‘Queremos um futuro de inclusão’, diz Mirella Ballatore Tosta (Foto: Valentim Manieri)







Mirella Ballatore Tosta recebeu a equipe do jornal O Estado em sua casa, apontando adaptações necessá- rias para que ela e o marido, ambos deficientes físicos, tivessem, ao menos ali, o mínimo da comodidade que não é encontrado na maior parte de Campo Grande. portadora da síndrome dos ossos de cristal –um dos nomes mais comuns da osteogênese imperfeita, doença congênita que torna o esqueleto frágil–, ela afirma que muitas vezes se irritou com tentativas de ajuda que, na verdade, poderiam prejudicar sua saúde por meio de fraturas. Contudo, lembra-se de que a educação da mãe lhe forjou uma pessoa autônoma, que preza essa atribuição para ela e tantos outros portadores de diferentes deficiências físicas em Campo Grande. E é exatamente na falha da Capital para comportar essas pessoas que repousa sua indignação. “A acessibilidade em Campo Grande é zero”, sentencia, listando os poucos lugares que ela e várias outras pessoas podem frequentar na cidade e a infinidade de outros locais vetados por não permitirem uma livre circulação. A fiscalização será um dos trabalhos da Associação de Mulheres com Deficiência do município, existente desde 25 de março de 2015 para solucionar vários dilemas –que incluem a “tradução” da Lei Maria da Penha para libras, braille e audiovisual, necessário diante de escabrosos relatos que chegam à instituição.
O Estado – Fale um pouco de sua condição?
Mirella Ballatore Tosta – Tenho a síndrome dos ossos de cristal, uma má formação por falta de colágeno, na qual se fratura muito. Em qualquer buraco na rua a roda da cadeira de rodas pode prender e eu cair. Alguém que queira ajudar diz que não vai derrubar, mas sou eu quem posso cair e me machucar gravemente. Às vezes sou mal-educada porque a pessoa quer ajudar e, no final, atrapalha e se chateia. Não é isso, eu não posso cair de jeito algum, por isso não quero que me ajudem.
O Estado – Onde está o limite entre querer ajudar e realmente ser necessário isso?
Mirella – Em perguntar. Sempre pergunta. Se você vê um cego parado com a bengala, supõe que ele queira ajuda. Pode ser alguém de baixa visão, que anda mais devagar e precisa da bengala, mas vê um pouco, ou um cego total. Ele está parado no semáforo porque não tem sinal sonoro, e alguém o vê. A pessoa pega nele sem avisar. Imagine o susto. Ele é quem tem de pegar no seu braço para sentir seu corpo, a movimentação, os gestos. Não é pegar e levar. O melhor é perguntar: “precisa de ajuda?”. Muitas vezes isso ocorreu comigo, e é um dos motivos de eu não andar no centro de Campo Grande. Primeiro porque é impossível; quando não tem rampa é impossível, e quando elas existem são malfeitas ou malconservadas. Veja na rua 14 de Julho, a maioria está quebrada, e se junta uma poça de água ou lama você não sente a profundidade. Como vai andar? E há o motorista que não respeita, para o caro. A falta de cidadania e educação no trânsito são o que você representa na sociedade. Se não tem educação no trânsito, não terá em lugar algum.
O Estado – Qual sua avaliação sobre a acessibilidade em Campo Grande?
Mirella – Zero. Eu não ando pelo meu bairro nem para ir à igreja, pelas calçadas, porque é impossível. Vou para a rua, é uma avenida movimentada, mas é o único jeito, porque é a uma quadra e meia daqui, e não vale a pena pegar o carro, pôr a cadeira e não ter onde estacionar. No centro da cidade é impossível, sozinho não tem como. O Estado – Desde quando existe a associação? Mirella – Ela foi criada em um encontro de mulheres em 25 de março do ano passado como uma comissão, que depois foi crescendo e virou a associação. Entramos com o registro em 7 de novembro. Surgiu com um grupo de mulheres, naquele encontro inédito, organizado pela Secretaria Municipal da Mulher e a SAS (Secretaria de Assistência Social). Da comissão as coisas cresceram e surgiu a associação.
O Estado – Qual o papel da entidade no poder público?
Mirella – Visibilidade, protagonismo e empoderamento. O principal objetivo é empoderar mulheres, meninas e suas famílias. Existe muita violência contra mulheres e meninas com deficiência. Fazemos também muitas rodas de conversa sobre a Lei Maria da Penha. Como começamos agora não temos recursos para ir aonde queremos, mas queremos ir em todas as obras, inclusive as pagas com o nosso dinheiro e que são feitas em acessibilidade, embora as pessoas achem que tem.
O Estado – Você deixa de ir em muitos lugares por conta da falta de acessibilidade?
Mirella – Os shoppings são os únicos lugares em que vou porque têm acessibilidade. Sou independente, as pessoas dizem que podem ajudar, mas quero autonomia. Desejamos autonomia para sair, ir a algum lugar sem levar ninguém. Eu e meu marido, que é cadeirante, somos independentes. Para descer uma rampa temos problemas, mas todos os shoppings são acessíveis, nos banheiros é mais ou menos, nas praças de alimentação não há acessibilidade, têm lugares onde não somos vistos. Os mercados são difíceis, porque deixam mercadorias em lugares altos e temos de pedir ajuda.
O Estado – As pessoas se aproveitam da deficiência das mulheres para violentá-las, por ser mais difícil se defenderem?
Mirella – Dependendo da deficiência é impossível, fazem o que quiserem. Há um tempo, alguém filmou um homem abusando de uma deficiente mental, vizinha dele. Parecia uma boneca inflável, sem reação. E vai falar para quem, quando ninguém acredita? As crianças falam e ninguém acredita, imagine uma pessoa assim? E a muda, como vai falar? Ninguém vai acreditar. Por isso do empoderamento, para a mulher se apoderar dos seus direitos e denunciar isso. Queremos um futuro melhor para essas meninas, que serão mulheres daqui a uns dias.
O Estado – O foco maior dos atendimentos é nas meninas?
Mirella – É para todas, porque queremos viver. Queremos um futuro de inclusão. Pai e mãe não serão eternos, elas terão de se virar. Fui educada pela minha mãe para ser independente, mesmo em uma cadeira de rodas. A falta de acessibilidade irrita. Claro, é ruim ser deficiente, mas se tivesse acesso à cidade, Estado ou país, eu não me sentiria excluída, não teria dificuldades. Há falta de acessibilidade na TV, onde não tem intérprete de libras nos programas, só agora colocaram legendas. Demorou muito, e às vezes é errado, não entende o que puseram ali, falam coisas que nada tem a ver. Sequer tem sinal sonoro para cegos, nem em elevador, são poucos.
O Estado – Recentemente houve um seminário sobre enfrentamento à violência doméstica contra cadeirantes. Qual foi o resultado?
Mirella – Foi em 1º de dezembro e foi ótimo. Pena que o público foi muito pequeno, não teve interesse nem das próprias pessoas. Foram umas 13 participantes, fiquei feliz que veio uma gestora de Camapuã só para o seminário. Foi bem divulgado, porque é o Mês Internacional da Pessoa com Deficiência, no dia 3 teve até um desfile de moda inclusive.
O Estado – Há muitos casos de violência doméstica contra portadores de deficiência?
Mirella – Na verdade não há um censo, um número não atualizado. Não existe, e em sistema algum de Campo Grande. Se você vai ao posto de saúde não há cadastro. A associação participa do Conselho [de Usuários] do SUS para ver se muda alguma coisa, porque não existe. No SUS deveriam dissecar você: apontar a deficiência, o que aconteceu. Estaria no cadastro e seria possível ver quantos deficientes existem. Não existe acessibilidade nos postos de saúde. Voltando à pergunta, existem violências de pessoas da própria família, a maioria, principalmente contra a mulher com deficiência intelectual, que muitas vezes não quer dizer problema mental, e sim um deficit. Alguém se casa com ela apenas para usufruir do benefício, ou a dopa, a deixa sem cadeira de rodas em casa, não a apresenta à família e amigos, faz dela só um objeto de prazer, é escabroso. Não conheço casos, mas sabemos que existem. As mulheres surdas sofrem muito, também. Falamos muito: “denuncie o agressor”. Como a mulher surda vai denunciar se não ouve, muitas vezes não fala. Como vai ligar no 190, no 180, no Disque 100, se não há um serviço acessível por WhatsApp ou SMS? Lutamos por isso, também. E é tão simples, falta vontade política, na verdade.
O Estado – Falta acesso à Lei Maria da Penha?
Mirella – Nossa maior conquista foi a Lei Maria da Penha em áudio, libras, braille e audiodescrição. Temos em DVD e CD. É algo que se demorou para perceber: quando fizemos o encontro de mulheres de 25 de março de 2015 a procuradora Jaceguara Passos falou de nossos direitos e perguntou onde estávamos, porque encheu de mulheres com todo o tipo de deficiência lá. E a maioria das famílias esconde também, não expõe por vergonha ou desconhecimento. Havia surdos que não sabiam da Lei Maria da Penha, inclusive mulher casada e com filho.
O Estado – Como a associação atende às mulheres surdas?
Mirella – Tudo lá é voluntário. A associação tem um grupo de WhatsApp com 30 mulheres, entre parcerias e voluntárias, sem deficiências e de vários segmentos da sociedade: advogadas, psicólogas, jornalistas, a gestora Luciana Azambuja, pessoas de vários partidos, mesmo com a entidade sendo apartidária. O grupo se ajuda, e graças a isso conseguimos. Hoje em dia não se admite mais fazer evento sem intérprete de libras. É lei. Mas a mulher vai ao médico, sendo surda, chega ao posto e não tem intérprete. Como vai falar do problema quando chega a atendente? Precisa levar alguém, mas se for algum problema íntimo? A lei brasileira prevê intérprete de libras ao menos nos órgãos públicos, uma coisa que não tem. No Ceam (Centro de Atendimento à Mulher), na Casa da Mulher Brasileira, têm. Temos uma voluntária, Flávia Pierete, que faz doutorado em Violência contra a Mulher com Deficiência e é intérprete de libras. No tempo que ela trabalhou na Casa da Mulher atendeu a dez surdas.
O Estado – Como foi o trabalho de vocês?
Mirella – A Defensoria Pública criou no Núcleo de Atendimento à Mulher uma cartilha simples sobre a Lei Maria da Penha, com os pontos mais importantes. Fizemos a roda de conversa com a subsecretária, cegas, surdas, várias mães de meninas com deficiência, para adaptar melhor a cartilha.
O Estado – E como foi a recepção das mulheres surdas?
Mirella – Não digo que as mulheres sofriam, mas não sabiam da lei. Saiu em DVD em CD, é inédito no Estado, não sei se no país existe em outro lugar. Foi uma conquista nossa. Foi uma parceria com a Subsecretaria Estadual de Políticas Públicas da Mulher, a Secretaria de Educação e o Centro de Atendimento ao Surdo. Fizeram o vídeo, pegaram a pessoa. Imagine pegar um livro e interpretar todo ele em libras, DVD, braille e audiodescrição.