terça-feira, 7 de maio de 2013

Resenha Crônica

Falta de amor

Por Leandra Migotto Certeza em 21/11/2008

Leandra e seu noivo, close nos rostos
Leandra e seu noivo Marcos sorriem

Sou uma mutação. Genética. Não fui abortada. Em 1977 se escrevia à máquina, imprimia-se no mimeógrafo, respeitava-se o professor, usavam-se roupas coloridas e ouvia-se MPB ‘de primeira’. Vivia-se anestesiado com o suposto fim dos anos de chumbo (que nos assombra até hoje).


Não sou a regra. Sobrevivi quando a medicina me sentenciou. Cresci em uma família com valores. Não apenas materiais, mas principalmente, éticos. Quebrei vários ossos, andei com 5 anos, cresci só até 96cm. Nos anos 30 teria sido esquecida no quartinho dos fundos. No início do século XX ficaria trancada em uma igreja. Na Idade Média teria sido afogada ao nascer. E o pior, se fosse miserável (que palavra horrenda!!) HOJE, é bem provável que estaria morta.

Mudei.

Tudo muda. Todos mudam. A vida muta, se transforma. Procuro ‘equilíbrio emocional’ na era da ‘depressão de massa’. Amo. Sinto raiva. Revolta. Tenho calma. Espero. Ando (quando consigo em uma cidade construída para o suposto padrão) em cadeira de rodas, mas já fui bem ágil com um par de muletas.

Mudei, mas permaneci.

O diferente sempre assusta porque incomoda. A imperfeição não tem lugar na sociedade da beleza e da simetria. Acredito na solidariedade como um dos únicos sentidos da vida. Temo a artificialidade das pessoas em um mundo tão egoísta.

Sobrevivo 32 anos, exclusivamente, à minha força de vontade - sem sentido ou razão (?) - e à convivência ‘saudável’ com o lado mais altruísta do ser humano (ele existe sim, caros psicanalistas!). Em meio às enormes frustrações, culpas, angústias e, principalmente, inseguranças, minha família de sangue e de criação; além dos verdadeiros amigos, sustentam meus desejos e me proporcionam ‘pequenas-grandes’ realizações.

Confesso que não sei como conseguir chegar até aqui e para onde vou, mas sei que vale a pena ser e estar em um corpo disforme, com ossos frágeis, menor do que uma criança de 3 anos. Pode ser masoquismo ou criatividade. Não sei. Só não quero ver a humanidade se auto-destruir.

Mata-se por um par de tênis, fechada no trânsito, uma compra vestindo bermudas, cigarro de maconha, um par de chifres posto pela mulher, ou se aniquila o outro, por absolutamente NADA. Morre-se por falta de tudo. Teto, chão, comida, roupas, cobertor, calçados, escola, trabalho, hospital...

Frente a esta única e dura realidade, pensemos sobre o que Eugène Enriquez, professor de sociologia da Universidade de Paris 7 diz: "as nossas sociedades não estão doentes apenas por não conseguirem resolver o problema do desemprego, por serem cada vez mais desiguais, por deixarem partes inteiras da população na mais completa privação, a ponto de algumas pessoas já não viverem, mas apenas sobreviverem. Elas sofrem da doença da falta de amor. Nossa cultura liberal esqueceu que o amor, a amizade, o respeito, a deferência, a consideração pelo outro constituíram o cimento indispensável para sua consistência e permanência. O homem moderno não sabe o que fazer dele. Volta-se contra a sociedade, contra os outros, contra si mesmo, sem enxergar que faz parte disso tudo e que o cultiva a cada dia".

Só não compreendo (ainda) porque os autores de “Mutações – ensaios sobre as novas configurações do mundo”, coletânea organizada por Adauto Novaes (editora AGIR e Edições SESC - 2007), falam em ‘contemporâneo’ se a vida não tem linha do tempo... Vivemos em um só mundo, um só planeta (não sei até quando...) cheio de deuses e diabos dentro de todos os seres humanos. É por isso que ler o que estes caras e madames falam é tão instigante e extremamente enriquecedor!

Descrição da imagem: foto minha junto com meu noivo Marcos dos Santos, felizes, sorrindo. Close dos nossos rostos colados, cheios de AMOR. Eu estou de blusa vermelha e ele camiseta cinza e de óculos. Fomos pegos de susto por nós mesmos.

A boneca que falava e vivia no sol



 


Texto: Leandra Migotto Certeza em 23/06/2009
Foto: lindo pôr do sol alaranjado com nuvens

Flutuava. Era de cristal. A boneca que vivia no sol começou a falar. Tinha mais ou menos 9 meses e só alguns centímetros. Tão pequena que parecia um bebê, mas não era. Tati era o centro das atenções do céu. Raio e chuva, seus pais, viviam brigando por ela, e para saber o que fazer com ela. Brisa, sua avó materna, nunca a tirava do colo. Vento, seu avó materno, a admirava com muita tristeza, e a provia de todas as necessidades.

Tempestade, sua tia-avó materna, cuidada com tanto zelo dela, que se esqueceu de ouvir as primeiras palavras que Tati disse quando deixou de ser um bebê. Nuvem, sua tia materna, a olhava com o rabo de olho, e o pé atrás. Tinha receio de perder seu lugar no céu, por isso, tratava Tati como uma eterna criança.

Tati gostava de ser criança, e ao mesmo tempo não. Adorava o colo da avó, mas sabia que um dia iria cair do céu e deixar de viver no sol. Sabia também que viver na Terra era muito dolorido, por isso, preferia a dor de ser levada de um lado para o outro, como um saco de batatas que seus pais carregavam para cima e para baixo, sempre com o coração do tamanho de uma ervilha.

Ser uma boneca era muito bom. Tinha tudo sempre à mão: guloseimas, brinquedos, passeios, carinho e, principalmente, atenção. Era o centro das atenções. O raio, a chuva, a tempestade, a brisa, a nuvem e o vento, viviam ao seu redor. Nunca a abandonavam, nem mesmo para deixá-la sozinha com seus pensamentos. Isso era bom? No começo sim. Foi ótimo ter todas as dores aplacadas por remedinhos, comidinhas e carinhos. Ser o centro das atenções a livrou da insuportável dor do medo de viver quebrada, por dentro e por fora.

Tati nasceu toda esfacelada. Os pedacinhos do seu corpo foram colados de qualquer jeito, e ela nem teve tempo de dizer como queria ser. Não entendia porque tanto sofrimento. Não sabia o que tinha feito para merecer tanta dor. Viver no sol era seu maior conforto. Lá era quente, acolhedor, seguro, e o mais legal, era um lugar privilegiado.

As estrelas tinham seu brilho, mas Tati era o centro delas. Viver no sol, trouxe calor para cada pedacinho do seu corpo, tão frágil e desamparado. Sem ele não seria capaz estar no céu. Lá pode ser feliz. Brincou como uma criança até mais ou menos 14 anos. Mas era muito engraçado como Tati sabia que não era mais criança, e mesmo assim gostava de ser uma marionete nas mãos das pessoas, em especial de seus pais.

O peso do seu leve corpo era tão grande que ela achava que não conseguia carregar sozinha, por isso, optou por fingir ser criança até mais tarde, quando encontrou o mar, seu eterno, único e verdadeiro amor, e tudo começou a tremer dentro dela. Mas esta é uma outra estória que ela conta depois.

Agora Tati quer se lembrar de quando era uma ‘boneca-bebê’ que falava. Nasceu com olhos grandes; cabeça maior e em forma de triângulo; cochas roliças; pernas curtas e braços compridos; cabelos castanhos bem finos; dedos alongados, e mãos perfeitas. Tati adorava suas mãos e dedos. Era a única parte do seu corpo que achava igual a das outras bonecas do céu. Ela não queria ter nascido feita de pano, palha ou plástico, mas ser de cristal era extremamente perigoso e trabalhoso. Chato até.

Tinha sempre que se proteger. Até de si mesma. Quebrava qualquer pedacinho do seu corpo, só de respirar. Por isso, fingiu que era feita de aço, e nunca deixou de se divertir pulando de bundinha pelo céu. Suas pernas não tinham força, mas em compensação, sua voz era mais forte do que o trovão, seu único irmão. Gritava tanto que o sol tremia, mas seu coração não percebia o mal que fazia a si mesma. Ganhou fama de dona do céu. Adorava esse título, mas não sabia até quando conseguiria carregar o peso de ser o centro das atenções.

Falar cedo foi sua tábua de salvação. O céu era muito grande e o sol muito quente. Quando disse as primeiras palavras, pode conhecer o horizonte da imaginação. Perdeu-se nele, e se entregou a ele em seus mais doces sonhos. Trovão, seu único irmão, sempre a despertava com tanta violência que Tati, voltava a se entregar nos braços do horizonte, com medo do barulho que todos os trovões têm. Como uma onda no mar, foi e voltou da sua imaginação várias vezes. A cada retorno quebrava um pedacinho da sua alma. Eram marcas que nunca seriam apagadas da sua memória, principalmente, no momento de fazer a primeira viagem ao Centro da Terra.

As outras bonecas tinham inveja da sua condição de rainha, mas Tati não achava a menor graça o peso de sua coroa. Era obrigada a exibi-la para todos no céu. Era o troféu mais esquisito que o céu ganhara, sem saber o motivo. Luz só tinha dito ao céu que foi um acidente, Tati ter nascido de cristal.

A boneca que falava e vivia no sol, perguntou inúmeras vezes porque não tinha nascido igual às outras, que eram como lindas bailarinas, mas nunca encontrou uma resposta verdadeira. Por isso, pensava que tinha sido ela quem pediu para vir ao céu em um corpo de cristal. Achava que era sua máxima e eterna culpa. E que a carregaria para todo o sempre. Por isso, tinha que levar alguma vantagem nessa estória.

Viver no reino da fantasia sabendo que já tinha crescido, foi a melhor tática que encontrou para continuar viva, mesmo sem saber. Assim, conseguia observar de longe, e bem segura, todas as outras bonecas se transformando em seres humanos, ao chegarem a Terra. Ela seria a última, ou uma das últimas, pois até então, ainda não conhecia outras bonecas iguais a ela. Raio e chuva a escondiam dentro de suas capas feitas de aço. Assim, era bem mais difícil Tati conseguir fugir e dar as mãos para o arco-íris rumo ao Centro da Terra.

Um dia, a boneca que falava e vivia no sol, conseguiu ver o pote de ouro do outro lado do arco-íris, e resolveu dar uma espiada nas condições da viagem que sempre soube que faria um dia, mais cedo ou mais tarde. Antes tarde do que nunca, já dizia sua outra tia-materna, a estrela cadente. Tati tirava todas as suas dúvidas com ela porque sabia que era a única capaz de entender seus mais íntimos desejos. Tão íntimos que o mar, seu eterno e único amor verdadeiro, ainda está conhecendo bem devagar, cada desejo seu.

Tati deu várias espiadas ao Centro da Terra, mas sempre amparada pelo cometa, que na verdade, era uma cometa com cara de anjo, mas que de boazinha não tinha nada. Passava tão depressa que Tati, às vezes, não conseguiu segui-la, mesmo que desejasse com seu mais profundo desejo. Um dia a cometa surgiu em sua vida com tamanha força que Tati não resistiu e subiu em sua cauda. Viajaram juntas por muitas galáxias, mas a boneca que falava e vivia no sol ainda não estava preparada para virar gente; e a cometa entendeu suas emoções.

Hoje Tati viaja na cauda da cometa com muito mais segurança, e principalmente, conforto. É uma viagem longa, cheia de tempestades, trovões, maremotos, vulcões, rochas, e muitas pedras pelo caminho, mas a boneca que falava e vivia no sol, está decidida a virar gente e entrar bem devagar no Centro da Terra, para ser de cristal, mas deixar de chamar a atenção de si mesma.

Não vai mais carregar nenhum peso nas costas, ser marionete de ninguém, e muito menos o centro das atenções. Será apenas mais uma boneca que virou gente e conquistou seu espaço na Terra, e não no centro dela. O maior desafio agora é Tati aprender a viver parecendo uma simples boneca, que sempre será de cristal, e chamará a atenção de todos, mas nunca deixará de ser e viver como gente, com todas as dores e delícias de ser humana.