Texto de Leandra Migotto Certeza*
#descricaodaimagem: Então com 22 anos, Leandra trabalhou em uma de suas primeiras reportagens como jornalista em uma denuncia sobre a total falta de acessibilidade física nos meios de transportes públicos (ônibus) na cidade de SP. A foto mostra Leandra de costas tentando subir nos degraus da escada do ônibus. Ela está com uma das mãos levantadas colocando a muleta em cima de um degrau e a outra mão no chão. O ônibus na cor branca está com a porta da entrada aberta e estacionado. O tamanho do ônibus e principalmente dos degraus evidenciam a dificuldade gritante de uma pessoa com deficiência como Leandra (que tem 96 centímetros) em usar o veiculo de transporte. Leandra veste uma blusa vermelha, uma calça preta e tem a pele branca, os olhos e cabelos castanhos (Foto: Arquivo pessoal)
Quando eu nasci, em 1977, muitas mudas já tinham sido plantadas em solos afofados por mãos calejadas. Todas regadas com suor e lágrimas: de dores e alegrias. No solo, muitas sementes preciosas, que não chegaram a germinar, alimentaram com encorpados nutrientes, as fortes raízes de pequenas árvores que começavam a crescer. Depois vieram as folhas. Uma a uma brotando.
Tudo só foi possível, graças à luz do sol, ao frescor das águas, a leveza da brisa, a força das chuvas, e principalmente, ao olhar atendo de poucos, mas fortes mulheres e homens de coragem. Cada um doou um pedacinho de sua alma à aquelas mudinhas cheias de determinação em viver e mostrar ao mundo a transformação de sonhos em realizações, que nascem da união entre seres humanos.
Mãos, braços, mentes, próteses, pés, corações. Pernas, rodas, olhos, órteses, ouvidos, muletas, sentimentos. Ideias, aparelhos, bengalas, cães-guia, ações. Todos juntos cultivaram as mudas, acompanharam o crescimento de cada caule, de cada galho, de cada folha.
Os guerreiros e saudosos amigos com deficiência: Rui Bianchi do Nascimento, Sérgio Cunha Lisbôa, Maria de Lurdes Guarda, Araci Nallin, Maria Neide de Palma, Sérgio Del Grande e muitos outros de igual importância, viveram cada dia para plantar árvores da inclusão, da cidadania, da autonomia, da independência, da tolerância, da diversidade, da fraternidade, do amor, da solidariedade, da união, da gratidão, da persistência, da fé, e da PAZ.
Os queridos amigos e amigas com deficiência: Messias Barbosa, Maria Amélia Galan, Gilberto Frachetta, Ana Rita de Paula, Elza Ambrózio, Suely Satow, Claudia Sofia Pereira, Doralice Simões, Francisca das Chagas Felix de Sousa, Lia Crespo, Flavia de Paiva Vital, Elisabete Araki, Tuca Munhoz, Francilene Rodrigues, Galeno Silva, Pérola Ventura, Sidney Tobias de Souza, Salete Fernandes, Juovelina Nunes, João Bentin, Marco Antonio Pellegrini, Izabel Maior, e muitos outros de igual importância, vivem hoje para polinizar cada semente de inclusão plantada por seus amigos.
Hoje, eu e muitas outras pessoas com deficiência; começaram a sentir o perfume de suas flores, mas só nossos filhos, sobrinhos, primos, netos, e bisnetos colherão seus primeiros frutos. Para manter as árvores da inclusão vivas é preciso cultivá-las e preservá-las sempre. Afofar o solo, cortar as ervas daninhas, matar os parasitas, regar, adubar, tirar as folhas mortas. E deixar o solo, a chuva, e o vento agirem na medida certa do amanhecer ao anoitecer. É uma intensa e eterna vigília. É uma ação que requer muita perseverança, tenacidade, esperança, força de vontade, determinação, e principalmente, fé em abundância.
Quando vemos garotos e garotas, jovens e crianças com deficiência, que vestiram a camisa da inclusão pela primeira vez – mas já abraçaram os troncos dessas árvores com tanta garra – creio que devemos sentir muita alegria em saber que as sombras frondosas das antigas inspiraram o plantio de novas mudas. Mas é preciso urgentemente que esses meninos e meninas com deficiência, NUNCA se esqueçam da floresta que seus antepassados plantaram.
Cada árvore tem uma história, uma raiz, uma idade, uma trajetória. Deve-se sempre ouvir – atentamente e respeitosamente – o que estes antepassados têm a dizer sobre as batalhas que enfrentaram pela inclusão, pois muitas guerras ainda serão vencidas. Cada folhinha nova revigora essa floresta, mas sem raízes que as sustentem com firmeza, nenhuma flor nascerá e nenhum fruto surgirá. Os jovens guerreiros da inclusão têm a obrigação de aprender as lições com quem deixou suas marcas de sangue pelas estradas da diversidade.
Os movimentos sociais – protagonizados por pessoas com deficiência – que se articularam mais a partir do Ano Internacional das Pessoas com Deficiência, em 1981, como: o CPSP – Clube dos Paraplégicos de São Paulo, ADEVA – Associação de Deficientes Visuais e Amigos, FCD – Fraternidade Cristã de Doentes e Deficientes, o NID – Núcleo de Integração do Deficiente, MDPD – Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes, ONEDEF – Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos, FENEIS – Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos, APCB – Associação de Paralisia Cerebral do Brasil, CVI – Centros de Vida Independente, Conselho Estadual para Assuntos da Pessoa Deficiente, Conselho Municipal da Pessoa Deficiente, entre outros de igual importância, foram os principais responsáveis por mudanças significativas na história mundial e nacional.
Muitas batalhas foram travadas, barreiras transpostas e dificuldades vencidas para que hoje; os jovens com deficiência (adquiridas ou não), seja de qual for sua classe social, idade, gênero, etnia, orientação sexual ou nacionalidade possam usufruir os vários direitos conquistados.
Os jovens de hoje têm o dever de conhecer a única história desses movimentos sociais contadas somente pelas bocas dos “dinossauros” da inclusão. Pois, muitos deles nem eram nascidos, ou eram crianças de colo, quando as primeiras mudas destas árvores foram plantadas. Estes jovens não têm o direito de renegar o verdadeiro e único passado de suas vidas! Só poderão continuar plantando essas árvores em solos férteis adubados pelos seus antepassados. Mudas em solos áridos não vingam.
É claro que muitas mudanças precisam surgir, discussões devem ser travadas, novidades devem ser testadas e outras vozes devem ser ouvidas. O rio segue seu curso, mas a paisagem muda com o passar dos tempos. A evolução é inevitável e muito benéfica, desde que beba na fonte daqueles que abriram suas margens com suor e lágrimas. Revolucionar é fundamental. Quebrar com estruturas arcaicas também. Nada é imutável. Ninguém é perfeito. Nenhuma ideia é universal e inquestionável. Os valores do amor, paz, cidadania, autonomia, independência, liberdade, e fraternidade podem vestir novas roupas, desde que NUNCA percam suas essências.
Creio que os “super-jovens” do século XXI precisam aprender as diferenças básicas e fundamentais entre: políticas públicas e projetos isolados; integração e inclusão; manifestação política popular e eventos privados ou do terceiro setor; acessibilidade e desenho universal; pessoas com deficiência física e pessoas com deficiências em geral; associações e órgãos públicos; assistência social e direitos sociais; assistencialismo e empoderamento; entre outras.
Também precisam conhecer o significado de conceitos básicos e fundamentais como: democracia, políticas afirmativas, movimento social, sociedade civil organizada, discriminação, desigualdade social, preconceito, entre outros. Além de saberem como realmente funcionam os poderes e serviços públicos, as leis, e ações relativas às pessoas com deficiência, antes de falarem aos quatro cantos, em nome de mais 14,5% da população brasileira e 10% da mundial.
E também creio que cabe aos “dinossauros” da inclusão muita paciência, lucidez, tranqüilidade, flexibilidade, espírito de equipe, abertura ao novo, jogo de cintura, e diplomacia para ouvir com muita atenção o que a nova geração tem a dizer. Dar bronca quando preciso, e corrigir duramente os erros por eles cometidos, mas nunca se colocarem em cima de pedestais, desejando serem glorificados e reverenciados. O isolamento dos grupos que se dizem donos da verdade, com certeza absoluta, também não leva a lugar algum, a não ser a um retrocesso no processo de inclusão duramente conquistado.
Os conflitos só são saudáveis quando os dois lados têm igual número de argumentos. Ninguém deve ser simplesmente ignorado por ser jovem, assim como ninguém deve ser duramente pisoteado por ser velho. Todos vivenciam experiências enriquecedoras que somente trocadas, compartilhadas, multiplicadas, somadas, misturadas, divididas, dialogadas, e discutidas ganharão força para continuarem plantando muitas outras árvores da inclusão, tão necessárias quanto as que fazem parte da atual floresta da DIVERSIDADE!
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Comentário de Izabel de Loureiro Maior*
Conversa franca entre os “dinossauros” da inclusão e os “super-jovens” do século XXI.
O melhor das lutas coletivas é saber que se renovam, que se espalham, que causam polêmicas, mas também ganham novos adeptos. Os mais antigos buscaram o novo, a transformação, e ela está chegando, em ritmo lento, mas suficiente para desestabilizar o que já foi superado. É assim em qualquer movimento social, talvez mais difícil quando, além de enfrentar a discriminação, faltam condições de acessibilidade ao aprendizado e às novas práticas.
É com o coração aliviado que faço esse comentário. Seu texto é límpido, tem conteúdo para muitas discussões, oferece a sua opinião de observadora e ativista dos Direitos Humanos. A geração que me antecedeu deixou a inquietação como herança. Com eles ganhamos espaços antes impermeáveis. Trocamos as sedes do movimento, que nasceram nas entidades de atendimento, por espaços sociais integrados. Tivemos a sorte de acompanhar as mudanças internacionais e adotamos a inclusão. Falta ultrapassar a luta por nossa causa e nos motivarmos para estar em outras frentes de conquistas sociais. São a solidariedade e o respeito inter-geracional que irão fazer com que o mundo seja naturalmente menos hostil.
A sua geração vive na era do conhecimento, tem mais condições de garantir a democracia e a cidadania. Congratulações e bem-vinda ao grupo que sempre foi seu, mesmo antes de 1977, porque é o grupo de todos nós de alma inquieta.
*Izabel de Loureiro Maior é professora de medicina na UFRJ, foi a primeira pessoa com deficiência a comandar a Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Em 2010 recebeu o Prêmio de Reconhecimento pelo Trabalho por um Continente Inclusivo - OEA - Organização dos Estados Americanos. Também lançou o livro e filme-documentário História do Movimento Político das Pessoas com Deficiência no Brasil.
Sobre a autora:
Leandra Migotto Certeza é escritora, poeta, jornalista e editora. Bacharel em Comunicação Social pela Universidade Anhembi Morumbi desde 1999 e em Jornalismo Literário e Escrita Criativa desde 2018. É Ativista em Direitos Humanos das Pessoas com Deficiência, desde 1998 e orienta alunos em Faculdades e Universidades no Brasil e no exterior. Idealizou a “Coletiva Girassol de Escritoras com Deficiência” realizando Oficinas e Cursos sobre Escrita de Memórias, Biografias e Autobiografias, e faz parte da equipe do Museu Vozes Diversas, onde apresentou o programa de entrevistas “Café Polifônico”.
Leandra participou do "Sexto Congresso Internacional Prazeres Dês-Organizados - Corpos, Direitos e Culturas em Transformação" (promovido pela IASSCS - Associação Internacional para o Estudo da Sexualidade, Cultura e Sociedade, em Lima no Peru em 2007), e recebeu o prêmio de segundo lugar na Categoria: Apresentação de Pôster sobre o seu projeto: "Fantasias Caleidoscópicas", onde abordou o tema: Sexualidad y Mujeres con Discapacidad. Também foi uma das quatro brasileiras premiadas no Concurso de Periodismo Y Comunicación da Sociedad Para Todos na Colômbia em 2003, com a sua crônica “Ser e Estar na Educação”.
Como estudante de escrita, participou de oficinas de Escrita Criativa, Crônicas de Viagem e Clube da Escrita com Fernando Ferrari no SESC Pinheiros; e de cursos Jornalismo Literário - Narrativas Biográficas e Jornadas do Heroi e da Heroína com Edvaldo Pereira Lima. Também realizou os cursos de Roteiro para ficção e documentários, com Newton Cannito e Lucíola Meireles no SENAC e de Produção de Roteiro na Raiz Produções. Concluiu os cursos de Formação de Escritores na Casa das Rosas do Governo do Estado de São Paulo; e de Jornalismo de Arte e Cultura no Itaú Cultural. Escreveu o prefácio do livro: “Trabalhando com a Diferença” (Espaço da Cidadania e Sindicato do Metalúrgicos de Osasco); e escreveu as quarta capas dos livros: “Meu andar sobre rodas” de Tatiana Rolim (Áurea Editora), e “As mais belas poesias do novo milênio” de Adriana Alves de Araujo (Casa do Novo Autor Editora) lançado na Bienal do Livro em 1998.
Leandra trabalhou em empresas bem pequenas e também em multinacionais, além de empregos temporários e free lancers em diversos locais. Em sua trajetória profissional exerceu as funções de: revisão de textos, colunista, repórter, jornalista, arte educadora, monitora artística, atendimento ao público e ao leitor, além de consultora e palestrante em seminários e congressos (no Brasil e no exterior) em empresas, escolas e/ou universidades.
Foi Co-Editora e jornalista da revista Ciranda da Inclusão sobre Educação Inclusiva e como Repórter da revista Incluir (Editora Ciranda Cultural) em 2010. Também foi Editora da Revista e Site Sentidos (Áurea Editora / Editora Escala) sobre inclusão de pessoas com deficiência de 2000 à 2002; Colunista da Rede Inclusive (portal sobre inclusão) de 2009 à 2012, e Editora-chefe da Revista Síndromes Artigos Técnicos sobre Deficiência (2011 à 2013). Também foi Repórter Voluntária REDE SACI/USP por 10 anos. Publicou diversas matérias e artigos no Portal Setor 3 (SENAC); Revista Gente Especial (sobre inclusão); e Revista Caros Amigos. Foi editora do Boletim Informativo da Fundação Dorina Nowil para pessoas com cegueira.
Leandra também foi Professora em oito edições do Curso Diversidades no Instituto de Psicologia Sades Sapientiae. Trabalhou como colunista voluntária para a revista feminista “AzMina” e para o portal sobre acessibilidade “Sem Barreiras”. Escreveu artigos para o Observatório Internacional sobre Sexualidade das Pessoas com Deficiência (Peru), para o Fundo de Ação Urgente - América Latina e Caribe (FAU - AL), e para a Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo. E participou voluntariamente de programas de entrevistas e reportagens na: Rede Globo, TV Cultura, TV Assembleia Legislativa (SP), TV Câmara Municipal (SP), TV de Osasco (SP), TV Educativa (Governo Federal), TV UNESP Bauru - SP.
Leandra nasceu em 1977 com uma deficiência física rara que fragiliza a sua estrutura óssea, a Osteogenesis Imperfecta. Teve mais de 50 fraturas em várias partes do seu corpo, foi segregada em escolas, mas também estudou em colégios regulares junto com todas as crianças. Foi medalhista de ouro em campeonatos de natação, viajou sozinha para fora do Brasil, andou de ônibus e metrô e pelas ruas sem acessibilidade das cidades, desfilou quatro anos em Escolas de Samba, entre outras ‘loucuras’ que fez pela vida.
Em sua juventude, Leandra soube aproveitar bem a vida cultural e social, curtindo casas de shows, teatros e bares, para espanto de quem não acreditava que ela passaria de uma semana no Planeta Terra. Com a estatura de 96 cm, caminhou por muitos anos com auxílio de um par de muletas, e hoje usa uma cadeira de rodas para se locomover. Vive na cidade de São Paulo com seu marido, Marcos dos Santos. Não se considera melhor ou pior do que ninguém, e muito menos um exemplo de superação! Já está incluída na sociedade e luta diariamente para combater o capacitismo (preconceito e discriminação contra pessoas com deficiência) estrutural!
Escreve desde os 9 anos, poesias, crônicas, contos e acredita que vida é um desafio trágico e gostoso. É elogiada por seu carisma e talento para conversar com os leitores e o público sobre como vive os desafios da vida em seu blog: “Caleidoscópio”. “Cadê a jornalista” é o seu primeiro livro que abre a Coleção Janelas que terá mais obras sobre diferentes fases da sua vida.
Portifólio da Carreira: https://linktr.ee/leandracaleidoscopica.
Perfis sociais:
https://www.instagram.com/leandracaleidoscopica/
ou https://www.facebook.com/leandra.migottocerteza
Coletiva Girassol: https://sites.google.com/view/coletiva-girassol/.
Museu Vozes Diversas: https://www.youtube.com/vozesdiversas
Revista AzMina:
https://azmina.com.br/author/leandra-migotto-certeza/
Depoimento no Museu da Pessoa:
https://acervo.museudapessoa.org/pt/conteudo/historia/leandra-suave-diferenca-166281
Historicamente vistas como desviantes do normal, a deficiência e, consequentemente, as pessoas com deficiência eram percebidas como doentes, objeto da assistência e das propostas de cura. com a emergência do movimento sociopolítico e o do protagonismo das pessoas com deficiência, a conceituação da deficiência abandonou o campo biomédico passando a constructo social. dessa forma, a questão ganhou contornos de direito à diferença, de responsabilidade coletiva e da agenda política dos direitos humanos.