quinta-feira, 4 de junho de 2009

Pela PAZ

A sutileza da violência

Por Leandra Migotto Certeza*.


Descrição da imagem: Cartum em preto e branco de Ricardo Ferraz. Três homens e uma mulher estão ‘desabando’ sobre uma moça sentada em sua cadeira de rodas. Eles gritam, fazem gestos bruscos com as mãos apontando o dedo em riste para ela. Todos estão com os dentes de fora, e com caras de extremamente bravos. A mulher na cadeira de rodas está chorando, extremamente assustada e com uma raiva enorme. Ao fundo da cena dois homens conversam estarrecidos. Os balões de diálogos dizem, respectivamente: “Por que tanta violência?”. “Ela vai se casar com um deficiente físico”.

Gritar. Apontar o dedo na cara. Olhar com ódio, raiva e gana. Humilhar. Impor a sua vontade sem razão alguma. Berrar. Ameaçar meter a mão na cara de quem se agride. Meter medo. Deixar o agredido sem ação. Mostrar quem ‘manda’ no pedaço. São formas terríveis de agressão emocional e psicológica, que na maioria das vezes, infelizmente, acaba em violência física e sexual.

Muitas pessoas com qualquer deficiência, assim com as sem alguma deficiência, ainda são vítimas de pais déspotas, impiedosos, prepotentes, ditadores, cruéis, estúpidos, e muito violentos. Por mais que quem sofre agressões tenha consciência que o agredido é o próprio agressor, a sua dor, na maioria das vezes, é muito mais forte do que a do agressor.

Ser um coitado, se sentir humilhado, inferior, pequeno, incapaz, e viver preso ao mundo infantil (entre heróis e bandidos), não é desculpa para continuar sendo violento com seus filhos com deficiência.

Pais de crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos com deficiência não têm o direito de usarem de sua força bruta para impor uma autoridade falsa, pretensiosa, gratuita e covarde! Violência gera violência. Mas violência só termina com o entendimento de quem é mais vítima nesta história, se é que se pode falar em mais, no meio de tanta dor, por ambas as partes...

Cabe às pessoas com deficiência impor seus limites de forma clara, sábia, e adulta. Não adianta usar a deficiência como desculpa para se esconder no mundo infantil e compactuar com o agressor; mas também não adianta se calar para sempre, acuado, indefeso, e impotente diante de qualquer agressão psicológica ou física. É preciso agir e não reagir com mais violência.

Cabe aos pais das pessoas com deficiência ouvir seus filhos na medida de suas necessidades, limites, potencialidades, qualidades e desafios a serem enfrentados. Não é fácil ser um pai de alguém a quem a sociedade aponta o dedo todos os dias, e diz que não ‘faz parte de seu mundo’ (que mundo? O da fantasia?).

Mas é muito mais doloroso ser um filho de um pai que não o aceita, exatamente como ele é: com a sua deficiência, uma característica inata há absolutamente todos os seres humanos. Ninguém está livre de morrer a qualquer minuto, assim como, ficar com alguma deficiência a qualquer segundo, por não poder escapar de acidentes inevitáveis no Planeta Terra, sejam eles externos ou internos (como os genéticos, por exemplo).

É preciso crescer e amadurecer. É um processo lendo, doloroso, penoso, mas extremamente libertador, se for conquistado por meio da verdade; única forma de entendimento entre agressor e agredido. Olhar nos olhos com vontade, baixar à guarda, se despir, soltar a emoção, sentir o que o outro pensa sobre você; e principalmente, se imaginar na pele que quem agride e de quem é agredido. Ninguém tem o direito de mensurar a dor alheia se não se coloca no lugar da outra pessoa.

Creio que uma das mais complexas questões que especialistas ainda não teorizaram é a situação de impotência que um pai de um filho com deficiência vive 24 horas durante 365 dias. Talvez seja essa dor de quem não pode mudar a realidade que gere tanta violência. É a mesma dor de quando nascemos. No primeiro milésimo de segundo já estamos morrendo, e não podemos fazer, absolutamente, nada contra isso, a não ser viver da forma que escolhermos: sendo violentos ou não.

Também acredito que a dor de quem vive com qualquer deficiência - durante 24 horas, 365 dias - em um mundo extremamente violento seja muito mais insuportável, se sua própria família o rejeita, de forma sutil ou direta. O preconceito é avassalador! É a maior de todas as violências, psicológicas ou físicas.

Qualquer deficiência, incapacidade, diferença do que o ser humano teima em impor como ‘perfeito’ e ‘normal’ ainda é repudiada dentro de nós com tamanha força, gerando sempre uma atitude violenta, que não é capaz de aplacar a dor do vazio da existência finita, imperfeita, diversa e humana de todos nós. É como remarmos contra a maré da fragilidade humana.

Não ser violento é a única forma de nos preservarmos equilibrados em meio à maior de todas as violências inatas da vida: a de ter nascido finita e incapaz de desvendar o mistério da diversidade.

Viver com dignidade e equilíbrio, sem qualquer violência, é a única salvação da humanidade para não sucumbir ao mundo da fantasia, que se esconde por trás de qualquer violência!

*Leandra Migotto Certeza é jornalista com deficiência física e desenvolve o projeto em equipe: “Fantasias Caleidoscópicas”, ensaio fotográfico sensual com pessoas com deficiência. O projeto foi premiado no “6º Congresso Internacional Prazeres Dês-Organizados – Corpos, Direitos e Culturas em Transformação”, em Lima (capital do Peru), em junho de 2007; e reapresentado no “I Seminário Nacional de Saúde: Direitos Sexuais e Reprodutivos e Pessoas com Deficiência”, realizado pelo Ministério da Saúde, em Brasília, em março de 2009. Mais informações: leandramigottocerteza@gmail.com ou BLOG: http://leandramigottocerteza.blogspot.com

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