatos que temos escutado das empresas que contratam. Se hoje as empresas cumprem a cota por medo de serem multadas, espero que, no futuro, elas percebam os benefícios de contratar pessoas com deficiência.
Dr. José Carlos do Carmo, mais conhecido como Dr. Kal, é Auditor Fiscal do Trabalho da SRTE/SP (Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Estado de São Paulo) e coordenador do Programa de Inclusão da Pessoa com Deficiência.

FONTES:

http://blog.isocial.com.br/fiscalizacao-e-cumprimento-da-lei-de-cotas-entrevista-com-dr-kal-srtesp/

http://blog.isocial.com.br/a-lei-de-cotas-esta-ameacada-entrevista-com-dr-kal-srtesp-parte-2/

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