Por Pedro Ulsen - Fonte: Rede SACI - 13/03/2008
Provocações
Leandra está sentada na cadeira. Sente-se bem. A data é 17 de novembro de 2002. Aos 25 anos, acabara de se formar em produção editorial, atuava como jornalista e militante pela sua causa. Havia pedido para ir ao programa. O som de vozes entrecortadas e destoantes anuncia o início e Antônio Abujamra declama um poema de Mário Sá-Carneiro: “Feminina”. Leandra está no Provocações, da TV Cultura. Está pronta para provocar?
Diz Antônio Abujamra: – Nós não queremos fazer o que as televisões fazem, que é o aproveitamento de uma estética da pobreza, uma estética da tragédia. Não. Nós queremos pegar as pessoas e colocá-las para baixo se for preciso e para o alto se elas quiserem.
E anuncia: – Ela veio para conversar sobre os seus vinte e cinco anos, sobre a vida, o mundo, as coisas. Ela é Leandra Migotto Certeza!
Leandra está tranqüila. De fato, solicitou à produção do Provocações ser entrevistada pelo apresentador que sempre admirou. Neste 2007, cinco anos depois, ela relembra com alegria aquele momento em que bateu um papo com um grande jornalista – em sua avaliação.
Questionada sobre sua deficiência física, Leandra explica que apresenta má-formação óssea, uma deficiência no colágeno, que dá sustentação para a calcificação dos ossos. Com isso, sofre muitas fraturas e dificuldades de crescimento.
– Você já se perguntou “por que eu”, Leandra?
– Há um tempo atrás, na adolescência. Hoje consigo pensar de uma forma realista. Por que cada um é do jeito que é? É porque é, não tem muito o que discutir.
– Como você vê o mundo?
– É um desafio que a gente enfrenta a cada dia. É uma loucura. Eu acho que é uma loucura. Mas eu acho divertido às vezes. Acho que se fosse tudo perfeito, como a gente quer que seja, como o ser humano quer, não teria graça.
Leandra escreve também. Comenta sobre seus textos. Fala que o que escreve é empírico. Escreve sobre o que vê, o que vivencia, o que sente. Tem se dedicado a poesias e crônicas ultimamente. A última recebeu o título de “O amor transforma”.
De frente com Abujamra, ela fala sobre a situação do deficiente no Brasil. Para ela, ser deficiente significa matar um leão a cada dia. Não alcança o caixa do banco, e quando se depara com uma escada, não há chances. Ônibus então, impossível. Transporte é o mais difícil para um deficiente. Para viver bem, o deficiente tem que ter um padrão de vida muito alto.
Na Idade Média, conta-se, o deficiente era jogado precipício abaixo; a velha questão da lei da natureza.
– Você preferia isso?
– Não, porque eu adoro viver.
– E a vida, o que é a vida pra você?
– Um desafio gostoso e trágico.
– O que falta?
– Quero ser vista como cidadã. Temos que cada vez mais tentar estar no mundo para exercer o que a gente é, sendo o que a gente é. Falta, na verdade, inclusão social.
Da mesma forma que Suely, sua grande amiga e também personagem desta história, Leandra recebeu, ao se formar na faculdade, um presente. Quando havia entrado para o curso de Comunicação Social, habilitação em Produção Editorial na Anhembi Morumbi, em 1996, a faculdade não contava com nenhuma estrutura de acesso para deficientes. Quando já se formava, em 1999, na última semana de aula, viu concluída algumas obras de acesso para os deficientes na faculdade. “Saí chorando. Pelo menos consegui algo”, lembra-se.
Conseguir algo não é assim, de repente. Conhecendo melhor Leandra, posso entender como é a situação do deficiente no Brasil e por quais caminhos andam aqueles que buscam mais; como estará sendo a trajetória dessa personagem real que batalha como todos os dias para ter o seu lugar ao sol e que, cotidianamente, vence preconceitos e tem dificuldade de ser vista, respeitada e aceita.
Antes mesmo de nascer, Leandra já sofria, no útero de sua mãe, fraturas por todo o corpo. Os pais ainda não sabiam, mas aquela garotinha que estava a caminho, 30 anos atrás, tinha uma deficiência genética não muito comum e nasceria com “osteogenesis imperfecta”.
A deficiência rara – que atinge um a cada 21 mil nascidos, ou cerca de 15 mil brasileiros – rendeu à Leandra ossos frágeis e certas dificuldades próprias da deficiência. Depois de passar uma semana na UTI (Unidade de Terapia Intensiva), Leandra recebeu alta do hospital, de onde saiu deficiente física.
Casos diferentes
Aos seis meses e meio de gestação, Suely nasceu em um sítio no interior de São Paulo, sem nenhum tipo de assistência médica ou hospitalar. Passou por um parto difícil, que lhe deixou seqüelas. A prematuridade e a demora na realização do parto lhe trouxe anóxia (falta de oxigenação no cérebro), e danificação de alguns neurônios que estavam em formação. Ainda bebê, Suely viu-se com dificuldades motoras, de articulação da fala e da escrita, sem, contudo, apresentar nenhum grau de deficiência mental. Seu quadro era o de paralisia cerebral do tipo atetóide, com dupla hemiplegia.
Com poucos recursos para tratamento, fora dos grandes centros urbanos, a família decidiu mudar-se para São Paulo, onde teriam o acesso facilitado a certos cuidados. Quando criança, Suely lembra-se, brincava muito, principalmente com um vizinho, ainda hoje seu amigo. Com carinho, ela recorda daqueles momentos em que tinha grande liberdade para se divertir na rua, o que incluía brincar de carrinho de rolimã. O começo da história de Suely.
Paralisia cerebral (PC) é um termo que descreve um grupo de disfunções que afetam os movimentos e a coordenação motora do corpo. Na prática, o que ocorre é uma desordem de movimentos e/ou de postura. Se há algum dano na formação do cérebro do bebê até os seus três anos de idade, pode haver um quadro de paralisia cerebral.
Os efeitos da paralisia variam de pessoa para pessoa. Na sua forma mais leve, o resultado pode ser movimentos desajeitados ou controle deficiente das mãos. Na sua forma mais severa, pode haver falha de controle muscular, com alterações nos movimentos físicos e na fala. Algumas vezes pode haver outras conseqüências, como convulsões, e dificuldades de aprendizagem. O grau da deficiência física da pessoa com PC, no entanto, não tem nada a ver com o grau da sua inteligência.
O caso de Leandra é diferente. Ela tem “osteogenesis imperfecta”, ou “síndrome dos ossos de cristal”, como é popularmente conhecida. Trata-se de uma deficiência de origem genética provocada por uma falha no colágeno (tecido formador dos ossos), que resulta em uma estrutura óssea extremamente frágil, sujeita a fraturas contínuas, inclusive durante o período de gestação.
Os deficientes com OI, como Leandra, apresentam fragilidade óssea, com fraturas e deformidades. Normalmente, são de baixa estatura, têm desvio na coluna vertebral e deformidade torácica. Geralmente também apresentam deformações nos ossos longos e limitações de movimentos. Dores são constantes em decorrência das fraturas freqüentes. “Durante minha infância tive fraturas continuamente. Até os meus 14 anos, já eram mais de cem fraturas. Um sofrimento muito grande.”
Para uma criança que requeria certas cautelas, Leandra foi bem brincalhona. Cursou o pré-primário em meio às delícias da infância, era livre em sua espontaneidade, não entendia muitas coisas e a maioria delas sequer ouvia. Abusou da criatividade e, sem medos, traumas ou cercas, viveu como toda criança tem que viver.
A seguir, alguns trechos (em itálico) escritos por ela mesma, em outros momentos de reflexão:
Comi muita areia, brinquei de pega-pega, pulei corda, cantei cantigas de roda, visitei parques, fiz desenhos, aprontei com massinha de modelar, subi em trepa-trepa, brinquei de roda, aprendi a ler e escrever. Aos cinco anos, dava um jeito de participar de tudo. Como minhas pernas ainda não tinham forças para agüentar meu corpo, usava o bumbum e corria pelo pátio junto com os amigos. Sabia que para fazer algumas coisas precisava de ajuda, como: subir em cadeira ou escada, pegar um livro na estante, ir às excursões... Mas nunca deixei de ser e estar na escola!
Depois de ser alfabetizada, justamente pela dificuldade enfrentada em encontrar vagas em escolas, Leandra viveu a amarga experiência de estudar dois anos em uma escola considerada “especial”, e consideravelmente famosa, própria para crianças deficientes. O modelo era puramente assistencialista. Não promovia a inclusão de ninguém.
Lá estagnei. Pois, numa mesma sala, uma vitoriosa professora tinha o árduo e mágico objetivo de ensinar crianças com diferentes graus de deficiência e séries distintas. Mas, sem dúvida, o fato mais marcante era a existência de uma grade que nos separava do outro mundo – o das crianças ditas “normais”. Isso era um horror! Tínhamos que tomar lanche também em um pátio separado. Parecia que iríamos transmitir alguma doença contagiosa ou “aterrorizar” as outras crianças com a nossa aparência diferenciada.
Leandra, criança, queria era brincar, estar ao lado de todas as crianças. Leandra Certeza começava a conhecer o mundo, mas este a rejeitava. Jogava-a de lado. Como explicar isso a uma criança? Que coisa é essa de segregação? Ela não entendia era nada...
Naquela época era muito complicado para uma menina de sete anos, esperta como eu, ser ignorada e ter de pedir “por favor” para ser vista pelo mundo. Por isso, sempre que possível, dava uma fugida e passeava pelos corredores do colégio no colo das “tias”. Elas me levavam de volta ao sonho do qual despertara: o convívio com todas as crianças.
Dos 7 aos 14 anos Leandra não andou. Sofria de recorrentes fraturas e o processo de crescimento do seu corpo impedia-a de desenvolver uma coordenação motora mínima para simplesmente andar. Aos 14, já em melhores condições, batalhou firme pela reabilitação. Utilizava sempre a cadeira de rodas e, praticando exercícios com barra paralela e muletas, voltou a andar aos 18 anos. Quando adolescente, com 14, conta, começou a encarar psicologicamente a deficiência, reconhecendo, inclusive, outros deficientes. Antes disso, não aceitava sua condição, diz.
Escola e militância
Suely, na escola, era aluna aplicada. Dentro da sala de aula era vista como estudiosa e inteligente; sempre foi colocada como um exemplo a ser seguido.
A seguir, reflexões escritas por ela própria (em itálico):
Como isso pesava! E eu não me considerava nada disto, e, ao mesmo tempo, tendia a acreditar e a carregar este peso. Na verdade, esta identidade atribuída foi produto de uma dificuldade que eu tinha em escrever, falar, e de coordenação motora, devido à paralisia cerebral.
Suely não se sentia bem em seu ambiente escolar. Estudava muito e procurava fazer tudo como as outras crianças. Queria estar bem, e queria ser como as outras crianças – mas estava fora de lugar. Na hora do lanche eu ficava num grupinho de "marginais" — uma era gorda demais para a idade, outra era pobre e simplória para a categoria do colégio, ainda havia uma que era filha de pais desquitados e outra, negra.
Após terminar o primeiro grau e ingressar no colegial, Suely continuava a sentir uma angústia que a prendia, um sentimento que a levava, sempre, ao seu próprio mundo interior. Era uma excelente aluna, por assim dizer, mas cautelosa. Tímida, e ao mesmo tempo com necessidade de autoconfiança e auto-estima.
Continuando a minha trajetória, freqüentei o colegial todo, sem problemas aparentes. Sem problemas aparentes porque, no final de 1º ano, a psicóloga da escola chamou a minha mãe e eu para ter uma conversa séria. Pensei: “É hoje! Fui reprovada!” Mas não era esse o assunto a ser tratado.
O assunto era a minha atitude de não falar em classe. A psicóloga me chamou de egoísta porque não queria compartilhar a minha experiência de vida com as colegas. E eu pensando: “Por quê? Não há nada demais na minha vida. Ela é desinteressante”. E não era bem assim. Com o passar do tempo é que fui entender a bronca que levei.
Eu entrava muda e saia calada da sala de aula porque eu não achava que aquilo que ia colocar era importante, muito pelo contrário. Muito mais tarde, fui ver que o medo de ser descoberta na minha deficiência mental, que eu não tinha, pesava muito. Ao mesmo tempo, lutei para provar, inclusive para mim, que eu era capaz intelectualmente. Após o colegial, prestei o vestibular e entrei para a PUC em Filosofia.
Leandra movimenta-se atualmente utilizando cadeira de rodas. Em contraste com seu corpo – pequeno para a média de um adulto –, Leandra mantém mãos fortes, vigorosas, que apertaram com muita energia as minhas mãos. Possui cabelos castanho-claros, de comprimento médio, e no olhar carrega alta dose de inteligência, atenção e determinação. É enfática quando fala. Não faz o tipo boazinha e muito menos maldosa. É valente, firme e raçuda, mas absolutamente doce e solícita com quem propõe a ela uma amizade verdadeira. Leandra tem algo a nos contar.
Foi durante o curso de Produção Editorial, iniciado em 1996 na Universidade Anhembi Morumbi, que Leandra partiu para uma nova visão sobre a situação e as dificuldades de outros deficientes no Brasil. Dedicou-se a melhorar isso. “Na faculdade nenhum acesso era adaptado aos deficientes, conforme necessário. Eu me incomodava com isso. Queria fazer mais coisas, agir mais.” Envolveu-se com o Clube dos Paraplégicos, em São Paulo. Entre umas reuniões e outras também se dedicava a campeonatos de natação.
Também participou de grupos de discussão, com os colegas do curso e outros alunos da APAE (Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais). Escreveu para jornais e revistas especializadas. Agitou e militou. Até que, em 1999, juntamente com amigos de militância, se uni à ABOI – Associação Brasileira de Osteogenesis Imperfecta.
A Associação fundada por amigos de Leandra é uma organização que se dedica a ajudar os portadores de OI a lidar com os problemas associados a esta doença. A sua missão, em que Leandra Migotto Certeza responde como diretora de divulgação, trabalhando voluntariamente, é melhorar a qualidade de vida das pessoas afetadas pela OI por meio da informação, conscientização da sociedade e ações coletivas junto aos órgãos de saúde e justiça. Também trabalha pelo incentivo à pesquisa sobre a deficiência e fornecendo dados e estatísticas sobre a OI. Todas as pessoas que administram a ABOI são portadoras de osteogenesis imperfecta elas mesmas ou são familiares de portadores da doença. Nela se reúnem, atualmente, cerca de 400 voluntários que buscam apoio mútuo e especialmente seus direitos de cidadãos.
Graduações
Estudar filosofia na PUC de São Paulo foi a primeira e única opção de Suely quando prestou vestibular. O ano era 1972. Iniciava-se ali, exatamente ali, naquele início de curso, um processo que faria parte de todos os outros momentos da sua vida. Ela atirava-se, como se atira aquele que sabe que há o que buscar, que há o que colher. Ela sabia que com o início desse processo teria mais condições de se transformar. Não sabia muito bem o que encontraria, mas não lhe restava dúvidas de que era preciso navegar. Suely navegou e foi longe. Muito longe. Hoje pode dizer o que buscava. Àquela época, o que a movia era puramente uma busca espontânea e incerta, porém necessária.
No segundo ano do curso, em busca de cura, Suely Satow partiu para um tratamento diferenciado, o método Dowman. Em seis meses de tratamento – fracassado – Suely não se curou. Teve mais dor de cabeça, espasmos fortíssimos e crises de labirintite terríveis. A faculdade teve que ser interrompida.
Vejamos outros trechos de textos (em itálico) escritos por ela:
Após procurar muito, encontrei um neurologista que, depois de três consultas, disse para eu tirar o cavalinho da chuva, se estava com esperanças de “cura”. Eu fiquei muito agradecida a ele por isso. Depois, na consulta posterior a isso, ele disse que mais de 70% dos problemas físicos que eu apresentava eram de origem psicológica, e me mandou para um psiquiatra.
Com o início da psicoterapia, Suely estava de volta à sua jornada. Com muito incentivo dos médicos e da mãe estudou e se dedicou muito. Foi aluna aplicada. Graduou-se filósofa e, não satisfeita, também cursou Comunicação Social pela mesma universidade. Já tinha na bagagem não somente uma, mas duas graduações. Passou por um longo período de amadurecimento.
Suely já conseguia ver mais claramente por onde poderia seguir para encontrar as compreensões que necessitava. Já via que ali, naquele caminho de universidade e conhecimento, podia, na verdade, tratar de conhecer melhor a si mesma. Podia, claro, entender o seu próprio mundo, com as especificidades do seu ser e do seu ser paralisada cerebral.
Nesse meio tempo, consegui me ver na condição de deficiente, com a ajuda de muita psicoterapia, e me tornei militante pela nossa causa.
Partiu para a dissertação de mestrado, também na PUC-SP. Foi pesquisar o preconceito que sofrem os deficientes físicos. Estudou a identidade de um militante político revolucionário deficiente físico. Mestrado. Depois doutorado.
Hoje, sou Doutora em Psicologia Social e minha tese foi referente à Identidade dos Paralisados Cerebrais Socialmente Ativos. Esta pesquisa acabou sendo editada em livro pela Cabral Editora Universitária com o nome “Paralisado Cerebral: Construção da Identidade na Exclusão”.
Após um longo período de estudo, reflexões e muita dedicação, Suely aponta com muita clareza o que tanto a instigava em seus estudos.
Agora sei, com certeza, de que eu estava à procura de minha identidade como ser humano desde a escolha de meu curso de graduação em Filosofia. E, vejo que, apesar dos sofrimentos causados pelos preconceitos e conseqüente discriminação, sou uma pessoa com muita sorte, pois na minha militância e na pesquisa sobre os PCs, encontrei pouquíssimas pessoas com esta deficiência que chegaram a concluir um curso universitário com muito esforço, pois havia limitações nos próprios corpos e também as barreiras arquitetônicas e os preconceitos. Outros, não chegaram a finalizar sequer o primeiro grau, pois as barreiras atitudinais e físicas são enormes. Ainda, há os que simplesmente foram deixados de lado, ou escondidos, pelas condições não “normais” de seu físico. Chego a colocar, em minhas palestras, que eles são trancados no armário.
Para Leandra, tudo o que ela fazia era ainda insuficiente. Ela queria participar, atuar, mudar. Tomou uma decisão: “Ser jornalista na área social”. Em 2000 envolveu-se no Conselho Municipal da Pessoa com Deficiência, em cujas reuniões debatem-se políticas públicas voltadas aos deficientes, que representam 15% da população brasileira de acordo com o Censo Demográfico de 2002 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No Conselho Municipal Leandra conheceu mais sobre as leis voltadas aos deficientes e envolveu-se com o grupo de dedicado à apresentação de propostas para o acesso dos deficientes ao transporte público de São Paulo, capital.
Ainda enquanto atuava no Conselho Municipal, buscando emprego na área social, Leandra tornou-se colunista colaboradora do site da revista “Sentidos”, publicação da Áurea Editora focada em deficientes. E era lá mesmo que sonhava trabalhar. Finalmente, teria espaço para ampliar sua luta e trazer à tona outras tantas discussões sobre inclusão social. A vivência durou dois anos. Lá, Leandra relembra, fez muita cobertura de eventos, entrevistas, escreveu colunas para o site e fez muita edição de textos.
– Acredito no ativismo por direito, não por assistencialismo. Estamos aí para viver, e eu sou cidadã como qualquer outro cidadão, também pago meus impostos e exijo meus direitos.
– E o que te incomoda Leandra?
– A sociedade me incomoda, por ser preconceituosa. Também não poder engravidar e ter meus próprios filhos é um pouco triste para mim, e também o fato da minha deficiência se agravar com o tempo. Também tenho muito incômodo com a corrupção deste país, discriminação racial e desigualdades sociais. Mas também tem uma coisa. Isso tudo me incomoda, mas não me paralisa. Tenho um caminho de ação e de aceitação, que não significa conformismo.
Considerando a necessidade de melhoria da condição social de muitas pessoas, notadamente dos deficientes, Leandra coloca-se de maneira muito semelhante ao que pensa Suely Satow: “Cada vez mais a inclusão social é necessária. Mas uma inclusão bilateral, que significa a participação entre eu e a sociedade, cada qual no seu papel”.
Ao banco
Fazia um friozinho lá fora, mas nada desanimava Leandra a retirar seu benefício do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), no Banco do Brasil, no Largo da Batata, em Pinheiros, zona oeste de São Paulo. São 15h34 do dia 31 de maio de 2007. Estamos no Sesc Pinheiros, local em que Leandra pratica natação duas vezes por semana. Estão indo ao banco, então, Leandra, Marcos dos Santos, seu noivo – que teve paralisia infantil –, e eu.
– Precisamos que você empurre a cadeira até lá. Tudo bem? – Ela me pergunta.
- Claro.
O percurso, de aproximadamente 400 metros, é nos arredores do Largo da Batata. Estamos entre centenas de lojas, camelôs, carros, pedestres, motos, ônibus; a cidade fervendo em ritmo alucinado. Vida social cotidiana. Neste pequeno tempo, o que encontramos pela frente foi muito desrespeito e atitudes agressivas, principalmente por parte dos motoristas e motociclistas.
– Você viu que os caras não respeitam! – Leandra ratifica.
– Tem razão - concordo. – Também vi que cada degrauzinho, mesmo esses pequenos das rampas de acesso, representam uma grande dificuldade. Também percebi que todo o percurso de quem usa cadeira tem quer ser muito bem planejado, por conta dos acessos.
– Olha lá aquele carro – Marcos aponta. – Entra com tudo! Cuidado, gente! Aqui é cada um por si, se não tomar cuidado eles passam por cima mesmo, viu?
Em notáveis gestos, e usando as suas muletas, Marcos me auxilia a guiar a cadeira de Leandra. No banco, ela recebe atendimento, embora não consiga entrar dentro da agência pela falta de adaptação aos cadeirantes. Resolve suas operações com a atendente enquanto converso com Marcos.
Marcos dos Santos usa boné azul, blusa cinza de moletom, calça jeans simples. Vez ou outra, pára, olha para longe. Leandra, em sua cadeira de rodas, estava bem à vontade. Em uma das rodas da sua cadeira, um adesivo do Clube dos Paraplégicos de São Paulo, redondo, azul, me chama atenção. Nele, o desenho de um boneco brincando com uma bola de basquete.
Marcos dos Santos usa boné azul, blusa cinza de moletom, calça jeans simples. Vez ou outra, pára, olha para longe. Leandra, em sua cadeira de rodas, estava bem à vontade. Em uma das rodas da sua cadeira, um adesivo do Clube dos Paraplégicos de São Paulo, redondo, azul, me chama atenção. Nele, o desenho de um boneco brincando com uma bola de basquete.
– Ele é louco por boné, se você quer ver ele feliz é só ele ganhar um boné – diz Leandra.
– Esse, faço a quinze pra você – o camelô faz uma oferta a Marcos.
– Agora você quer me ver feliz é em uma loja de CDs, uma loja de livros, aí sim, fico feliz – diferencia-se Leandra.
Já no percurso de volta, na rua Paes Leme, paramos em uma loja de tintas. Leandra precisa pintar sua cadeira de rodas para o congresso que participará em junho de 2007, no Peru.
– Temos esta aqui fosca, e também a tinta brilhante, diz o vendedor.
De volta ao SESC os namorados se curtem enquanto escrevo o texto. Entre cochichos e beijinhos, um pedido:
– Você não vai me ver sábado, paixão? – Ela pergunta.
Marcos olha, calmo, tranqüilo, enquanto mastiga um pão com qualquer coisa, embrulhado em papel alumínio. A despedida deles se encerra com um “Tchau, vai com Deus” de Leandra.
Após a ida de Marcos, conversamos mais uns pares de minutos. Leandra usa uma blusa roxa, de gola branca, protegida do frio paulistano. Tempo louco. Ela me conta que está passando por uns processos seletivos para emprego.
– Tenha calma. Tenho certeza que está preparada. É só manter a calma e depois fazer a prova. Você já chegou até aqui... – Conforto-a.
– Eu acredito que tenho capacidade, mas o meu problema é físico. Eu simplesmente não posso trabalhar o dia inteiro, e se eu passar e eles não aceitarem minha condição? A minha deficiência piorou. Tenho que fazer natação duas vezes por semana, além da fisioterapia.
Leandra está preocupada. É uma boa oportunidade de emprego, ela precisa dele, mas algumas situações dificultam seu acesso.
– E olha que esta Lei de Inclusão do Deficiente é de 1991... Mas só agora as empresas começam a respeitar, a contratar!
Entendimentos
Um longo caminho para se encontrar algo, e, algo encontrado, interiorizar algo. Interiorizar, reconhecer, entender, compreender. Mas o que virá depois disso? E como será o caminho de autoconhecimento, auto-análise, auto-afirmação de uma identidade caricaturada por preconceitos e ignorâncias sociais? Como será a trajetória de Suely Harumi Satow, esta mulher de riso fácil?
Sentada ao sofá, Suely está tranqüila e à vontade em seu ambiente doméstico. Nas paredes da sala de visitas, muitas pinturas e outros trabalhos de tapeçaria. No seu quarto, logo ao lado, um armário abarrotado de conchas do mar, sua coleção particular. Um computador do lado oposto, armário, cama. Tudo muito limpo e organizado.
Suely Satow tem 54 anos de vida. Aparenta muito menos, talvez 40. Veste calça de moletom azul e uma blusa Lacoste vermelha sobre outra blusa branca. Tem os olhos puxados, rosto arredondado, cabelo liso e curto – sinais da sua descendência japonesa. Transparece serenidade. Mantém as mãos constantemente colocadas ao lado das pernas, ou sob elas. Fala calmamente e articula um notável vocabulário. De quando em quando ajeita seus óculos com o indicador; aí a gente vê melhor o seu olhar. Pausa um segundo, dois segundos. Inspira e continua a falar.
Está se tornando adulta, cada vez mais adulta, cada vez mais madura; enfrentando questionamentos sobre sua própria identidade; sofrendo preconceito pela paralisia cerebral; afetando-se por eles; querendo desconsiderá-los; voltando-se para si mesma; buscando entender-se a si própria; autoconhecimento livre de qualquer tipo de preconceituação; procurando sua identidade. Quem é Suely?
Em diversos momentos de amadurecimento, Suely deparou-se com a necessidade de se autoconhecer. Todos passam por isso, naturalmente, e com ela não foi diferente. Mas havia uma questão. “A paralisia cerebral é um ponto crucial na vida de um paralisado cerebral. Se ele não fosse PC, seria outra pessoa”, entende Suely.
Desde sempre convivendo com situações peculiares ligadas à sua condição, Suely viu-se com a necessidade de entender a sua própria identidade. Levou essa busca para a academia – entenda-se mestrado e doutorado. Alguma coisa a buscava lá, alguma coisa a buscava, já devia imaginar que, lá no fim do túnel, encontraria a resposta para seus anseios. Partiu e se dedicou com afinco. Estudou muito. Aos poucos, enquanto estudava, entendia como se forma a identidade de um paralisado cerebral; entendia a si mesma.
Em meio a todos os envolvimentos em busca de mais justiça social, Leandra caiu envolvida. Por amor. Conheceu Marcos dos Santos em setembro de 2005, enquanto participava da ONG Espaço da Cidadania, na cidade de Osasco, na Grande São Paulo. Freqüentar aquele ambiente, que para Leandra era militância, tornou-se “uma questão muito pessoal”. Assim ela entende.
– Ele começou a me paquerar, mas não tinha nada a ver comigo. Mas aos poucos eu fui dando atenção a ele, e percebi que estava gostando dele. Quando vi, estava apaixonada. Ele é minha alma gêmea, me faz muito feliz.
Leandra está diferente. Está apaixonada.
– O amor transforma muito, e para melhor, graças a Deus. Ser amada é maravilhoso.
Afirma e transparece felicidade por este neste momento vivendo a sua sexualidade, seu relacionamento, seu namorado. O momento é de paz e amor. Também de aceitação.
– As pessoas precisam aparecer pra isso. O encontro com Marcos foi decisivo. Antes não estava tão tranqüila.
– E o primeiro beijo, como foi?
– Foi no cinema. Estávamos assistindo “Dois Filhos de Francisco” – lembra, meio envergonhada, mãos juntas, cabeça levemente inclinada, quase se escondendo entre os ombros.
Tese
Depois de finalizar a dissertação de mestrado, em que estudou a identidade de um militante político revolucionário deficiente físico, Suely decidiu partir para o doutorado, também em psicologia social pela PUC-SP. Nesta nova empreitada, se propôs a “estudar como se constrói a identidade do deficiente”. Para isso, estudou duas histórias de vida de paralisados cerebrais. A proposta da tese carregava em si algumas características únicas: primeiro que se tratava do estudo da história de vida deles, a partir da fala deles próprios. E, segundo, que a própria pesquisadora da tese era paralisada cerebral.
A tese de doutorado foi editada e tornou-se livro: “Paralisado Cerebral: Construção da Identidade na Exclusão” (Cabral Editora Universitária). A tese a que Suely chegou é a seguinte:
Os paralisados cerebrais não são considerados humanos. Para a sociedade, são caricaturas, tratados como objetos, e sempre da mesma forma. Isso cria neles uma identidade cristalizada, não móvel, o que significa um rótulo para eles. A partir disso surge muito preconceito e o paralisado cerebral absorve isso, não trabalha a sua própria noção de identidade.
Eis aqui um trecho (em itálico) do prefácio escrito pela orientadora de Suely, a professora Bader Burihan Sawaia:
Este livro é indicado a todos que se preocupam com a dignidade do viver. Ele fala de pessoas vitoriosas na dolorosa batalha contra políticas de identidade que definem modelos de participação social e atribuem papéis estereotipados. (...)
Mas não espere o leitor atos heróicos e transformações mágicas ou a demagogia do happy end hollywoodiano. O que se encontra é a renovação da esperança fundamental do gênero humano em poder traçar e retraçar seu próprio projeto de vida, mesmo que modestamente e com muito sofrimento. Processo que só termina com a morte.
O aspecto desconcertante do livro é que, por traz de uma trama simples, que se desenrola em torno da história de vida de dois portadores de paralisia cerebral, complementada na conclusão, pelas histórias de outros sete, ele apresenta reflexões teóricas que ampliam a nossa compreensão, tanto do processo de construção da identidade singular quanto do processo social da exclusão. (...)
Exclusão não é um estado que uns possuem, outros não. Não há exclusão em contraposição à inclusão. Ambos fazem parte de um mesmo processo. – “o de inclusão pela exclusão” – face moderna do processo de exploração e dominação. O excluído não está à margem da sociedade, ele participa dela, e mais, a repõe e a sustenta, mas sofre muito, pois é incluído até pela humilhação e pela negação de humanidade, mesmo que partilhe de direitos sociais no plano legal. A inclusão pela humilhação se objetiva das mais variadas formas, desde a inclusão pelo “exótico” até a inclusão pela “piedade” (personagem coitadinho) e não tem uma única causa. O estigma de ser portador de deficiência se interpenetra com outras determinações sociais como classe, gênero etnia e a capacidade de autodiferenciação dos indivíduos, configurando variadas estratégias de objetivação da reificação das diferenças.
A autora deste livro passou por esse mesmo processo, o qual analisa sem autopiedade, para transformá-lo em conhecimento “virtuoso”.
“Amor transforma”
Quando eu encontrei minha alma gêmea, vi que o ser humano ainda é capaz de amar. Marcos dos Santos tem um olhar doce. Uma ternura... Sorri de dentro para fora. É puro e verdadeiro. Brinca feito criança na piscina do Sesc. Fala o que sente. Sabe o valor de um prato de arroz com feijão. Trabalhou muito para conquistar o pequeno teto que lhe abriga. Construiu cada pedacinho com seu próprio suor. É o homem que eu amo! É a alma que habita meu coração. Falar dele é muito intenso. É um oceano de emoções.
Eu sou a mulher mais feliz do mundo. Sou MUITO amada, e ganhei o maior presente da vida: uma pessoa íntegra. Infelizmente, muito rara hoje em dia. Com ele aprendo a falar mais baixo. A ter paciência. A ter calma. A ser humilde. A apenas ser. Estar com ele me faz crescer. Ser minha essência. Deixo de criar mais rugas na testa para rir das coisas simples, como comer bolo de chocolate com chá. Dormir abraçado respirando o mesmo ar. Sentir o calor da pele. Fazer um carinho no rosto. Colocá-lo para dormir.
Marcos me faz bem. Enche meu espírito de luz. Sinto-me segura ao seu lado. Amada. Desejada. Querida. O carinho com que ele acaricia o meu cabelo é tão único... Ele sempre me viu como uma pessoa. Para ele não sou uma deficiente. Uma menina. Uma coisa estranha. Uma eterna criança. SOU. Ele É. Nós somos! Talvez não existam palavras para explicar. Não, eu é que não tenho o dom de colocá-las para fora da alma e exprimir o quanto é vivo esse amor. E o que significa amar.
Escrever para mim é respirar. Não consigo viver sem as palavras. O mundo precisa saber que ainda é possível evoluir. Estender a mão a quem está do nosso lado. Nos amamos porque temos plena certeza que o que mais importa na vida é nos ajudarmos. Ele sempre foi generoso e solidário com quem ama, mesmo com quem não o conhece. Marcos não é capaz de ficar com 1 centavo que não seja dele. Sempre divide um prato de comida. Fica com frio para esquentar uma criança. Todo dia que vem até a minha casa cumprimenta o vigia que trabalha no consultório em frente. É simpático. Conversa com todo mundo na rua e dentro das casas. Sorri. Fala sempre a verdade.
Estranho falar que ele é assim? É que hoje, infelizmente, existem muitas pessoas que se fecharam em seu egoísmo. Vivem em uma redoma. Têm medo de serem que são. Colocam máscaras e fingem ser algo que não são. Marcos não é perfeito. É um ser humano. É teimoso, cheio de manias, turrão, bate o pé quando não quer alguma coisa, se pela de medo de ir ao médico, não gosta de cuidar da saúde, é bagunceiro, esquece chaves, óculos, e blusas por aí, é distraído, e às vezes muito triste...
Ao seu lado eu me libertei de pré-conceitos, quebrei tabus, desfiz mitos. Aos 28 anos, quando fui amada por inteiro, apossei-me de mim mesma. Não tenho mais que provar nada para ninguém, muito menos para mim. Sinto-me confortável dentro do meu corpo. Sou uma mulher amada e desejada. Sou uma super tia-mãe das crianças que chegam até mim. Sou FELIZ. Minha alma gêmea tirou o medo de me assumir. Pena que perdi tanto tempo tentando viver uma perfeição que não é humana... Hoje a diversidade é tão natural...
Estamos juntos há 1 ano e 6 meses. Até agora, o que mais me marcou em nossa relação foi a minha verdadeira aceitação. É por isso que sinto necessidade de falar sobre. Comigo foi assim: sempre vivi ouvindo que eu devia ser como os outros. Como a maioria. “O mundo não foi feito para a minoria. As pessoas são normais. Normal é morar numa casa legal, ter boas roupas, carro, estudar, viajar, ter um emprego, ter pernas, andar, poder dar à luz a um filho, ter uma altura mediana, fazer parte da sociedade”. Mas que sociedade? Falar da desigualdade é uma coisa, vivê-la é completamente diferente. Quando chego na comunidade onde Marcos mora, os vizinhos brigam para ver quem vai levantar a minha cadeira de rodas e subir-me pelas escadas. Na minha casa, meu pai se incomoda muito em ter que colocar minha cadeira de rodas dentro do carro, quando vamos almoçar num restaurante.
Na casa do meu noivo sou mulher. Converso na porta com as vizinhas, peço que batam um bolo para mim, cuido das crianças quando elas estão ocupadas. Ser pequena, andar em cima de uma cadeira de rodas, e ter um corpo um pouco mais diferente do que o delas não importa. Comem da minha comida. Aceitam o meu dinheiro quando compro algo que vendem. Ouvem os meus conselhos. Aceitam o meu convite para ir à lanchonete. Se sentem seguras em deixar seus filhos comigo.
Na minha casa me tratam feito criança. Tudo fica alto para que eu não possa alcançar sozinha. Tem tapetes por toda a casa. Não tenho privacidade em meu próprio quarto! Para eles, meu noivo é “mais um para dar trabalho”. Um pobre e deficiente. Uma escolha errada. Sexo? É a maior loucura que eu não deveria fazer. É como seu eu estivesse brincando de ser mulher. Quando era adolescente usar saia era proibido. Passar batom então... Tento não os culpar e, principalmente, não me culpar. Mas a responsabilidade é de ambos. Eu, que permiti ser tratada a vida toda dessa forma; e deles, que levaram anos para começar a me enxergar como realmente sou (se é que enxergam...). Infelizmente, um processo bem provável em um país sem caráter como o Brasil, que prefere esconder as todas as diferenças debaixo do tapete.
Esperança! É a palavra. Ainda bem que existem alguns Marcos por aí. Temos o melhor clima, a terra mais saudável, os animais mais bonitos, a flora mais rica em diversidade, a cultura mais criativa, as pessoas mais amáveis, mas muito a evoluir. A sociedade é formada por pessoas. E as pessoas se transformam. O amor transforma!
(“O amor transforma”, de Leandra Migotto Certeza)
Avante
A idéia de superação, comumente associada à transcendência de alguma dificuldade, apoiada em ações pessoais sobre-humanas e finitas, no sentido de não contínuas, têm, para Suely, que cotidianamente convive com paralisia cerebral, um sentido mais amplo e concreto.
– Tive, em primeiro lugar, muito apoio dos meus pais. Minha mãe inclusive sempre falava que não sabia se os outros me consideravam uma doida varrida ou uma batalhadora. Ela sempre apostou que eu era intelectualmente capaz, me apoiou muito. Também pude ter acesso a um tratamento muito adequado, exercícios de fisioterapia e psicologia, que me ajudaram muito. Mas também é claro que a gente precisa ter muita força interior. Fora isso, é necessário que a sociedade esteja preparada para a inclusão. Isso significa que temos que ter professores preparados para lidar com os deficientes e programas sociais que incluam os marginalizados. Uma prática de inclusão social mesmo, não de assistencialismo. Isso ajudaria e muito a acabar com os preconceitos, que na verdade não são racionais, em grande parte partem do inconsciente coletivo.
– Algo mais?
– Quero lembrar que os paralisados cerebrais são pessoas com necessidades diferenciadas, porque apresentam diferenças e graus de dificuldades físicas. Se estas necessidades forem atendidas, não haverá mais o desperdício de potencialidades como vem ocorrendo atualmente. E, assim como todos os incluídos pela exclusão social, somos seres humanos, não sendo super-humanos ou sub-humanos, como apregoam os preconceitos, que geram segregação, desamor, ódio, guerra, porque faz do outro uma coisa e não uma pessoa com diferenças, mas também igual em sua humanidade ao preconceituoso.
– Fique à vontade...
– Eu diria para os outros deficientes que se assumam e que batalhem pelo que é deles. Que busquem autonomia, que busquem ser respeitados como seres humanos e que busquem seus direitos. Acredito que o caminho é assumir, e assumir significa aceitar sem revolta. Depois, temos que pensar onde estamos e como podemos ir para frente. Chorar de nada adianta. Temos que manter a postura, cabeça, corpo e mente. E pegar o touro de frente!
Fundo profundo
Sábado, 23 de junho de 2007. São oito horas da noite e Leandra está no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP) embarcando rumo ao Peru. A cadeira de rodas, devidamente pintada e reformada por seu namorado, vai novinha em folha. Leandra participa, entre os dias 27 e 29 de junho, do VI Congresso Internacional Prazeres Dês-Organizados – Corpos, Direitos e Culturas em Transformação.
O evento é uma organização da Associação Internacional para o Estudo da Sexualidade, Cultura e Sociedade, e é realizado na Universidad Peruana Cayetano Heredia. O convite veio pela amiga e jornalista Maria Esther Mongollón, coordenadora de um grupo de estudos sobre mulheres e deficientes. No congresso, Leandra participa da mesa “Corpos, Prazer e Bem-Estar”. Também expõe seu trabalho “Fantasias Caleidoscópicas”, ensaio fotográfico com deficientes físicos nus. O projeto, que conta com parceria da fotógrafa Vera Albuquerque, propõe um repensar sobre juízos prévios.
Diria Leandra:
Numa estrela, um brilho,
A princípio inatingível
Ofuscado pelo brilho
Oprimido, impedido,
Ilhado por sentido
Fundo, profundo,
Dentro de si mesmo.
Pedro Ulsen é jornalista e pós-graduando em Jornalismo Literário pela ABJL (Academia Brasileira de Jornalismo Literário), turma de São Paulo (SP), 2007.
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