quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Calçadas de Natal são o retrato do caos.

Desniveladas, entradas de veículos inclinadas demais, varandas avançadas sobre o passeio público dificultam a locomoção pelas calçadas de Natal.






Descrição da imagem: foto do repórter Gabriel Trigueiro driblando um obstáculo em uma calçada. Imagem colocada d eponta cabeça lateralmente.


Colocar esta página em posição horizontal para ler o texto deve ter sido um gesto desconfortável para você, leitor. E nosso objetivo foi mesmo dificultar um pouco a sua vida, para que você entre no clima do assunto desta reportagem e entenda como é difícil a ‘‘missão’’ de quem caminha pelas calçadas das ruas de Natal.

Protegida na comodidade de seus carros com ar-condicionado, boa parte dos natalenses nem olha de lado para ver o cenário de descaso com o cidadão, que surge na paisagem urbana em forma de calçadas desniveladas, entradas de veículos inclinadas demais, varandas avançadas sobre o passeio público, paredões que impedem a circulação e obrigam as pessoas a disputar espaço com os carros. Esses são apenas alguns dos absurdos que se põem como obstáculos entre o pedestre natalense e sua cidadania.

Nas próximas edições, publicaremos uma série de matérias sobre a precariedade das calçadas em vários trechos da cidade, com a opinião dos cidadãos afetados pelo problema, a visão de urbanistas e a posição do poder público. Para ilustrar a situação, percorri avenidas em diferentes bairros, com diferentes perfis econômicos, urbanos e sociais. Minha primeira ‘‘aventura’’ foi andar na Avenida Jaguarari. Segue o relato:

Quarta-feira, 9h39. Meu trajeto a pé entre as avenidas Jaguarari e Alexandrino de Alencar já começa difícil. Estou caminhando numa calçada com menos um metro de largura, ou seja, menos de um terço do recuo previsto em legislação municipal.

Equilibrando-me entre a sarjeta onde corre esgoto a céu aberto e uma plataforma de cerca de dois metros de altura, que serve de base para as casas do trecho, tenho que olhar para trás de quando em quando e prestar atenção no trânsito. Corro o risco de ser esmagado, caso algum motorista perca o controle de seu carro. Logo a frente, ainda na calçada estreita, sou obrigado a virar de lado para passar entre o paredão e um poste de energia.

Em meio a esta aventura, resolvo subir uma escada esculpida no paredão, de corrimãos mambembes, para conversar com moradores sobre a situação de acessibilidade na rua. Encontro Dona Marlene, uma aposentada de 70 anos que caminha com auxílio de uma bengala. Ela tem medo de cair da plataforma, mal consegue subir e descer as escadas que dão acesso a sua casa e sofre para caminhar na região. ‘‘Não posso andar tranquila, morro de medo de me acidentar. Meu irmão caiu dessa escada uma vez e teve de ir para o hospital’’.

Foram os netos de Dona Marlene que construíram o corrimão de ferro usado pela aposentada para subir as escadas. Sua vizinha, a comerciante Tânia Garcia, também mandou fazer um acesso, com corrimãos de madeira que estão com parafusos soltos e ameaçam cair. Ela também teme acidentes e ainda se sente prejudicada pela dificuldade de acesso dos clientes a seu ponto. ‘‘É inconveniente e perigoso sempre’’.

Passado o trecho mais estreito da calçada, sigo em direção à Avenida Alexandrino de Alencar. O percurso é de obstaculos e armadilhas. Já castigado pelo calor de uma manhã de sol forte de fevereiro - não há árvores onde passam os pedestres -, cabe a mim a tarefa de escalar batentes altos, desviar de montes de areia usados em obras e me equilibrar para não escorregar em entradas de carro de ângulos íngremes, que preenchem todo o espaço entre os portões das casas e o asfalto. Com pisos inadequados para superfícies inclinadas, essas entradas representam aos pedestres um enorme risco de queda. A alternativa é arriscar-se andando na rua. É a Escolha do Sofia do cidadão natalense.

A mobilidade oferecida pelas calçadas parece piorar a cada metro que me aproximo da esquina da Jaguarari com a Alexandrino. Carros estacionados irregularmente me expulsam da calçada mais de uma vez. Ao atravessar ruas adjacentes, tenho de enfrentar barreiras de concreto nas esquinas.

Talvez achando que a medida vá diminuir os alagamentos na chuvas fortes, os moradores instalam murinhos de concreto delimitando suas propriedades, em pleno passeio público. A acessibilidade para portadores de deficiência é nenhuma, tanto nas esquinas quanto ao longo das calçadas. O pedestre que tiver duas pernas funcionando que pule os obstáculos. O semelhante que se dane e o poder público parece longe, bem longe.

Depois de vencer uma barreira de concreto na esquina com a Rua Coronel Silvino Bezerra e outra na esquina com a Rua Álvaro Carrilho, tenho um novo e desanimador trecho até o cruzamento com a Avenida Presidente Quaresma. Além dos problemas que já venho enfrentando desde a rótula da José Bento - calçadas estreitas, entradas irregulares de carros, barreiras de concreto e montes de areia de obras -, percebo que os desniveis se acentuam à medida em que o declive fica mais agudo.

Num determinado trecho, vários pedestres, entres os quais um idoso aparentando cerca de 80 anos, andam na rua em sentido oposto ao dos carros, para escapar das calçadas iclinadas e dos degraus de 50cm, 80cm, um metro de altura. Uma parte da calçada já próxima da Presidente Bandeira é particularmente uma armadilha: nesse pedaço, após vencer uma entrada para carros com duas faixas de cimento escorregadias e ângulo em torno de 45 graus, o pedestre tem de saltar de plataformas entre uma frente de casa e outra e descer inseguras escadas construídas pelos moradores para compensar o desnível. Qualquer distração pode ter sérias consequências.

O comerciante Moisés Oliveira, proprietário do imóvel da entrada de carros inclinada que acabo de citar, defende a construção. Ele conta que uma recente fiscalização da Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (Semurb) o notificou, juntamente com outros moradores, e que a defesa já apresentada. ‘‘Essa minha entrada é até correta comparada com outras que tem aqui na rua. A calçada era muito alta e se eu não fizesse isso, não teria como entrar com meu carro’’.
A aposentada Tânia Soares, que mora numa rua perpendicular, também acha que os moradores não têm culpa. ‘‘Isso aqui é desse jeito há décadas e eu tenho de mudar? Eu por exemplo, se mexer na minha calçada vou comprometer o alicerce da minha casa’’.

Na esquina entre a Jaguarari e a Alexandrino, o caos na urbanização atinge seu ponto máximo. No lado onde ando, há carros estacionados na rua e também na calçada. A traseira de um dos carros parados na calçada praticamente cola com a lateral de outro estacionado na rua, então não me sobra espaço algum para andar. Do asfalto no qual caminho vejo que a esquina oposta tem mais de um metro e meio de altura e acesso através de escadas precárias. Para piorar, móveis de uma estofadora que funciona no local são expostos no passeio público, atrapalhando ainda mais o trânsito das pessoas.

A situação deixa o marketólogo Gilson Roberto indignado. ‘‘É muito perigoso andar aqui. As pessoas pagam seus impostos e ainda têm de andar em calçadas altas, sujas, com buracos. Nossa cidade não tem infra-estrutura’’.

O reformador de móveis Eurípedes Dantas também reclama da altura da calçada e argumenta que a presença de objetos às vezes previne acidentes. ‘‘Estou aqui nesse ponto há 35 anos e várias vezes pessoas idosas deixaram de cair porque se seguraram nos móveis’’.
Exceção

Depois de passar por mais esse ‘‘perrengue’’, dobro na Alexandrino, em direção à Prudente. Não há padronização no piso das calçadas e nem adequação às normas de acessibilidade, mas pelo menos o terreno é mais plano e não encontro desníveis gritantes. Fico surpreso com a calçada de uma loja de carros, única do trajeto que tem piso anti-derrapante e ladrilhos para orientar deficientes visuais.

O estabelecimento é do comerciante Antônio Pereira. Ele sabe que sua loja é uma ilha de respeito à urbe, em meio a um quadro de caos. ‘‘Fiz esse piso um ano atrás pensando em meus clientes e na população. Além da calçada ser adequada, você pode ver que os carros não estacionam fora da área interna da loja, então o passeio público fica livre. Mas no geral, ninguém liga para as leis’’.

A arquiteta Gleyce Elali destaca o aspecto cultural do problema. ‘‘Em Natal, as calçadas não são feitas pensado nas pessoas. Elas são construídas para facilitar a entrada dos carros, as atividades dos comerciantes, mas não para tornar melhor a locomoção dos cidadãos. E falo de todos as pessoas, não apenas dos idosos e deficientes’’. Ela destaca que a cidade já teve elaborados dois planos de acessibilidade e que todos os projetos de reforma e construção têm de ser apresentados dentro das normas, à Semurb e ao Conselho Regional de Arquitetura, Engenharia e Agronomia (Crea). ‘‘Mas sem fiscalização, não adianta de nada’’.

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