Comunicação inclusiva para quem: herói ou
coitadinho
Por Leandra Migotto Certeza *
Segundo dados do Censo de 2010 do IBGE,
existem de 46,6 milhões de pessoas com deficiência (24% da população). Só no
Estado de São Paulo são 9,3 milhões. Mas embora o conceito de sociedade
inclusiva seja garantido pela Constituição Brasileira e referendado por
tratados internacionais ratificados pelo país, não mereceu, ainda, uma difusão
mais ampla, permanecendo desconhecido em seus fundamentos e em suas implicações
na vida cotidiana, como Direitos Humanos.
A deficiência ainda é vista pela sociedade
como algo que falta em alguém, e nunca pelo prisma da diferença humana inata,
que por suas singularidades, requer atenção às especificidades quanto à forma
de comunicação, mobilidade, ritmos, estilos e diversas maneiras de construir o
conhecimento e os relacionamentos sociais. Isso acontece por meio do
desenvolvimento de suas potencialidades, com total autonomia e independência em
uma sociedade acessível a todas e todos, de qualquer idade, etnia, credo,
gênero, orientação sexual e nacionalidade.
Estudos comprovam que antes do Ano
Internacional das Pessoas com Deficiência, em 1981, a abordagem da mídia
brasileira sempre pendeu mais pelo enfoque da vitimização, reforçando cada vez
mais o estigma e o estereótipo dessa população. Porém, hoje ainda existem
muitas reportagens preconceituosas, sensacionalistas, piegas e, principalmente,
que reforçam a visão assistencialista, com uma abordagem pelo olhar da vítima
ou do herói, que tem uma lição de vida para contar. “Um bom caminho para se
conseguir um espaço na grande mídia sobre pessoas com deficiência é uma
história bonita. Nem precisa ter um gancho na notícia. Basta falar de alguém
que conseguiu vencer uma barreira muito grande e tem uma trajetória emocionante
e espetacular, a qual todas as pessoas param para ouvir; e já ganha uma matéria
para o Jornal Nacional ou Fantástico”, conta a produtora.
“Hoje,
o que faz falta para os jornalistas do Jornal Nacional é mostrar um pouco mais
o cotidiano das pessoas com deficiência, como por exemplo, as dificuldades
corriqueiras de transporte e comunicação, de como é difícil para uma pessoa se
locomover, entre outros aspectos. E isso nós não fazemos muito”, afirmou Ellen
Nogueira, produtora da Rede Globo de Televisão, durante o IV Encontro de
Gestores de Comunicação do Estado de São Paulo, promovido pela Secretaria de
Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência na cidade de São Paulo.
Com uma proposta bem diferente da grande
mídia, a Revista D+, apresentada por Denilson Nalin, durante o Encontro, traz a
inclusão potencializando mais as pessoas, com ou sem deficiência, ajudando na
formação de opinião, e procurando diminuir preconceitos e desinformações. Para
ele, o tema está cada vez mais presente nos esportes, na televisão, em filmes,
nas redes sociais, entre outros canais, como qualquer outro tema. “O site da
revista é totalmente acessível, inclusive com reportagens e notícias da revista
impressa também em vídeo em Língua Brasileira de Sinais (para o surdo não
alfabetizado em Língua Portuguesa) e legendas. Hoje, já temos mais de 30 mil
leitores”.
Ao se abordar o tema de jornalistas com deficiência,
a plateia questionou sobre como é a presença desses profissionais nas redações
da TV Globo. A produtora respondeu que existe a jornalista Flavia Cintra (que
tem tetraplegia) trabalhando no Fantástico. Mas há uma preocupação da TV em não
expô-la a só fazer matérias com deficiência, porque senão parecerá que ela foi
colocada lá apenas para falar sobre isso. “Ela tem que falar sobre tudo, porque
é uma jornalista como qualquer outra. Mas teve uma matéria com a atleta Laís
Souza, que ficou com deficiência, em que ela foi pegar onda pela primeira vez
depois do acidente, em uma prancha adaptada. E esse trabalho é lindo. Nesse
caso, a Flavia estava lá”.
Mídia acessível
A acessibilidade não é apenas um instrumento
para garantia de direitos, é um direito por si só. “Ouvir é usar a audição.
Depende dos ouvidos, é o som chegando até o cérebro. Tocou a campainha da casa
do vizinho. Você ouviu? Mas fez diferença para você ou acrescentou algo no seu
dia? Escutar é prestar atenção, assimilar, compreender. Dar um significado para
a informação que chega. Você não precisa ouvir para escutar. Pode ler nos
lábios ou entender via Língua Brasileira de Sinais, por exemplo”, esclarece a
publicitária, escritora e blogueiraLak Lobato, durante sua palestra A Comunicação Sonora em um
Mundo Silencioso. Ela esteve
surda por 20 anos e hoje é usuária de implante coclear (http://desculpenaoouvi.laklobato.com).
Porém, atualmente, caso você tenha
deficiência visual ou surdez, ainda será ignorado pelos meios de comunicação da
grande massa, que não cumprem o artigo 21 da Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência, instituída pela ONU e ratificada como Emenda
Constitucional pelo país; e mais especificamente, a Portaria 310 de 2006, que
estabelece recursos de acessibilidade na programação veiculada nos serviços de
radiodifusão de sons e imagens e de retransmissão de televisão (uma concessão
pública). Ellen disse que está sendo discutido com o Governo Federal a questão
de maior acessibilidade dentro da programação da TV Globo, mas não é algo que
já esteja definido. “Eu sei que estudos existem sobre o tema, mas nada foi
efetivado”.
Na televisão, a audiodescrição (recurso que
consiste na descrição clara e objetiva de todas as informações que
compreendemos visualmente e que não estão contidas nos diálogos) começou a ser
implementada em julho de 2011, depois de grandes embates entre pessoas com
deficiência visual e audiodescritores de um lado, radiodifusores e Ministério
das Comunicações do outro. De duas horas diárias, como era previsto por lei
para ser implementado em 2008, chegando a 100% da programação televisiva em 10
anos, a carga horária de programação audiodescrita foi drasticamente reduzida
para insignificantes 2 horas semanais a partir de julho de 2011 e ampliada para
4 horas semanais em julho de 2013.
O Ministério Público Federal entrou com ação
em 2013, objetivando que a carga horária fosse revista, para que ser retomasse
o cronograma de implementação anterior e que em 11 anos toda a grade de programação
televisiva fosse acessível às pessoas com deficiência visual e a outros
públicos que do recurso se beneficiam. Claro que isso não foi em frente. Dia 25
de setembro de 2014, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a portaria que
obrigava emissoras de TV a disponibilizar 100% de seu conteúdo com
audiodescrição em 11 anos. Preferiu voltar atrás e considerar o cronograma
anterior, de chegar em até 20 horas semanais em 10 anos.
‘Portador’
ou ‘necessidades especiais’
Durante o Encontro, Ellen afirmou que 99% dos
jornalistas não sabem nada sobre pessoas com deficiência, e principalmente, quais
são as terminologias corretas, entre outros assuntos. “Os jornalistas do Jornal
Nacional, recentemente, erraram ao falar ‘surdo-mudo’, que não existe.
Recebemos uma enxurrada de críticas e aprendemos com isso. Também demos uma
errata sobre o uso do termo ‘portador de necessidade especial”. Depois de
pesquisar sobre a Convenção da ONU para entender sobre o assunto, a produtora constatou
que existem jornalistas que não sabem falar sobre o tema. Para ela, hoje a
mídia ainda tem muita responsabilidade sobre a terminologia errada ser repetida
pelas pessoas. “Por isso, disseminar os conceitos corretos veiculados durante
este evento será muito importante para nós aprendermos a tratar as pessoas com
deficiência com mais respeito”. O intérprete presente na sala completou a fala
da produtora, e explicou que não é certo utilizar linguagem de sinais para se
referir às pessoas com deficiência auditiva ou surdez. A Libras é a segunda
língua oficial do Brasil.
O público recebeu um folheto com
recomendações sobre a terminologia inclusiva para orientar na produção de
documentos e matérias que mencionem as pessoas com deficiência. Maria Isabel da
Silva, jornalista e gestora de comunicação institucional da Secretaria de
Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência, também realizou uma palestra
enfocando a falta de informações corretas sobre as terminologias e mostrando um
panorama sobre a história mundial e nacional do movimento social das pessoas com
deficiência. A Secretaria disponibiliza material sobre o tema no endereço http://www.pessoacomdeficiencia.sp.gov.br/.
*Leandra Migotto Certeza é jornalista, há 15 anos atuando nas
principais revistas do setor, tem deficiência física, trabalha como consultora
na área da inclusão e mantém os blogs: Caleidoscópio e Fantasias
Caleidoscópicas. Esteve no
Encontro de Gestores de Comunicação a convite da D+.
Fonte: http://demais-revista.com.br/
Fonte: http://demais-revista.com.br/
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