segunda-feira, 8 de junho de 2009

Mutilação genital feminina

Cultura ou violação?
Por: Mariângela Ribeiro, professora universitária de Sociologia, colaboradora do Gajop e assessora técnica da Ação em Gênero, Cidadania e Desenvolvimento [AGENDE].

Lendo El País (Espanha) de 1° de junho de 2009, vi uma matéria sobre Ester - mais uma jovem africana, do Sudão, que fugiu de casa e daquele país, ao descobrir que sofreria mutilação genital e, em seguida, se casaria com um idoso desconhecido.
A mutilação significa amputação do clitóris, podendo ser acrescida a dos lábios vaginais; e em outros casos, a costura dos mesmos. Como se observa na história, o ato da mutilação está vinculado a um cenário tradicional de parentesco que define o papel da mulher.
Conforme estudos, comunidades que realizam a mutilação acreditam que só assim garantirão o casamento das filhas. Ao contrário do que se pensa, não é uma prática islâmica por excelência, embora alguns grupos que a praticam aleguem que é recomendação do Profeta – fundamentação religiosa questionada por estudiosos da sharia, o código de leis.
O “corte genital feminino”, expressão preferida pela Unicef, é comum em 28 países da África, regiões do Oriente Médio e da Ásia. Também era praticado por indígenas da América Central e do Sul, embora seja cada vez mais raro entre esses povos. Enquanto o costume é abandonado entre grupos indígenas da América, tem sido levado por meio da imigração a locais que não o conheciam, como Suíça, Canadá Austrália etc.
O tema é sempre polêmico, já que o ato está ligado a ritos de passagens tradicionais para tais comunidades. A mutilação faz parte do ingresso da mulher na vida adulta e habilitação ao matrimônio, da mesma forma que outros rituais (alguns dos quais também deixam marcas) são realizados para homens e mulheres em outras situações. Daí porque defensores/as do culturalismo acusam o discurso dos Direitos Humanos que se coloca contra tal prática de etnocentrismo ocidental.
Crítica endossada por alguns/mas antropólogos/as que pontuam a noção de prazer centrada no clitóris como algo ocidental, ou seja, não universal. E, claro, por grupos que justificam o ato pela tradição ancestral e garantem que mulheres não são forçadas, e sim optam por passar pelo ritual.
O raciocínio relativista está centrado, como observa o caríssimo prof. Luciano Oliveira ao discutir a universalidade (ou não) dos Direitos Humanos, na oposição entre tradição e razão como a fonte primordial de legitimidade. Dito de outra forma, o argumento culturalista parece dizer que as sociedades tradicionais são naturais e as ocidentais não. Mas devemos lembrar que toda cultura é dinâmica.
“A cultura dos direitos humanos, que tolera muitas coisas, mas interdita outras, é tão “natural” quanto qualquer cultura “autêntica” de qualquer canto do mundo – que também se edificou destruindo outras” (Oliveira, 2008). E eu completaria dizendo que, se não destruindo, ao menos absorvendo e/ou distribuindo elementos de outros grupos.
Assim, ao se tratar o corte genital feminino apenas como um elemento cultural que não pode ser julgado, são minimizadas as relações de poder que existem em qualquer grupo humano. Seja aqui, no mundo ocidentalizado, seja nas comunidades não modernizadas.
A UNICEF calcula que entre 100 e 130 milhões de mulheres sofreram a referida mutilação, sendo que destas, 26 milhões experimentaram sua forma mais dolorida[1]. E é comum que muitas mulheres tentem fugir dessa cultura não compreendida por nós, etnocêntricos ocidentais.
Fuga nem sempre fácil. Ester, a jovem que motivou esse artigo, não quis dar mais detalhes sobre o trajeto feito, destacando apenas que a viagem, feita em caminhões até a Europa, passando pelo Marrocos, significa violações das mais diversas e até a morte para muitas mulheres.
E entrar na Espanha, como se sabe, não é também tarefa fácil. A jovem só conseguiu entrar em Ceuta (cidade espanhola que fica na costa marroquina) a nado. Como não se indignar com essas situações? Enfim, sei que não estou falando a partir do melhor dos mundos, que cada comunidade tem seus mecanismos ritualísticos e que os das comunidades secularizadas também carregam violências e violações. Porém, não quero “nivelar por baixo”.
Sou contra a mutilação genital feminina, do mesmo jeito que sou contra as violações em Guantánamo, a violência sexual legitimada por padrões sexistas e a discriminação racial, por exemplo. Mas hoje, foi a história de Ester que me sensibilizou.
[1] Que incluye el clítoris, los labios menores, parte de los mayores y la sutura de la vagina, con la única excepción de una pequeña apertura para evacuar la orina y el fluido menstrual.(El País, 02/06)
Para saber mais: "Me fui para que no me mutilaran” (Matéria do El Pais) www.elpais.com/articulo/sociedad/fui/mutilaran/elpepusoc/20090531elpepisoc_6/Tes
A universalidade dos Direitos Humanos (Texto de Luciano Oliveira, abril de 2008) http://www.acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=899

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