terça-feira, 15 de março de 2016

A sutileza do preconceito


Por Leandra Migotto Certeza
“Cavalo dado não se olha os dentes”. “Sair com você dá muito mais trabalho”. “É bem mais complicado sair com duas pessoas com deficiência”. “Não é fácil. Tem que se preparar para receber alguém em uma cadeira de rodas”. “Você pensa que é assim, tão simples?”. “Eu não posso carregar o problema dos outros nos ombros o tempo todo”. “Você não percebe que atrapalha?”. “Já vai lá tirar o sossego dos outros?” “Agora são dois para dar trabalho”.
É o que ouço desde que nasci. Mais ainda, a partir de 2005, quando para pessoas bem próximas a mim, ‘infelizmente’ escolhi como companheiro, um homem adorável que também tem deficiência física; e ‘ainda por cima’ é órfão e vive com pouquíssimos recursos financeiros.
Hoje – generosamente - identifico nas pessoas que dizem estas frases, maiores possibilidades de mudança, e me disponho a desnudar-me para tentar quebrar seus mitos e estigmas; apesar de continuar sentindo a mesma dilacerante dor de sempre: rejeição!
Antes reagia com muita agressividade. Impunha a minha deficiência. Era minha maior defesa e única forma de sobrevivência que eu conhecia. Agora dou a cara para bater. Arrisco. Mas sofro da mesma forma, até mais intensamente, por saber o exato significado de cada palavra, infelizmente, dita com tanta verdade.
Mesmo sofrendo não desisto de, simplesmente, viver: sem auto piedade ou heroísmo. Pois não sei por qual motivo eu gosto muito da vida; por isso sempre me questiono: onde mora o preconceito? Tem cor, cheiro, textura, som, forma? Sinto que ele está em todas as partes. Dentro das pessoas tem sua morada eterna, e constrói sua história no Planeta.
Pessoas com deficiência eram consideradas ‘aberrações da natureza’ que deviam ser ‘eliminadas da face da Terra’ e jogadas do precipício. Depois viraram seres especiais que deveriam ser venerados, como aparições de santos. Eram consideradas pessoas super poderosas que tinham a obrigação de nos divertir e servirem de ‘amuleto’. Aí se tornaram ‘podres coitados doentes’, por quem deveríamos ter muita pena e obrigação de cuidar deles, mas bem longe dos nossos olhos...
Hoje são ‘apenas’ seres humanos à procura do seu lugar no mundo. Ou foi o mundo que nunca os enxergou como realmente são? Simplesmente, pessoas que lutam para serem vistas e respeitadas exatamente como são: com qualidades e defeitos; preconceitos e virtudes; medos e certezas; loiros e morenos; altos e baixos; homens e mulheres; negros e brancos; ricos de espírito e pobres de espírito; fortes e fracos; calmos e nervosos; simples e complicados; humildes e esnobes; cientistas e faxineiros.
Pessoas com deficiência comem; fazem xixi e coco; riem; choram; sofrem; dão gargalhadas; ficam alegres; trabalham; estudam. Fazem sexo por prazer e não por obrigação de perpetuarem a espécie; criam seus filhos com seus companheiros ou não; vivem com autonomia; sentem dor; ficam doentes.
Pessoas com deficiência pagam seus impostos; são consumidores; tem todos os órgãos como pele, coração, olhos, estômago, cérebro; vão à igreja; votam; praticam sua religião. São presas; matam; comentem abusos sexuais; têm ou não liberdade de expressão; são criminosas.
Pessoas com deficiência recebem o Prêmio Nobel; são cientistas renomados; são premiadas por suas carreiras. Sofrem discriminação todos os dias; constituem famílias; são homossexuais, negros, índios, brancos, mestiços.
Pessoas com deficiência assumem cargos de liderança; são eleitos como vereadores, deputadas; têm condições financeiras para comparem e dirigirem seus carros adaptados; não tem condições de se alimentarem.
Pessoas com deficiência vivem em condições financeiras humilhantes; passam fome; vivem com AIDS; contraem doenças sexualmente transmissíveis; trabalham como escravos. Casam; ficam viúvas; sentem saudade; respiram o mesmo ar; adotam crianças; dão à luz a bebês.
Pessoas com deficiência fazem mestrado e doutorado; são analfabetos; viajam pelo mundo; e habitam o mesmo Planeta Terra que uma pessoa sem deficiência. Por isso devem ser respeitadas com equidade na medida de suas diferenças e igualdades.
Pensando nisso, o que é mais confortável para o seu ego? Sair às ruas ao lado de uma mulher, que se locomove em uma cadeira de rodas, empurrada por uma pessoa contratada para ajudá-la; ou empurrar você mesma a cadeira de rodas dela (se isso for possível, é claro!)? O que realmente lhe atrapalha: é o olhar dos outros para a pessoa com deficiência, ou o trabalho físico de empurrar a cadeira de rodas, por exemplo?
Ao tentar responder a estas perguntas ainda penso: onde mora o preconceito? Ele é percebido e digerido pelas pessoas que discriminam? Ele aparece de forma diferente entre pessoas com maior ou menor grau de instrução?
Ainda passo por experiências bem distintas: pessoas com menor grau de instrução, que acabaram de me conhecer, não me discriminaram em nenhum momento; fazendo questão de me incluírem em todas as atividades. Enquanto pessoas, com maior grau de instrução que cresceram comigo, parecem ainda não aceitar minha condição de estar no mundo; e me discriminam todos os dias, sutilmente ou diretamente.
Sem generalizações e preconceitos - afinal quem sou eu para julgar alguém - mas sempre me senti mais feliz ao lado de pessoas com menor grau de instrução, por não enxergar em seus olhos a face sutil da discriminação. Não sei por qual motivo, ainda são raras as pessoas com maior grau de instrução que aceitam com naturalidade a minha forma de estar no mundo.
Se eu pedi para nascer e ainda com uma deficiência física, não sei. Se eu pedi para nascer com uma deficiência física exatamente nesta família, também não sei. Se eu tenho que pagar meus pecados nesta encarnação, e por isso nasci com uma deficiência, também não sei. Se eu estou me purificando por ter nascido com uma deficiência e vou ‘virar santa’, também não sei. Se a vida é uma grande brincadeira de mau gosto, também não sei. Se a vida é a única maravilhosa razão de ser, também não sei. Se eu sou mais feliz ou infeliz por ter nascido com uma deficiência, também não sei. Se eu reagiria da mesma forma, se estivesse na pele das pessoas que ainda me discriminam, também não sei.
Tudo o que sei hoje é que sinto uma força maior do que eu. Vocês podem chamar esta força de alma, espírito, deus, razão, existência, ou o que quiserem, mas é ela que me obrigada a dizer ao mundo, que viver com uma deficiência não é diferente de, simplesmente, viver. Afinal, onde está a perfeição? Por que será que o ser humano teima em querer ser perfeito, se a perfeição não existe?

Tudo e todos vieram do caos dos vulcões e é pra lá que vamos. Ou alguém já descobriu outra teoria mais convincente? Reduzir a complexidade do Universo em Paraíso e Inferno é infantil demais em pleno século XXI. E mesmo que eu esteja redondamente enganada, é bem provável que existam anjos com assas quebradas ou tortas, e diabos cegos e surdos. E quem viu Deus para dizer que ele tem as duas pernas?