quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Resenha-crônica

Falta de amor

Por Leandra Migotto Certeza

Sou uma mutação. Genética. Não fui abortada. Em 1977 se escrevia à máquina, imprimia-se no mimeógrafo, respeitava-se o professor, usavam-se roupas coloridas e ouvia-se MPB ‘de primeira’. Vivia-se anestesiado com o suposto fim dos anos de chumbo (que nos assombra até hoje).

Não sou a regra. Sobrevivi quando a medicina me sentenciou. Cresci em uma família com valores. Não apenas materiais, mas principalmente, éticos. Quebrei vários ossos, andei com 5 anos, cresci só até 96cm. Nos anos 30 teria sido esquecida no quartinho dos fundos. No início do século XX ficaria trancada em uma igreja. Na Idade Média teria sido afogada ao nascer. E o pior, se fosse miserável (que palavra horrenda!!) HOJE, é bem provável que estaria morta.
Mudei.

Tudo muda. Todos mudam. A vida muta, se transforma. Procuro ‘equilíbrio emocional’ na era da ‘depressão de massa’. Amo. Sinto raiva. Revolta. Tenho calma. Espero. Ando (quando consigo em uma cidade construída para o suposto padrão) em cadeira de rodas, mas já fui bem ágil com um par de muletas.

Mudei, mas permaneci.

O diferente sempre assusta porque incomoda. A imperfeição não tem lugar na sociedade da beleza e da simetria. Acredito na solidariedade como um dos únicos sentidos da vida. Temo a artificialidade das pessoas em um mundo tão egoísta.

Sobrevivo 32 anos, exclusivamente, à minha força de vontade - sem sentido ou razão (?) - e à convivência ‘saudável’ com o lado mais altruísta do ser humano (ele existe sim, caros psicanalistas!). Em meio às enormes frustrações, culpas, angústias e, principalmente, inseguranças, minha família de sangue e de criação; além dos verdadeiros amigos, sustentam meus desejos e me proporcionam ‘pequenas-grandes’ realizações.

Confesso que não sei como conseguir chegar até aqui e para onde vou, mas sei que vale a pena ser e estar em um corpo disforme, com ossos frágeis, menor do que uma criança de 3 anos. Pode ser masoquismo ou criatividade. Não sei. Só não quero ver a humanidade se auto-destruir.

Mata-se por um par de tênis, fechada no trânsito, uma compra vestindo bermudas, cigarro de maconha, um par de chifres posto pela mulher, ou se aniquila o outro, por absolutamente NADA. Morre-se por falta de tudo. Teto, chão, comida, roupas, cobertor, calçados, escola, trabalho, hospital...

Frente a esta única e dura realidade, pensemos sobre o que Eugène Enriquez, professor de sociologia da Universidade de Paris 7 diz: as nossas sociedades não estão doentes apenas por não conseguirem resolver o problema do desemprego, por serem cada vez mais desiguais, por deixarem partes inteiras da população na mais completa privação, a ponto de algumas pessoas já não viverem, mas apenas sobreviverem. Elas sofrem da doença da falta de amor. Nossa cultura liberal esqueceu que o amor, a amizade, o respeito, a deferência, a consideração pelo outro constituíram o cimento indispensável para sua consistência e permanência. O homem moderno não sabe o que fazer dele. Volta-se contra a sociedade, contra os outros, contra si mesmo, sem enxergar que faz parte disso tudo e que o cultiva a cada dia.

Só não compreendo (ainda) porque os autores de “Mutações – ensaios sobre as novas configurações do mundo”, coletânea organizada por Adauto Novaes (editora AGIR e Edições SESC - 2007), falam em ‘contemporâneo’ se a vida não tem linha do tempo... Vivemos em um só mundo, um só planeta (não sei até quando...) cheio de deuses e diabos dentro de todos os seres humanos. É por isso que ler o que estes caras e madames falam é tão instigante e extremamente enriquecedor!

Descrição da imagem: foto minha junto com meu noivo Marcos dos Santos, felizes, sorrindo. Close dos nossos rostos colados, cheios de AMOR. Eu estou de blusa vermelha e ele camiseta cinza e de óculos. Fomos pegos de susto por nós mesmos.

2 comentários:

Francisco Castro disse...

Olá, gostei muito do seu blog. Ele é muito bom.

Parabéns!

Um abraço

Francisco Castro disse...

Leandra, essa crônica é verdadeiramente de arrepiar, é como se fosse uma história verídica. E quantas histórias parecidas com a dessa crônica? Quantas pessoas, que não têm autonomia para se locomover, outras têm mas com dificuldades! Quantas!! A vida é tão bela e tão cruel, que nos deixa ver (para os que querem ver) pessoas nas mais deploráveis situações. Mas devemos viver em harmonia e com a esperança de que o sofrimento vivido por pessoas desprovidas de condições físicas "normais" seja diminuído pelo carinho, a solidariedade e a dedicação das outras pessoas.

Um grande abraço