Mais amor, menos descaso - Minha sobrinha e o diabetes
Revista Veja São Paulo - 26/11/2008
A crônica escrita por Walcyr Carrasco resultou em um Projeto de Lei
Walcyr Carrasco
Alice, minha sobrinha, tem 5 anos. Recentemente descobrimos que sofre de diabetes. Foi um choque, pois é o primeiro caso da família. Meu irmão e minha cunhada amam demais a filha e seu irmão. Aprenderam os difíceis cálculos para administrar a dose correta de insulina a cada refeição. Alice é corajosa. Coopera e nem reclama das muitas espetadas diárias. Ela mora em Campinas, mas há alguns anos freqüenta com o irmão uma escola particular em Paulínia, cidade próxima. Inicialmente, a professora e a coordenadora se mostraram acessíveis. Aprenderam a administrar a insulina. E meu irmão respirou aliviado porque o diabetes é uma doença que exige disciplina no tratamento.
Há algumas semanas ele e minha cunhada foram chamados pela escola. A coordenadora sacou um parecer de um advogado segundo o qual a escola não tem obrigação de ministrar medicamentos à garota. Avisaram que não dariam mais insulina a Alice. Meu irmão caiu no choro. Mais tarde, reuniu-se com a dona do colégio, que buscou um paliativo: um funcionário que estuda enfermagem. Mas às vezes o rapaz falta!
A relação de muitas escolas com crianças doentes é complicadíssima. Beira o escândalo. Em um colégio caríssimo de Campinas uma garota quase entrou em coma com crise de hipoglicemia porque ninguém quis lhe dar uma colher de açúcar. É política do estabelecimento não tocar nos alunos. Pior ainda: outros simplesmente recusam a matrícula de crianças diabéticas. Ou tiram as que já estão lá. (Aliás, minha impressão foi que a dona da escola de minha sobrinha está pavimentando o caminho para não aceitá-la no ano que vem. Senão, por que teria permitido a entrega da carta do advogado pela coordenadora, antes de procurar uma solução menos cruel?)
Se um aluno cair com convulsões, ninguém fará nada porque a lei não obriga? Uma doença crônica pode provocar seqüelas para a vida toda. Há casos de mães que largam o emprego para cuidar dos filhos na escola. Justamente quando são necessários remédios caros a pessoa é obrigada a cortar o orçamento doméstico?
Certa vez, em uma palestra, presenciei um caso terrível em uma escola de primeira linha. Uma aluna sofrera um acidente e tornou-se paraplégica. Existiam salas de aula no térreo, mas a direção manteve sua classe no segundo andar, sem elevador. Os amigos revezavam-se para carregá-la escada acima. Até que a garota se transferiu.
Sinceramente, não me importa o que diz a lei, embora, até onde eu sei, todo o nosso código jurídico proíbe a exclusão. A atitude é chocante, ainda mais vinda de educadores. Diante da enfermidade, seria possível estimular todos os colegas a refletir sobre solidariedade.
Os órgãos responsáveis pela educação deveriam olhar para esses casos. Talvez obrigar as escolas a ter ambulatórios, porque sempre haverá uma criança doente. Os pais deveriam se unir. Mas, com medo de represálias sobre os filhos, tentam botar panos quentes. Acredito no contrário. Será muito pior se minha sobrinha for vista como um problema. Talvez até receba os remédios, mas com má vontade. Ela se sentiria rejeitada, e isso afeta profundamente uma criança. Alice é guerreira. Melhor que saiba de seu problema e de seu direito a uma vida saudável. E que há gente a seu lado: os pais que a amam e eu, que sou seu tio. Sinto uma imensa dor, vontade de chorar. Não só pela Alice. Mas pelas centenas, milhares de crianças enfermas ou deficientes cujos professores e coordenadores deveriam estar oferecendo amor, e não descaso.
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